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Opinião: Mais médicos ou mais saúde?

Roberto Luiz d'Avila

Do UOL, em São Paulo

17/09/2013 07h01

Nenhuma entidade médica é contra a criação de estímulos para melhorar a qualidade da assistência em saúde no interior do país e na periferia dos grandes centros. Pelo contrário, todas – entre elas o Conselho Federal de Medicina (CFM) – defendem a oferta de condições de trabalho e de emprego dignas que beneficiem pacientes, profissionais e gestores. Trata-se de uma preocupação legítima, que honra a obrigação constitucional do Estado de garantir atendimento universal, integral, gratuito e com equidade para todos os brasileiros.

No entanto, apesar de se valer desta premissa, o Programa Mais Médicos falha ao oferecer uma solução rasa, de duvidoso efeito duradouro e que contraria a legislação.

Essas são algumas das fragilidades da medida, que devem ser urgentemente corrigidas para que sua implementação retorne aos trilhos do bom senso e da legalidade.

Por conta de interesses específicos, o governo tem feito ouvidos de mercador às críticas apresentadas. Infelizmente, estimula até a desagregação ao culpabilizar uma categoria profissional – no caso a dos médicos – pela crise atravessada pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Transfere responsabilidades – há muito tempo denunciadas – e opta por um discurso que tem estimulado a polarização de um debate que desvia o foco dos reais problemas do atendimento.

De repente, parece que milagres ocorrerão com o desembarque dos médicos em alguns postos de saúde. Certamente, esses profissionais, dentre os quais inúmeros estrangeiros que ainda não revalidaram seus diplomas de medicina no país, levarão consigo a sensação de que o Estado finalmente olhou para contingentes populacionais até agora negligenciados.

  • Arte UOL

    Saiba qual a proporção de médicos em cada Estado e o panorama em outros países

O impacto psicológico é grande, mas esse efeito placebo tenderá a desaparecer à medida que a mídia perder o interesse pelo tema e os desafios do cotidiano tomarem seu espaço.

Inclusive, diante do noticiário farto das últimas semanas, algumas questões já se impõem: os médicos - “importados” ou brasileiros - terão condições de trabalho reais (infraestrutura, insumos, apoio de equipes multidisciplinares)? O paciente por eles tratado terá garantido acesso a exames e leito de internação? Sem progressão funcional, com vínculos empregatícios precários e distantes dos centros de formação continuada, eles realmente se fixarão nas zonas de baixa cobertura assistencial?

Ora, com tantos dilemas não custa imaginar que alguns podem até aceitar o desafio, mas diante das perspectivas – ou da falta delas - buscarão abrigo nas grandes cidades, acirrando o cenário de desigualdade na distribuição dos profissionais. Isso é o que apontam estudos que mostram um país com médicos em quantidade suficiente para atender suas necessidades, mas que, por conta da falta de políticas públicas, evitam as áreas mais pobres e o serviço público.

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Além disso, há os incontornáveis aspectos legais que foram atropelados pelo Executivo. Para início de conversa, não se pode ignorar que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (n.º 9394/1996) exige que os médicos estrangeiros revalidem seus diplomas em instituições públicas de ensino superior. Tal exigência é reforçada por outra regra ainda em vigor: a Lei n.º 3.268/1957. Portanto, o projeto em fase de implementação resulta na contratação ilegal de brasileiros e estrangeiros com diploma de médico obtido em outros países.

Ao desconsiderar essas normas, o governo se abriga numa estratégia de marketing que esconde da sociedade que a parcela mais carente da população estará exposta a profissionais sem qualificação comprovada.

Em última análise, é como se criássemos dois tipos de cidadãos: os de primeira categoria, que terão direito a médicos com diplomas reconhecidos e comprovaram seu preparo; e os de segunda, para quem essa preocupação desaparece, ignorando os riscos embutidos neste processo.

O argumento coator imposto aos cidadãos das áreas de difícil provimento se limita à seguinte premissa: aceite esse meio médico ou parte de médico ou permaneça doente. Ou seja, o desamparo gerado pelo abandono histórico da saúde pública pelo próprio governo lhe dá a desculpa para agir de forma irresponsável.

Opinião: Drauzio Varella

  • A questão dos médicos estrangeiros caiu na vala da irracionalidade. No meio desse fogo cruzado, com estilhaços de corporativismo, demagogia, esperteza política e agressividade contra os recém-chegados, estão os usuários do SUS.

    Insisto que sou a favor da contratação de médicos estrangeiros para as áreas desassistidas, intervenção que chega com anos de atraso. Mas devo reconhecer que a implementação apressada do programa Mais Médicos em resposta ao clamor popular, acompanhada da esperteza de jogar o povo contra a classe médica, é demagogia eleitoreira, em sua expressão mais rasa.

    Leia, na íntegra, o artigo de Drauzio Varella

Não obstante essa agressão legal, no caso de todos os estrangeiros, ainda surge outra - igualmente revestida de gravidade – para os médicos cubanos importados. As condições de trabalho previstas para este grupo não atendem aos ditames constitucionais e implicam na aceitação – por meio de acordo bilateral - de práticas coercitivas dentro do território nacional, típicas de regimes totalitários ou ditatoriais, como o cerceamento de direitos individuais e coletivos e a retenção da maior parte dos recursos recebidos pelo governo de Cuba.

Tantos problemas perfilados nos fazem pensar até que ponto tudo isso vale a pena. Não seria tempo do governo reconhecer os excessos cometidos e, juntamente com segmentos importantes da sociedade, recompor a proposta de fim tão nobre sob bases sólidas e permanentes?

Impossível compactuar com o silêncio. As entidades médicas se recusam a serem cúmplices desta cruzada de fins incertos.

Os protestos não são contra o Programa Mais Médicos. Eles representam a insurgência contra o abuso autoritário, a falta de transparência e a ausência de planejamento que, cedo ou tarde, apresentarão suas faturas.

Exigimos que a população não pague essa conta e cabe ao governo redescobrir o caminho para oferecer-lhe mais saúde, em lugar de apenas mais médicos.

Roberto Luiz d’Avila é Presidente do CFM (Conselho Federal de Medicina)