O que explica a disparada de infecções por HIV entre jovens brasileiros
Marcos Sergio Silva
Do UOL, em São Paulo
15/08/2017 04h00
Quando Leo Cezimbra tinha 31 anos, seu rosto e seu corpo eram exibidos em uma campanha publicitária, com outdoors e chamadas na TV, na cidade gaúcha de Uruguaiana (631 km de Porto Alegre). Licenciado e bacharel em educação física e pós-graduado em gestão e organização de escola, dividia seu tempo entre as aulas em uma academia local e o trabalho de modelo. O corpo sarado não dava pistas de que estaria infectado pelo vírus HIV.
“Sempre fiz exames frequentes e tive relacionamentos longos. Já tive momentos em que eu fiquei solteiro e sempre me protegi. E só fui conviver com o HIV depois dos 30 anos. Não sei como fui infectado. É bem possível que tenha pegado de um ex-namorado”, diz o professor e modelo, hoje com 35 anos --o teste que detectou a contaminação aconteceu em 2013.
Cezimbra, de família tradicional --a mãe é professora, e o pai, dono de uma loja de artigos para caça e pesca--, compõe um perfil que preocupa responsáveis pelos programas de combate às DST/Aids e entidades engajadas na luta pelo controle dessas infecções: a taxa de jovens infectados pelo HIV cresceu nos últimos anos, enquanto outras faixas de idades veem a diminuição desse número.
Segundo o Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, do Ministério da Saúde, a taxa de infectados explodiu entre 2006 e 2015 nas faixas de 15 e 19 anos (variação de 187,5%, com a taxa passando de 2,4 para cada 100 mil habitantes para 6,9) e de 20 a 24 (alta de 108%, passando de 15,9 para 33,1 infectados). Entre 25 a 29 anos, foi de 21%, com a taxa migrando de 40,9 para 49,5%.
O professor e modelo detectou a doença em uma idade posterior a essa alta. Porém, o período entre os 30 e os 34 anos não apresentou queda --manteve-se na faixa dos 55 por 100 mil habitantes e hoje só não é maior que a entre 35 e 39 anos, cuja taxa, de 58,3, caiu 7,5% nos últimos dez anos.
“Temos que olhar para essa faixa etária”, afirma a médica infectologista e consultora do programa municipal de DST/Aids da Prefeitura de São Paulo Joselita Magalhães Caraciolo. “Em termos de taxa, [a incidência entre os 15 e os 19 anos] é grande, mas o número ainda é pequeno. A dimensão entre 20 e 24 é maior, porque a maior parte está com a vida sexual ativa.”
“Estigma fica presente”
Na cidade de São Paulo, a característica dos novos infectados remete para os mais jovens, homens que praticam sexo com outros homens e uma concentração nos bairros centrais, sobretudo a República, onde a taxa de detecção é de 132,4 infectados por 100 mil habitantes. No Brasil, o índice divulgado em 2016 é de 19,1. “O medo e o preconceito ainda são muito grandes. E o medo de descobrir a Aids é muito grande também”, afirma a médica.
Hoje, é possível manter um ritmo normal mesmo convivendo com o vírus. A imagem do infectado magro e calvo de filmes como “Filadélfia”, de 1995, e o mais recente “Clube de Compras Dallas”, de 2013, é quase passado, se os tratamentos forem cumpridos com rigor.
Uruguaiana, a cidade de Leo Cezimbra, pode ser considerada média, com cerca de 130 mil habitantes. Mas a localização, na fronteira com a Argentina, a mantém distante dos grandes centros. Como o pai é um comerciante muito conhecido, ele demorou a "sair do armário".
"A cidade era muito machista e tinha medo de não conseguir me relacionar. O pessoal é muito tradicionalista e deixa pessoas fechadas para o novo. Foi muito difícil no início. Quando veio o resultado desse exame, eu estava em outro armário. Fui sair disso primeiro com a minha família e só depois com o trabalho. Surgiram os boatos, e algumas alunas começaram a não fazer os exercícios comigo. Me evitavam. Quando eu contava, as pessoas choravam e desesperavam. Os amigos falavam: ‘Tu, não!’", diz Cezimbra.
