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"Minha mãe não conseguia comer e morreu após cirurgia como a de Romário"

Imagem: Reprodução/TV Justiça

Bia Souza

Do UOL, em São Paulo

03/02/2017 04h00

Em 2008, apesar de estar abaixo do peso ideal para sua altura, Glória Graça Curado estava com diabetes tipo 2 e resolveu fazer a mesma cirurgia que o senador Romário.

Atraída pela promessa de cura da doença, a arquiteta acreditou que a operação lhe daria uma vida mais saudável. Mas após passar meses sem comer praticamente nada e chegar a 39kg, sem "conseguir sentar direito de tão magra", Glória morreu em dezembro de 2016.

A família é uma das sete que processam Áureo Ludovico de Paula, pioneiro na realização do procedimento e médico de Romário, pela morte de parentes em decorrência de complicações da cirurgia conhecida como gastrectomia vertical com interposição ileal. Outras sete famílias também processam o médico por causa de sequelas graves.

Imagem: Reprodução/Instagram

A técnica é considerada experimental pelo Conselho Federal de Medicina, que não reconhece a cirurgia exatamente por não ter a segurança atestada, principalmente em pacientes não obesos.

Em um dos processos de duas ex-pacientes de Ludovico na Justiça Civil de Goiás, o médico foi condenado a pagar uma indenização de R$ 50 mil, mas ambas as partes recorreram. De acordo com o advogado Marcelo di Rezende, que as representa, também estão em andamento três processos no Conselho Regional de Medicina de Goiás -- que não comentou o caso. 

Era para operar só o intestino, mas não foi isso 

Glória Grace Curado morreu em 2016 Imagem: Reprodução/TV Justiça/Via Legal
"Fomos ao consultório do doutor Áureo, e ele disse que já tinha feito cerca de 400 cirurgias, que o índice de sucesso era de 90%. Como mamãe era magra, seria operada apenas no intestino. O pós-operatório seria uma dieta restrita de três meses", conta Jéssica Cristina Curado Ribeiro, filha de Glória. Na época, ela estava com 55 anos, 1,63 e 50kg.
Glória Graça Curado chegou a pesar 39 kg Imagem: Reprodução/TV Justiça

Mas, assim que teve autorização para ingerir água, Glória não suportou a dor no estômago. Nos meses seguintes não conseguia se alimentar e procurou o médico diversas vezes. "Ela não conseguia ingerir praticamente nada, chegou a pesar 39kg, até que resolveu procurar outro médico, e descobrimos que parte do estômago foi retirada. Procuramos o doutor Áureo várias vezes, ele sempre dizia que encontraria uma solução para o problema", relata a jovem. 

Com o passar dos anos, Gloria passou a se alimentar de mingau e leite, mas estava cada vez mais enfraquecida. "Ela desenvolveu osteoporose e teve várias fraturas. Foram várias internações, e a desnutrição era o principal problema", diz Jéssica. A arquiteta morreu aos 63 anos, de infecção generalizada.

Ela desenvolveu um problema renal, tinha anemias constantes e não conseguia sequer ficar sentada porque estava muito magra" Jéssica, filha de Glória

Ludovico afirma em entrevista ao UOL que foi absolvido de todos os sete processos em conselhos regionais porque ficou demonstrado que não foi complicação da cirurgia, mas problemas inerentes ao diabetes ou à obesidade. Segundo ele, seus pacientes não devem fazer nenhum tratamento especial após a cirurgia.

Cura para diabetes?

A cirurgia é "vendida" por Áureo como a cura para o diabetes, mas mesmo o médico diz que não é indicada para todo paciente. "Infelizmente alguns são excluídos. A maioria dos diabéticos quando procuram um médico já estão em um estágio avançado da doença e nesse caso não poderiam fazer”. O médico também ressalta que é preciso fazer avaliação e exames antes do procedimento.

A diferença dessa técnica para a cirurgia bariátrica convencional está na recolocação do íleo (fim do intestino delgado) entre o duodeno e o jejuno, o que aumenta a produção de hormônios da saciedade e melhorariam o diabetes.

