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Vítimas enfrentam trauma após queimaduras: "Vivo perturbada com lembranças"

Janailda dos Santos, 35, que se queimou no restaurante em que trabalhava - Assuero Lima/UOL
Janailda dos Santos, 35, que se queimou no restaurante em que trabalhava Imagem: Assuero Lima/UOL

Valéria Sinésio

Colaboração para o UOL, em João Pessoa

05/08/2017 04h00

Quatro de julho era para ser um dia normal de trabalho para Janailda dos Santos, 35. No restaurante onde ela é funcionária há dois anos, na zona sul de João Pessoa, os clientes chegavam para o almoço e a cozinha estava em pleno funcionamento.

Janailda foi colocar álcool no fogareiro para dar conta do aumento dos pedidos. A explosão foi imediata. Ela apagou.

Acordou no dia seguinte na Unidade de Queimados do Hospital de Emergência e Trauma Senador Humberto Lucena, o maior da capital paraibana.

Quase um mês depois do acidente, a garçonete, mãe de uma menina de quatro anos, sonha em voltar para casa e para o trabalho. Além de Janailda, outras duas pessoas foram atingidas. Com ferimentos mais leves, já deixaram o hospital.

Enquanto a previsão de alta não vem, em algumas noites, acorda assustada com as recordações do dia do incêndio no restaurante. 

O pior para ela foi ver 40% de seu corpo queimado e em "carne viva". O braço direito, as pernas, os pés, as mãos, as costas, a barriga e as orelhas tiveram queimaduras de segundo e terceiro graus --esses níveis costumam gerar dor e bolhas, podem deixar cicatrizes e atingir até os ossos.

Ela ainda não se olhou no espelho após o grave acidente. Reluta um pouco para falar sobre o assunto. "Ainda vivo perturbada com as lembranças daquele dia. Quando me vêm à mente, só tenho vontade de chorar, foi muito doloroso", conta.

Janailda não sabe se ficará com sequelas. Mesmo com as pernas enfaixadas e queimaduras que impressionam, tem tido uma boa evolução, segundo a equipe do hospital.

Nesta semana, conseguiu voltar a caminhar, o que foi motivo de muita felicidade. "Passei três semanas sem andar, em cima da cama, a gente pensa que vai enlouquecer."

Ela tem sessões diárias de fisioterapia e, nos próximos dias, vai saber se há a possibilidade de fazer enxerto nas áreas queimadas. "O médico disse que eu tinha que esperar um pouco mais. O que mais incomoda é que a queimadura causa muita coceira", diz.

No primeiro semestre deste ano, o Trauma atendeu 14 vítimas de queimaduras por produtos químicos. Segundo dados do Ministério da Saúde, o Brasil teve, em todo o ano passado, 15.896 pessoas atendidas por queimaduras, contra 13.047 em 2015 e 14.105 em 2014.

O Hospital de Emergência e Trauma Senador Humberto Lucena, em João Pessoa - Assuero Lima/UOL - Assuero Lima/UOL
O Hospital de Emergência e Trauma Senador Humberto Lucena, em João Pessoa
Imagem: Assuero Lima/UOL

"É uma nova chance de vida que Deus me dá"

No leito ao lado de Janailda, está o mecânico Walter Antônio do Nascimento, 51. Ele não consegue esconder a felicidade e ri sem parar, por qualquer motivo.

Sua alegria é compreensível: após um mês e 11 dias, recebeu alta. Seu drama começou no dia 17 de junho, quando saiu do trabalho, pegou o filho na escola e foi para casa. O garoto tinha fome, então ele foi para a cozinha, pegou um hambúrguer congelado e colocou óleo na frigideira. Depois disso, não se lembra de mais nada.

Só entendeu o que tinha acontecido dias depois: a frigideira com o óleo quente caiu em cima dele e provocou queimaduras de terceiro grau na virilha, nas pernas e nas nádegas.

"Aconteceu em um segundo. Eu estava em casa com meu filho e no outro instante eu estou em uma cama de hospital rodeado de médicos. Não é fácil", afirma.

Sua recuperação foi lenta. Semanas após o ocorrido, passou por uma cirurgia de enxerto. Os médicos retiraram parte da pele na coxa esquerda para refazer a área atingida.

Sua mulher, Maria José Fernandes, esteve durante os 41 dias de internação ao lado dele e comemora o retorno do marido.

Ele considera a volta para casa como "um recomeço". "É uma nova chance de vida que Deus me dá. A gente nunca acha que um acidente pode acontecer na nossa casa, e aí está o erro. A partir de agora, serei muito mais cuidadoso."

Queimaduras por líquidos quentes representam a maior causa de internação no Hospital de Trauma, segundo dados da assessoria de imprensa. No primeiro semestre deste ano, foram 341 ocorrências.

"A queimadura é o maior dano que se causa ao ser humano"

O cirurgião plástico Saulo Montenegro - Assuero Lima/UOL - Assuero Lima/UOL
O cirurgião plástico Saulo Montenegro
Imagem: Assuero Lima/UOL
Em 2001, o cirurgião plástico Saulo Montenegro fazia parte da equipe fundadora da Unidade de Tratamento de Queimados do Hospital de Emergência e Trauma.

Passados 16 anos, continua na unidade e guarda na memória diversas histórias de pacientes queimados. Segundo ele, quase metade dos atendimentos no hospital são feitos em crianças e os casos, em sua maioria, são evitáveis.

O coordenador Montenegro diz que até a equipe médica recebe acompanhamento psicológico numa tentativa de minimizar os danos causados pela rotina agitada entre muitos pacientes e casos difíceis. "A queimadura é o maior dano que se causa ao ser humano."

"Por dia, pelo menos dez procedimentos são realizados em pacientes vítimas de queimaduras, além das cirurgias", conta ele.

De acordo com o médico, predominam na unidade as queimaduras por escaldadura (líquidos quentes). "Geralmente são lesões causadas por leite quente, água, café", explica.

"Não é só a lembrança, fica também a sequela"

O álcool, aponta Montenegro, é outro elemento perigoso que coloca em risco a vida do paciente. "Muitas vezes são casos letais porque o álcool destrói a superfície corporal. Além disso, uma queimadura que atinge mais de 60% do corpo, em regra, é incompatível com a vida."

Não raro, diz Montenegro, há pacientes que precisam ser acompanhados pelo resto da vida após sofrer uma queimadura. "Aqui no Trauma temos cinco pacientes que são acompanhados desde que a unidade foi fundada, ou seja, há 16 anos", pontua.

"Pacientes que sofrem queimaduras quando crianças podem ficar com sequelas físicas que os impedirão de entrar no mercado de trabalho, por exemplo. Não é só a lembrança, fica também a sequela", afirma.

Desde que foi fundado, o centro realiza campanhas permanentes de conscientização para minimizar o número de casos. Segundo o coordenador, tem dado resultado: "Nos últimos três anos, tivemos redução nos atendimentos. Foi pouco, mas um caso a menos já é motivo de comemorar".