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"Eu nasci de novo", diz 1º sobrevivente de raiva humana do país

Marciano Menezes da Silva, primeira pessoa a sobreviver à raiva humana no Brasil, posa para foto em Floresta - Fabiana Maranhão/ UOL
Marciano Menezes da Silva, primeira pessoa a sobreviver à raiva humana no Brasil, posa para foto em Floresta Imagem: Fabiana Maranhão/ UOL

Fabiana Maranhão

Colaboração para o UOL, em Floresta (PE)

17/01/2018 04h00

Em sua cadeira de rodas e com um sorriso largo, Marciano Menezes da Silva, 24, recebeu a reportagem do UOL na manhã do último domingo (14) em sua casa em Floresta, no sertão de Pernambuco, distante cerca de 430 km do Recife. Ele foi a primeira pessoa a sobreviver à raiva humana no Brasil, isso dez anos atrás. Um segundo caso foi registrado este mês no Amazonas.

Ele se curou da doença, transmitida pela mordida de um morcego e que leva à morte em quase 100% dos casos, mas até hoje convive com as sequelas: não anda, tem um desvio na coluna, dificuldade para abrir e fechar as mãos e para movimentar os braços, além de alteração na fala.

O jovem vive na zona rural. Cerca de 45 km de asfalto e 12 km de estrada de terra separam o centro da cidade e o sítio onde mora com a família. É lá que Marciano passa a maioria dos seus dias, saindo apenas para consultas médicas em Floresta ou no Recife.

Com uma cadeira de rodas motorizada, movida à bateria, que ganhou de doação há cerca de um ano, ele consegue ter um pouco de autonomia para se locomover em casa e depender menos de seus parentes."Eu não esperava [ganhar a cadeira]. Me senti muito feliz. [Com ela,] posso andar para onde eu quero, sem precisar que alguém me carregue", fala de forma pausada.

No entanto, o jovem ainda precisa de ajuda para outras ações cotidianas, como tomar banho e sair da cama para sentar na cadeira. "Mas botou na cadeira, ele se vira", conta o pai, o agricultor João Gomes de Menezes, que tem outros sete filhos, além de oito netos.

Pela manhã, Marciano costuma passear pelo sítio, "olhar os bichos" e de vez em quando visita parentes que moram por perto. Depois do cochilo da tarde, ele não sai da frente da TV na sala: assiste a telejornais e acompanha várias novelas, sempre com um copo de café na mão. "Você é noveleiro?", pergunto. "Sou!", diz Marciano, caindo na gargalhada.

A rotina do jovem, que estudou até a antiga 7ª série do Ensino Fundamental, também inclui jogos de dominó com a família. "É um divertimento". Apesar de jogar quase todo dia, ele não acredita que seja bom nisso.

À noite, nada de sair de casa, para evitar ser atacado novamente pelos morcegos que rondam o local. "Tenho medo", fala. "A gente nunca pensou que um animalzinho desse podia causar isso", lembra o pai.

Luta para sobreviver

O jovem foi atacado por um morcego em um domingo. "Era 7 de setembro [de 2008]", lembra com exatidão o pai, que só conseguiu levar o filho ao posto de saúde do vilarejo no dia seguinte. Lá, foi orientado a procurar a unidade de saúde da cidade para que fosse aplicada vacina antirrábica.

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O pai João Gomes de Menezes e seu filho Marciano
Imagem: Fabiana Maranhão/ UOL

Para surpresa de seu João, o médico que atendeu Marciano informou que não seria necessária a vacinação porque ele não apresentava sintomas. Cerca de um mês depois de ser mordido, o então adolescente começou a ter febre alta, dor nas costas e dormência nos braços e pernas: o vírus já tinha se instalado em seu corpo.

O jovem foi encaminhado para tratamento no HUOC (Hospital Universitário Oswaldo Cruz), ligado à Universidade de Pernambuco, no Recife, onde os médicos deram a ele entre sete e dez dias de vida.

Os médicos do HUOC aplicaram, no caso de Marciano, procedimentos inspirados no Protocolo de Willoughby, tratamento desenvolvido em 2004 pelo médico norte-americano Rodney Willoughby Jr., responsável pelo primeiro caso no mundo de cura da doença em paciente que não recebeu a vacina. O protocolo prevê coma induzido e utilização de antivirais.

Após um mês no hospital, o jovem recebeu o diagnóstico de que estava livre do vírus, mas ainda teve de ficar cerca de um ano internado por causa das sequelas deixadas pela doença. Depois de receber alta e voltar para casa, ainda passou outro ano indo quase toda semana ao Recife, para consultas de acompanhamento.

Inicialmente desenganado, Marciano entrou para a história do país e até mundial, já que foi o 4º caso de cura da doença em todo o mundo. Antes dele, foram registrados dois nos Estados Unidos e um na Colômbia. "Eu sinto que nasci de novo", diz. "Eu me sinto muito aliviado; foi um milagre", acrescenta o pai.

Voltar a andar

Mesmo dizendo e demonstrando estar feliz e satisfeito com sua cadeira de rodas motorizada, Marciano alimenta o sonho de voltar a andar. "Tenho [esperança]. A esperança é a última coisa que morre".

Seu João lembra que, na época do incidente, os médicos afirmaram que Marciano poderia um dia voltar a caminhar. "O ortopedista que fez a cirurgia nele deu esperança que ele podia ter condição de andar, mas que dependia muito de fisioterapia, do esforço dele e também do tempo".

Até hoje, Marciano faz sessões de fisioterapia na unidade de saúde de Floresta, embora sem uma frequência definida. E há cerca de dois anos está na fila de espera para passar por uma cirurgia na coluna. "Acho que ele podia ter uma chance [de voltar a andar] se fizesse a cirurgia para ‘aprumar’ a coluna", diz o pai. Segundo ele, não há previsão para que a operação seja feita.

Outro desejo de Marciano é ter um ar-condicionado em seu quarto, para suportar o calor do sertão pernambucano. A temperatura na cidade beira facilmente os 40ºC. Quem fala sobre esse sonho é o pai. Quando perguntado sobre isso, Marciano sorri e fica calado. "Ele tem cerimônia", brinca o pai.

Raiva humana

A raiva é uma encefalite aguda (inflamação do cérebro) causada por vírus transmitido por mamíferos infectados, principalmente cães, gatos, morcegos e saguis. Ao ser mordida por um animal, a pessoa deve procurar imediatamente uma unidade de saúde para receber o tratamento adequado, que inclui soro e vacina, para prevenir a doença.

Os sintomas da raiva começam a aparecer, em geral, entre duas semanas e três meses após o ataque e incluem mal-estar, febre, dor de cabeça, náusea, dor de garganta, fraqueza, dormência e mudanças de comportamento. Depois do surgimento dos sintomas, a doença causa morte na grande maioria dos casos.