No Brasil, a cirurgia bariátrica é regulamentada pelo CFM para pacientes com IMC (Índice de Massa Corporal) maior de 40 kg/m², ou seja, quem tem obesidade mórbida, e que não respondeu aos tratamentos com remédios e dieta/exercício por no mínimo dois anos. 

Imagem: Arte UOL
Pacientes com IMC entre 35 kg/m² e 40 kg/m², com obesidade severa, podem se submeter ao procedimento quando apresentam uma das 21 doenças associadas à obesidade, como o diabetes. Em alguns casos, para controlar o diabetes em quem não tem efeito com medicamentos, a cirurgia convencional tem sido indicada a partir do IMC 30 kg/m², que já é considerado obesidade, mas ainda não há consenso. Abaixo disso, como é o caso de Romário (IMC 28 kg/m²) e de Glória (IMC 18 kg/m²), a cirurgia bariátrica não é indicada.

Na interposição ileal, de acordo com um estudo realizado entre 2005 e 2007 e publicado por Ludovico em 2010, 86,1% dos pacientes não obesos obtiveram controle glicêmico adequado por meio da cirurgia, sem medicação antidiabética. 

Em outra pesquisa com 454 pacientes com IMC menor do que 35 kg/m², publicado em 2011, o médico relata que dois pacientes morreram até a data. Foram 29 complicações maiores (6,4%) e 51 complicações menores (11,2%). Oito pacientes tiveram que operar novamente e vinte voltaram a ser hospitalizados.

Neste ano, um estudo publicado pelo Surgical Endoscopy, periódico conceituado da área, analisou o procedimento em relação a outras cirurgias bariátricas e concluiu que os resultados não justificam os riscos.

Para o endocrinologista Bruno Halpern, secretário da Abeso (Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica), a cirurgia tem mais riscos de complicação porque são três costuras que unem duas partes do corpo, o que eleva o risco de ocorrer um sangramento ou outra complicação. Na bariátrica comum, são duas costuras.

O médico, filho do professor da USP Alfredo Halpern (morto em 2015), que participou de estudos com Ludovico, considera que a cirurgia é mais eficiente quanto maior o peso. "O efeito da operação é peso-dependente, mesmo que alguns médicos afirmem que não, o principal motivo da melhora do diabetes é a perda de peso".

No caso do Romário ele emagreceu, quando ele começar a ganhar peso, o diabetes vai subir, talvez não para o nível anterior, mas vai subir"Bruno Halpern

Os resultados de outro estudo de Ludovico corroboram a ideia de Halpern. Eles sugerem que a "cura do diabetes" seria mais difícil de conseguir em pacientes operados com peso normal, possivelmente porque eles possuem marcadores genéticos mais fortes para a doença.

Em abril de 2016, um estudo feito pelo hospital Sírio Libanês comparou a interposição ileal com a cirurgia clássica e o tratamento clínico, com medicamentos. Os resultados mostraram que o procedimento em pacientes com IMC entre 30 e 35 se mostrou mais eficaz do que os métodos clássicos. 

Problemas não são só em quem é magro

Bispo Tid, filho do casal Estevam Hernandes e bispa Sônia Hernandes, morreu após fazer o procedimento criado por Áureo Ludovico, em 2009 Imagem: Reprodução/Facebook
Mas os problemas da interposição ileal aparecem também em pacientes acima do peso ou obesos, como é o caso de Elena*.

Medindo 1,65 metros e com 85 quilos, ela aceitou se submeter à gastrectomia laparoscópica em 2006. Depois da operação, passou a sentir fortes dores abdominais que a impediam até mesmo de se alimentar. Foi quando decidiu voltar ao consultório do médico.

Ludovico a examinou e concluiu que estava tudo normal. Sem conseguir melhoras, ela procurou outro especialista na região onde morava, em Brasília, e foi assim que descobriu que a cirurgia que havia feito se tratava de um procedimento diferente. "Um médico que tinha feito residência com o doutor Áureo me disse que se tratava de uma complicação cirúrgica de uma operação que só ele fazia. Foi só aí que descobri que se tratava de algo experimental que não era aprovado", explica.

