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OMS encerra polêmica sobre coquetel preventivo de emergência para HIV

Henrique Contreiras

Para a Agência de Notícias da Aids

03/12/2014 17h16

A Organização Mundial de Saúde (OMS) lançou no Dia Mundial da Luta contra a Aids na segunda-feira (1), um novo protocolo sobre a profilaxia pós-exposição (PEP, do inglês post-exposure prophylaxis) sexual para o HIV – o coquetel de emergência que pode prevenir a infecção após uma situação de risco. A última posição da organização, em 2007, restringia o método aos casos de estupro e aos acidentes ocupacionais com agulhas contaminadas. O atual é mais amplo e inclui situações de sexo cotidiano, em casos de não uso ou de rompimento do preservativo – no que a organização põe fim a uma polêmica que dura quase vinte anos e se alinha à postura adotada pelos Estados Unidos, países da Europa e Brasil.

Gottfried Hirnschall, diretor do Departamento de Aids da OMS, já havia anunciado na semana passada o lançamento do documento. "Recomendamos aos países que aumentem o acesso a antirretrovirais para pessoas que tenham se exposto ao HIV – como pessoas que tenham tido sexo sem proteção – de forma a prevenir a infecção". O novo protocolo também simplifica a prescrição, atualizando os remédios e recomendando o mesmo esquema para todos os tipos de exposição.

Embora países, sobretudo do Norte global, venham ampliando a PEP sexual desde 1999, a maior parte dos países manteve a restrição aos casos de violência sexual. Entre os motivos, receios de possível abandono de camisinha por parte da população, surgimento de vírus resistentes e efeitos colaterais. A falta de estudos contundentes permitiu a variabilidade de atitudes entre os países.

Contexto científico favorável

Contribuiu para a recente revalorização da PEP sexual as mudanças radicais por que vem passando a ciência do HIV nos últimos cinco anos. Antes, as pesquisas focavam em três alvos: tratamento, cura e vacina. Foram muito bem-sucedidas no primeiro, mas decepcionantes nos últimos. Nesta década, contudo, muito do investimento migrou para a prevenção biomédica, ou seja, para recursos farmacológicos, ou mesmo cirúrgicos, que possam evitar a transmissão do vírus. A camisinha perdeu seu posto de única alternativa na prevenção.

Duas descobertas foram especialmente importantes. Uma delas, publicada em 2011, é que soropositivos em tratamento eficaz transmitem dramaticamente menos. Isso tem levado governos a anteciparem o início do coquetel na esperança de conter a propagação da epidemia – antes, esperava-se a imunidade do soropositivo cair para tratá-lo. Em 2012, os Estados Unidos foram o primeiro país a indicar os antirretrovirais para todos os infectados. A estratégia foi chamada de "tratamento como prevenção" (TcP) porque trata o indivíduo ao mesmo tempo que previne a infecção do seu parceiro.

A outra descoberta, mais polêmica, foi publicada pela primeira vez em 2010. Pessoas soronegativas sob maior risco podem fazer uso diário e contínuo de antirretrovirais como medida preventiva. A pessoa começa a tomar o remédio de forma planejada, se antecipando à próxima situação de risco. Daí o nome do método – profilaxia pré-exposição, ou PrEP (do inglês pre-exposure prophylaxis).

A PrEP vem rapidamente se impondo, ainda que levante os mesmos questionamentos que a PEP originou no passado. A força da PrEP vem do fato de que, ao contrário da PEP, foi corroborada por ensaios clínicos controlados – o tipo de pesquisa que tem os resultados mais inquestionáveis.

Nos Estados Unidos, a PrEP foi adotada como política pública em maio deste ano. Dois meses depois, a OMS oficializou seu apoio à medida. Em todo o mundo, se multiplicaram estudos de demonstração, que procuram avaliar a adequação da PrEP às realidades locais.

Portanto, ainda que nada de novo tenha surgido sobre a PEP em si, a medida está indo na carona do TcP e da PrEP. Afinal, se agora se oferece coquetel para soropositivos saudáveis e, o que é ainda mais radical, para soronegativos usarem de forma contínua, por que insistir nas restrições ao uso emergencial?

No Brasil, do atraso à priorização

No Brasil, somente em 2010 o método foi liberado para todos os tipos de exposição sexual. Segundo Alexandre Grangeiro, pesquisador da Universidade de São Paulo, "além da pressão dos ativistas dos grupos mais afetados, que demandavam acesso ao método, contribuiu para a PEP ser levada mais a sério no Brasil o avanço dos estudos que mostraram o efeito dos remédios antirretrovirais na prevenção do HIV".

Ativistas brasileiros denunciavam que havia moralismo no fato de o método ser liberado para vítimas de estupro mas não para pessoas com alto risco de aquisição do vírus, como homens que fazem sexo com homens e profissionais do sexo.

No entanto, a liberação da PEP para o sexo cotidiano pelo Ministério da Saúde em 2010 foi mais formal do que real. Sinal disso, segundo Grangeiro, foi o fato de que não se estabeleceu na época como o SUS ia se organizar para oferecer o método, o que contribuiu para a série de entraves à sua aplicação.

