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'Sofro mais por ser mulher negra do que por ter HIV', diz artista plástica

Talita Martins

Da Agência Aids

08/03/2018 16h59

Apesar de ter perdido um pouco do sentido original, adquirindo um caráter festivo e comercial, o Dia Internacional da Mulher foi criado a partir de protestos de mulheres dos Estados Unidos, da Europa e da Rússia, que reivindicavam, no início do século 20, condições de vida mais adequadas, melhores empregos e direito ao voto.

Ainda hoje, muitas mulheres lutam por causas sociais, em defesa da democracia, da igualdade de gênero e contra o racismo. As que vivem com HIV/aids, por exemplo, lutam contra o estigma e a discriminação e a favor da saúde sexual e reprodutiva.

Dados do Unaids (Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids) mostram que cerca de 870 mil mulheres se infectam com o HIV todos os anos no mundo e só metade delas tem acesso ao tratamento antirretroviral. Isso coloca a aids como a maior causa de mortes entre mulheres em idade reprodutiva (de 15 a 49 anos) em todo o mundo.

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O Brasil registrou, de 1980 até junho de 2017, 306.444 (34,7%) casos de aids em mulheres. Hoje, a aids cresce entre aquelas que têm 15 e 19 anos de idade, mas apresenta queda entre as de 20 a 59 anos, para voltar a crescer entre as com mais de 60 anos.

As negras representam 59,6% dos casos de mulheres com HIV no Brasil, segundo Boletim Epidemiológico de 2016 do Ministério da Saúde.

Em homenagem ao Dia Internacional da Mulher publicamos a seguir o relato de mulheres que vivem com HIV/aids e lutam pela vida: 

Micaela Cyrino - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal
 

  • Micaela Cyrino, artista plástica e integrante da Rede Mundial de Mulheres Vivendo com HIV/Aids

"Sempre sofri preconceito por viver com HIV e ser negra. Mas uma coisa é a "sorofobia", que tem cada vez menos importância na minha vida. Outra é o racismo que sofro diariamente.

O HIV é a parte clínica, tenho o vírus e tomo remédios todos os dias, isso é inegável, e sei lidar muito bem com a minha saúde e patologia. Só que ser mulher negra nessa sociedade é sofrer racismo e assédio. E essa questão me atinge mais profundamente.

Não está estampado no meu rosto que vivo com HIV. Na rua, as pessoas que não me conhecem não sabem da minha sorologia, mas sabem que sou uma mulher negra. Então, o racismo e o machismo estão presentes de forma mais agressiva no meu dia a dia.

Quanto ao HIV, acredito que temos de mudar as estratégias de controle da epidemia e ter um olhar especifico para a qualidade de vida de quem já vive com o vírus a muito tempo. Precisamos de estratégias que levam em conta os efeitos colaterais dos medicamentos e as questões sociais. Os jovens que nasceram com HIV têm poucas perspectivas de vida e oportunidades de trabalho."

  • Rafaela Queiroz, psicóloga e secretária de comunicação do MNCP (Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas)

"Nesse Dia da Mulher é preciso lembrar que somos mulheres vivendo com HIV/aids todos os dias. E refletir todo caminho percorrido em busca da sobrevivência e resistência. Eu sempre vivi com HIV, então não tenho como comparar o antes e o depois da infecção, tive que aprender desde nova as perdas da aids, mesmo não fazendo ideia do quanto ela seria presente em minha vida. Sou filha da epidemia, tive que passar e passei pela infância e adolescência, agora estou na juventude, nesta é que realmente tenho experimentado inúmeros fatos do que é realmente ser mulher vivendo com HIV.

Rafuska Queiroz - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal
Ser mulher vivendo com HIV vai muito além de enfrentarmos uma sociedade e um mundo machista e misógino, temos que lutar também por nossos espaços, por lugar de fala e por participação ativa na busca dos nossos direitos, pelo respeito e por equidade. Queremos e temos que continuar vivas mesmo que os antirretrovirais afetem significativamente nossos corpos e nossa saúde mental. Que nosso emocional não seja abalado por discriminações e exclusões no convívio familiar, amoroso e de trabalho.

Ser mulher vivendo com HIV/Aids é aprender a se amar, se aceitar e lutar por uma melhor qualidade de vida. É ter direito de amar quem quiser amar, constituir uma família da forma que quiser, de trabalhar com o que quiser. Ser mulher vivendo com HIV/aids é poder ser amada, respeitada e cuidada. É ter políticas públicas que assegurem e realizem nossos direitos de fato e não que fiquem engavetados ou esquecidos. 

Ser jovem, negra, mulher vivendo com HIV de transmissão vertical é querer ser enxergada como uma pessoa que tem sonhos, desejos e quer viver de uma forma digna, com respeito, amor e sem efeitos colaterais!

  • Jacqueline Rocha Côrtes, 58, vive com HIV há 24, é transexual, mãe e integrante da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids

"O primeiro desafio de ser mulher vivendo com HIV/aids é manter-se viva, dada a cronicidade e a toxicidade da doença. Nos esforçamos para viver bem e vivemos da melhor maneira possível, não somos vítimas de nós próprias, lutamos a cada dia. Vivo com aids desde 1994, sou de uma época que não existia o coquetel antirretroviral e não se tinha esperança de vida. Sobrevivi.

Jacqueline Rocha Côrtes - Arquivo pessoal  - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal
Hoje, tenho dois filhos, sou casada, sou uma mulher transexual, fiz a minha cirurgia de redesignação sexual em 2001, e o HIV não me impediu de seguir a vida, na verdade ele me impulsionou.

Muitas dificuldades que nós mulheres com HIV/aids enfrentamos tem a ver com o descaso, o estigma, o preconceito e a discriminação que sofremos diariamente.

Lutamos pelo direito de ser mulher, prostituta, mãe e trans. Lutamos contra a violência, o racismo, a LGBTfobia, a misoginia.

Além disso, temos que ter disciplina e rigor com o tratamento. Não estou falando só de tomar medicamentos, é a adesão a sua própria aids, ao acompanhamento médico, aos exames laboratoriais. Estou falando de infecções oportunistas, da saúde mental que afeta muito a gente, do emocional abalado, do estresse e dos desafios outros que a vida nos traz.

Ter aids, ser mulher e ser pobre é mais difícil do ser ter aids e ser rica; ter aids, ser pobre e ser negra é mais difícil ainda. Ser mulher, ser trans, ter aids e ser negra é um desafio diário, porque cada uma de nós tem as suas especificidades. Viver com aids não é fácil, muitos dizem que tem tratamento e é tranquilo, mas não é. As pessoas podem viver, mas exige disciplina.

Seguir firmes e poderosas demanda um grau de esforço muito grande de uma mulher vivendo com HIV/aids. Muitas informações não circulam. As pessoas ainda não estão familiarizadas com a questão de políticas públicas combinada, a massa não sabe o que é PrEP (profilaxia pré-exposição) ou PEP (profilaxia pós-exposição)."