A mulher passou por cinco cirurgias, sendo duas com Ludovico.

Preciso estar sempre perto de um hospital que tenha condições de fazer uma cirurgia de emergência, já tive vários problemas. Também não consigo carregar peso e tenho limitações físicas" Elena*

Ludovico diz que a paciente tem uma doença pélvica ginecológica infecciosa, que não tem relação com a cirurgia de interposição ileal, e que seria essa a causa das dores que a levaram às cirurgias seguintes. Também diz que o procedimento é tão seguro quanto as operações de obesidade mais comuns.

De acordo com o especialista em cirurgia digestiva Manoel Galvão Neto, as complicações relacionadas ao procedimento podem acontecer a qualquer momento. “Como qualquer operação que altera o trato intestinal, ela pode gerar complicações tanto imediatas (até 30 dias) como tardias, sendo que essas podem ocorrer anos após a cirurgia".

Com 1,58 m e 77 quilos, Mônica* procurou Ludovico por que queria perder peso. De acordo com a mãe da jovem, que na época da operação, em 2005, tinha 31 anos, o médico disse que se ela pesasse 100 quilos, esse problema poderia ser resolvido para sempre. Para fazer a operação, ela decidiu engordar e chegou aos 95 quilos -- o que é desaconselhado pelos médicos.

Após a operação, a jovem desenvolveu dificuldades para se alimentar e passou a vomitar com frequência. Dois anos depois, foi diagnosticada com uma úlcera e uma fístula no estômago.

Minha filha ficou dois anos na UTI, usando sonda, sem poder ingerir comida ou água” Mãe da Mônica*

Mônica procurou profissionais em São Paulo, onde foi informada de que se tratava de um procedimento experimental. Até aquele momento, acreditava se tratar de uma redução de estômago convencional. Após uma série de cirurgias, ela conseguiu reestabelecer a alimentação para uma dieta mais pastosa.

Além das debilidades físicas, os traumas geraram transtornos psiquiátricos que levaram a mulher a uma aposentadoria por invalidez.

De acordo com Ludovico de Paula, os problemas de saúde da jovem não têm relação com o procedimento. “Ela teve uma úlcera e isso causou as complicações, não teve a ver com a cirurgia”, diz o médico.

Está liberada ou não?

Imagem: Rick Wilking/Reuters
Elena* diz que o médico nunca a informou de que se tratava de uma cirurgia experimental.  O advogado de outras vítimas diz o mesmo. Mas Ludovico afirma que todos os termos referentes à cirurgia estavam nos documentos assinados pelos pacientes antes da operação.

Em uma Ação Civil Pública na Justiça Federal em Goiás, de 2010, o médico chegou a ser proibido de realizar o procedimento. Mas em 2014, o juiz substituto da 8ª Vara Federal, Felipe Andrade Gouvêa, atendeu aos pedidos dos advogados do médico, entre eles o famoso defensor Kakay, e suspendeu a proibição e considerou que a cirurgia não é experimental.

O MPF e o CFM recorreram, e o processo está em segunda instância --ainda não há nova sentença. Enquanto isso, o médico pode continuar a operar.

O relato de que a técnica é experimental é um absurdo. Um tribunal como o do CFM está muito abaixo de um tribunal federal" Áureo Ludovico de Paula

Para Halpern, dizer que a cirurgia é experimental não é o mesmo que afirmar que ela não funciona, mas é necessário fazer testes para verificar sua eficiência em relação aos procedimentos já existentes. "Acho espetacular fazer estudos em humanos para descobrir se é eficaz desde que as pessoas saibam que é experimental e que os pacientes estejam em protocolo de pesquisa."

Além disso, o pagamento pela operação é considerado antiético pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, já que seria parte de uma pesquisa. Jéssica conta que sua família pagou cerca de R$ 27 mil, em 2008.

*Elena e Mônica são nomes fictícios 

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