Quatro anos mais tarde, o cenário está muito diferente. O TcP já foi incorporado nas políticas do Ministério e a PrEP está em fase de estudos para usa disponibilização no SUS. A PEP, nesse contexto, ganhou status como um dos componentes da chamada prevenção combinada – que é a união dos três métodos preventivos medicamentosos com os tradicionais, como a camisinha – que surge como a nova prioridade do Ministério da Saúde.

A assessoria do Departamento de DST/Aids e Hepatites Virais (DDAHV), do Ministério da Saúde informou que está iniciando pesquisas sobre os métodos preventivos medicamentosos no âmbito do SUS, e isso inclui a PEP. Grangeiro coordena na USP a pesquisa que foca na PEP sexual mas também inclui a PrEP. O estudo incluirá as cidades de São Paulo, Ribeirão Preto, Fortaleza e Porto Alegre. O objetivo em relação à PEP é avaliar sua efetividade em prevenir infecções e as repercussões sobre o comportamento sexual.

Segundo Grangeiro, as pesquisas permitirão entender o perfil do usuário da PEP e integrar os diferentes métodos no SUS. "No entanto, já há alguns estudos que mostram que o usuário potencial da PEP é aquela pessoa que já tem o hábito de se prevenir de outras formas e que, eventualmente, precisa lançar mão do método como um complemento", declarou.

A assessoria de imprensa DDAHV também informou que o protocolo de PEP está sendo revisto. Denise Lotufo (foto, lado direito), médica infectologista e gerente de Assistência da Coordenação Estadual de Aids de São Paulo, faz parte do grupo técnico responsável por essa revisão em Brasília e disse que a ideia é simplificar os procedimentos para facilitar e expandir a oferta do método – o que vai ao encontro da nova recomendação da OMS.

Discussão ocorre em todo o mundo

Em diferentes partes do mundo, o tema da PEP sexual vem sendo tensionado mesmo antes da posição da OMS. É o caso da África do Sul, o país com o maior número de soropositivos. Embora a Sociedade de Clínicos de HIV da África Austral defenda desde 2008 uma PEP sexual ampla, o governo sul-africano ainda só a adota em casos de estupro.

No entanto, segundo Brian Kanyemba (foto, lado esquerdo), da Desmond Tutu Aids Foundation, da Cidade do Cabo, na prática, estão crescendo as possibilidades de obtenção dos remédios para relações sexuais consensuais. Segundo Kanyemba, "nos casos de violência sexual, em geral é exigido um boletim de ocorrência para se iniciar a medicação. Porém, há uma rede de centros especializados em atendimento ao estupro, os Thuthuzela Centres, uma iniciativa do Fundo Global, que oferecem a medicação sem fazer perguntas e acabam sendo uma opção para casos de ruptura ou não uso de camisinha". Além disso, há serviços de saúde gerenciados por ONGs que oferecem o serviço.

Segundo Marlene Poolman ( primeira foto), do Departamento de Saúde do Cabo Ocidental, na Cidade do Cabo, e chefe do Conselho Provincial de Aids, "a questão da PEP sexual foi levada ao Departamento Nacional de Saúde e, aparentemente, estão trabalhando em um protocolo".

Entre nossos vizinhos, as posturas divergem. Na Argentina, o guia do Ministério da Saúde de 2013 determina e regulamenta a provisão de PEP para relações sexuais com parceiro de sorologia desconhecida, segundo uma classificação do risco, tal como no Brasil. No ano anterior, contudo, o consenso de antirretrovirais da Sociedade de Infectologia ainda tinha uma recomendação vaga para esses casos.

No Uruguai, em contrapartida, ainda não há protocolos que prevejam a PEP para sexo consensual. Porém, a médica infectologista Zaida Arteta (foto), professora da faculdade de Medicina da Universidad de la República, de Montevidéu, afirmou: "estamos elaborando um guia de PEP sexual e de PrEP que será proposto ao governo". Segundo a médica, "a PEP sexual é oferecida escassamente em alguns serviços, principalmente privados, e somente se as pessoas a solicitam – o que não é frequente, já que não há campanhas de educação neste sentido".

Não é somente nos países do Sul que a situação está em transição. A província canadense de Colúmbia Britânica optava por uma política de PEP bastante restrita – ao contrário da província do Quebeque, que liberou o método em 1999. Em 2010, a ONG de saúde de homens gays Health Initiave for Men lançou um manifesto apontando que, por causa da restrição, homens que tinham tido relações desprotegidas e se arrependido não estavam tendo acesso aos remédios, e que alguns estavam se infectando. A ONG recebeu o apoio de várias entidades, o que levou à implementação de um projeto-piloto ode PEP sexual na capital Vancouver em 2013.

Atualização britânica

Enquanto isso, países que adotam o método há muito tempo continuam modernizando suas diretrizes. O Reino Unido reviu o cálculo de risco em 2011, levando em consideração a redução da transmissibilidade em soropositivos sob tratamento. Agora, a PEP não é mais indicada a um homem soronegativo que tenha penetrado sem preservativo um parceiro ou parceira soropositivo com vírus indetectável.

Lotufo afirmou que as reuniões de revisão do protocolo da PEP no Ministério da Saúde ainda não estão levando em consideração a redução da transmissibilidade, mas que acredita que no futuro isto vá ser considerado. Grangeiro também concorda que essa é uma tendência: "Ou você acredita ou não acredita [que os antirretrovirais reduzem significativamente a transmissão]."