"Adiei o casamento e abri mão de 3 empregos para tratar doentes na África"
Passar um mês de férias, na adolescência, numa das regiões mais pobres do Brasil foi marcante para Raquel Bandeira, 31, e decisivo para seu futuro profissional.
A mineira de Belo Horizonte tinha 17 anos quando foi ao Vale do Jequitinhonha (MG) com alguns amigos, onde ficaram parte do verão de 2004 entregando cestas básicas e cuidando de gente doente. Foi naquele momento que nasceu o sonho de ajudar "pessoas negligenciadas”, como ela chama os que têm problemas de saúde derivados da miséria. A região visitada tem alguns dos índices de desenvolvimento humano mais baixos do Estado.
“Eu decidi que ia fazer medicina, que queria ser infectologista e que ia para a ONG Médicos sem Fronteiras. Guiei minha formação para isso”, diz.
Em 2007, Bandeira entrou no curso de medicina da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e se mudou, logo após se formar, para a cidade de São Paulo, onde se especializou no instituto de infectologia do hospital Emílio Ribas, referência nacional no tratamento de doenças infectocontagiosas, como Aids e hepatite.
Pouco antes de concluir a residência, a médica se inscreveu no processo de seleção da ONG Médicos sem Fronteiras (MSF) e, em março de 2016, embarcou para Moçambique. Por seis meses, ela ficou em Maputo, a capital do país no sul da África.
Não foi fácil, contudo, tomar a decisão de se mudar. Havia muita coisa importante em jogo: a carreira, o namoro, o conforto de casa, como contou à reportagem do UOL.
“Adiei o casamento para realizar meu sonho”
Quando terminou a residência em infectologia, Bandeira tinha à disposição três ofertas de emprego: passar uma temporada em Miami (EUA), onde faria um estágio em um laboratório de pesquisas ultramoderno, ou assumir uma das duas vagas em hospitais no Brasil para as quais havia sido aprovada em concursos públicos.
Além disso, ela e o namorado, juntos desde a faculdade, se casariam em 2016. Só que nada disso aconteceu.
“É muito fácil você perder seus sonhos ao longo desta caminhada. Se eu não fizesse isso, ia me sentir frustrada pelo resto da minha vida", afirma.
Doze anos após o contato com famílias pobres do Jequitinhonha, a médica abriu mão das oportunidades profissionais e remarcou o casamento para 2018 --o noivo, também médico, compreendeu sua vontade e acompanhou a experiência à distância, permanecendo no Brasil.
O meu sonho se realizou. Aos 30 anos, que eu completei em Moçambique, eu estava onde queria
Raquel Bandeira, médica infectologista
“Queria o pior possível, mas tive ‘regalias’ como voluntária”
Bandeira foi recrutada pela MSF para trabalhar em um hospital-dia, um centro de referência para o tratamento de Aids em Moçambique, mas onde os doentes não pernoitam durante o tratamento.
Ela atendia pacientes com alta resistência aos medicamentos antirretrovirais e que, por causa disso, tinham imunidade muito baixa e desenvolviam doenças graves: tuberculose, sarcoma de Kaposi (um tipo de câncer de pele, com a propagação de manchas escuras) e síndromes neurológicas.
De acordo com a médica, a Aids é a primeira motivadora de mortes entre adultos no país africano e a segunda entre crianças. A expectativa de vida da população não passa de 55 anos de idade, com alta transmissão vertical (de mãe para filho) do vírus HIV.
“Várias vezes me perguntaram por que eu estava indo para a África, em vez de trabalhar no Brasil. Para mim, é importante salvar uma vida, não importa onde seja. Não tem diferença tratar um africano em Moçambique ou um brasileiro em Minas Gerais”, ela afirma.
Como explica a médica, outra motivação para se voluntariar foi o fato de Moçambique ter muitos doentes e pouquíssimos profissionais para assisti-los.
“Na cidade de Maputo, eu era a única infectologista na assistência médica. Não existia residência em infectologia, então não tinha como formar infectologistas no país, só quem ia para fora. Só havia eu e uma outra médica infectologista na assistência, uma cearense, no norte do país, também pela MSF. Só isso. Na linha de ataque, no front, não havia profissionais”, conta.
A mineira ficou hospedada em uma casa mantida pela ONG e se surpreendeu com a infraestrutura. Ela tinha acesso a "regalias" como cama, banho quente e luz elétrica.
“Quando eu me inscrevi, eu tinha uma visão de uma missão completamente diferente da que eu vivi lá. Eu imaginava ir para um lugar sem infraestrutura nenhuma, para um campo de refugiados, sem luz, tomando banho de balde, talvez em um ambiente de guerra civil e violência. Me preparei para esse tipo de situação. E eu queria ir para o pior possível. Em Maputo, por ser uma capital, eu tinha algum conforto.”
“Nunca tinha visto pessoas passando fome”
Se a faísca para se tornar uma voluntária surgiu diante da pobreza do Vale do Jequitinhonha, em 2004, o que Bandeira viu na África foi algo inédito em sua experiência de vida: gente que não conseguia ir para as consultas agendadas porque estava havia dias sem comer.
“Eu nunca tinha visto ninguém passando fome na vida. Mesmo quando fui para o Vale do Jequitinhonha, a pessoa podia não ter uma comida balanceada naquela região, mas tinha um arroz e feijão. Lá em Maputo, não. Eu vi gente que estava há três dias sem comer”, ela relata.
A médica também ficou impressionada com a “miséria feminina”. Ela diz que é aceito, embora não oficialmente, que um homem se case com mais de uma mulher, mas muitas são abandonadas após serem infectadas com HIV pelo marido.
“Em Moçambique, às vezes um homem tem três ou quatro mulheres. Ele vai para outros países trabalhar, contrai o vírus, volta para casa e passa o HIV para elas. E aí esse cara some no mundo”, ela afirma. “Uma situação que vi em visitas a casas de pacientes era a de três ou quatro mulheres morando juntas com umas dez ou 12 crianças, sem uma figura masculina, todas doentes e sem condições de comer porque não trabalhavam.”
"Tratei pacientes ‘condenados’ e fui chamada de feiticeira"
Segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde), em 2016, 1,8 milhão de pessoas viviam com HIV em Moçambique (cerca de 6% da população total). A organização estimava em 62 mil mortes em decorrência da Aids e 83 mil novas infecções naquele ano.
Moçambique ainda tem um grande número de mortes, simplesmente porque não é possível tratar as doenças “oportunistas” que atacam os soropositivos por sua baixa imunidade. Para piorar, culturalmente, muitos infectados acreditam que podem se curar sem fazer tratamento médico.
Muita gente lá acha que HIV é feitiço. Eu atendi pacientes que usavam uma cordinha na cintura para ‘quebrar o feitiço’
Raquel Bandeira, médica infectologista
"Pacientes que já estavam 'condenados' e melhoraram começaram a me chamar de feiticeira. Mas para o lado do bem", ela afirma. "Eu fazia que eles melhorassem com medicação, que é o que resolve.”
Antes de responder à pergunta “Como podemos ajudar alguém?”, a médica suspira por alguns segundos. Até que diz:
“A gente ajuda uma pessoa até com um sorriso. Dá para ajudar de inúmeras formas. Não adianta, por exemplo, fazer uma caridade, mas ser grossa com as pessoas ao seu redor. É o que vem do coração, encontrar no dia a dia maneiras de ajudar o outro. Porque, diretamente, a gente ajuda é a gente mesmo. Você vai para uma missão humanitária querendo salvar os outros, mas quem se salva é você”.
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