“Essa reação é por falta de informação. Elas se acham protegidas porque elas vivem bem relacionadas, bem. Eu tinha uma turma de hidroginástica de mais 40 alunos. As pessoas falavam: ‘Você é sarado, malhado’. Eu falei: ‘Vocês acham que o soropositivo fica como o Cazuza’. É o estigma que ainda está muito presente.”
[Na época do diagnóstico] eu estava com o corpo em dia. Tirava muita foto sem camisa e me depilava. Entrei em um rio e comecei a ter furúnculos. Dois, três, um atrás do outro. Fiz os exames em um laboratório. Pedi para incluir HIV. No mesmo dia, veio o resultado de todos, menos o HIV. Entrei em pânico. Achava que ia morrer em dois meses. No primeiro dia falei para toda a minha família. E isso me ajudou muito
Leo Cezimbra, professor e modelo, soropositivo desde os 31
Há um consenso de que o fato de a luta contra a doença, nos anos 1980, não ter sido vivida pela geração que hoje tem até 30 anos gera uma sensação de "normalidade". Não que apenas isso justifique o risco e o aumento de detecção, mas entidades e governo afirmam que é preciso mudar as campanhas e o meio de abordagem.
“Eu acho que as pessoas sabem que existe um tratamento que não é fácil, mas melhora a qualidade de vida. A mortalidade tem diminuído ao longo da década e é um tratamento muito eficaz. É o que faz vencer o medo. O caminho ainda é longo, precisamente na população chave. A característica das populações é com jovens. Na cor da pele, são pretos e pardos. E o perfil é de sexo entre homens na região central [de São Paulo]. É lá que está nossa concentração”, afirma Caraciolo.
Entre as décadas de 80 e 90, morreram vítimas de complicações causadas pelo HIV astros hollywoodianos, como o ator Rocky Hudson (o primeiro superstar afetado pela doença), de novelas da Globo (Sandra Bréa e Lauro Corona) e ídolos do pop rock brasileiro, como Cazuza e Renato Russo.
“A gurizada de 20 anos começou a perceber que o HIV tem tratamento. É visto como uma infecção crônica. Só vai ao óbito se não aderir ao tratamento. Mas não viu o terror, gente que admirávamos morrendo da Aids. O vírus não era controlável. Nos EUA, foi um massacre”, diz Cezimbra.
As gerações mais velhas viram formas graves da Aids e tomaram outras atitudes. A juventude, com esses novos métodos [de tratamento], fica mais tranquila. É preciso achar novas formas de falar com os jovens sobre a infecção. A saúde pública precisa usar as mídias sociais, os aplicativos de encontro. As outras populações estão respondendo bem, a dificuldade é chegar ao jovem
Joselita Magalhães Caraciolo, médica infectologista
O método, afirmam, é a inserção em redes sociais e em canais do YouTube, como defende a editora-chefe da Agência de Notícias da Aids, Roseli Tardelli, ex-apresentadora de programas na TV Cultura, como o "Roda Viva".
“É preciso criar uma estratégia de comunicação para atingir os jovens. Não sou a favor de campanhas de medo, mas respeitar e informar melhor sobre HIV. Todo mundo é vulnerável. É preciso mudar essa estratégia: mostrar aos jovens que não viram a situação da Aids no começo. A gente tem que mudar a estratégia de comunicação e usar as redes sociais.”
O que é a terapia antirretroviral:
- Foi usada pela primeira vez em 1996 e envolve uma combinação de três remédios ou mais para impedir a multiplicação do vírus HIV no corpo humano.
- O tratamento permite a prevenção de danos causados pelo HIV no sistema imunológico.
- Remédios ainda mais eficientes descobertos recentemente têm menos efeitos colaterais do que os primeiros.
- A OMS (Organização Mundial da Saúde) recomenda que a terapia antirretroviral comece o mais cedo possível depois do diagnóstico do vírus.
Novos métodos
Tratamentos recentes como a PEP (profilaxia pós-exposição), depois de uma situação considerada de risco, e a PreP (profilaxia pré-exposição ao HIV) --estratégia para evitar o contágio, com a utilização diária de um medicamento antirretroviral por pessoas não infectadas-- têm sido vistos como uma espécie de “salvaguarda” para a exposição ao vírus.
Se eles podem proteger do risco de infecção com o HIV, porém, eles não protegem de outras doenças sexualmente transmissíveis, além do teor invasivo --a PEP, por exemplo, exige um tratamento com duração de 28 dias.
Gabriel Estrêla, 25, youtuber da causa com quase uma centena de vídeos dedicados a desvendar mitos sobre a prevenção e a convivência com o HIV, fez um de seus programas para desnudar as dúvidas sobre o uso de PEP, por exemplo. Soropositivo desde os 18 anos, ele mantém o canal Projeto Boa Sorte, com os programetes “#EuFaloSobre”. São cerca de 15 mil inscritos.
No episódio, ele enumera dez verdades e mentiras sobre a PEP. “Tinha acabado de rolar um episódio de ‘Malhação’ com um personagem que ia tomar PEP numa ocasião equivocada. O primeiro passo foi falar de um negócio que estava há muito tempo fazendo um alarde. Existe a comparação de ser ‘a pílula do dia seguinte do HiV’, que é um recurso didático ótimo, mas é preciso explicar o que é. Há uma medicalização dos corpos. Deixei claro que usar medicamentos pode trazer efeitos colaterais.”
Um dos programas de Estrêla é com a mãe, que soube que o filho estava infectado antes mesmo que ele contasse. Hoje, o youtuber, que contraiu o vírus na adolescência, foca suas transmissões para as faixas etárias e os grupos mais vulneráveis à infecção.
“Este é o momento de fazer escolhas. Desde a carreira às pessoas que você vai levar para a vida inteira. Receber esse diagnóstico nesse momento chacoalha tudo. É o momento de respirar e reestruturar tudo. Nesse momento, as estruturas ainda estão frágeis [para o diagnóstico].”
Para uma campanha, não basta falar do ponto de vista, mas da história. É como a gente escolhe as narrativas. Não basta fazer campanha para a prevenção, mas para quem já está com o HIV
Gabriel Estrela, 25, soropositivo desde os 18 e youtuber
Estrêla não segue roteiros ou assuntos predefinidos em seu canal. Fala à medida que as questões surgem. As gravações são no quarto, na sala, em ambientes confortáveis. A interação é por meio dos comentários --é ali que dúvidas são tiradas e outras questões são levantadas.
“Percebi que o YouTube era uma ferramenta para falar do assunto. Em português, não tínhamos youtubers falando disso. Meu lema é sempre falar sobre quando há o silêncio. As palavras são muito importantes para a história que a gente conta. E isso não está relacionado ao diagnóstico positivo ou negativo. A gente precisa trazer todo mundo. Se eu foco em quem tem HIV, deixo a prevenção de lado. Se falo em prevenção, eu deixo quem tem como vilão. O grupo que segue meu canal é misto.”
O youtuber ouve os números passados pela reportagem. Compreende a alta entre os jovens e os homens que praticam sexo com outros homens, mas inclina a narrativa para uma conclusão mais sofisticada. “Número não relata vulnerabilidade. Vulnerabilidade tem a ver com a questão social. Quando falo em vulnerabilidade dos homens gay,s não é fazer sexo anal, mas chegar a um posto de saúde e não poder falar sobre suas práticas homossexuais. É preciso ter a ideia de que o gay não é grupo de risco, é a sociedade que leva à vulnerabilidade.”