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Cancelamentos, sobrecarga e filas marcam dia de quem assumiu Mais Médicos

Atendimento em UBS de Embu Guaçu: dos 15 médicos que se inscreveram apenas seis foram trabalhar na cidade paulista - Rafael Roncato/UOL
Atendimento em UBS de Embu Guaçu: dos 15 médicos que se inscreveram apenas seis foram trabalhar na cidade paulista Imagem: Rafael Roncato/UOL

Alex Tajra, Carolina Marins e Wanderley Preite Sobrinho

Do UOL, em São Paulo

14/12/2018 21h29

A UBS Parque Lanel, em Franco da Rocha (47 km da capital paulista), foi a única daquela cidade a não preencher todas as vagas deixadas pelos médicos cubanos no programa federal Mais Médicos.

Com uma média de 11 mil pacientes por mês, a unidade de saúde está desde o último dia 23 sem atender pacientes. Um novo médico assumiu o posto nesta sexta-feira (14), com um alto volume de consultas, mas há ainda uma vaga não preenchida que deve deixar mais de 500 pacientes desassistidos.

Os profissionais cubanos eram os dois únicos médicos da UBS. Com a saída do país da parceria, a unidade teve de cancelar as consultas agendadas e interromper os atendimentos. Durante esse período, a equipe de enfermagem se desdobrou para cuidar dos casos mais simples. O resto foi encaminhado à UPA (Unidade de Pronto-Atendimento) da região, que fica a 3 km de distância dali.

Nesta sexta-feira (14), o posto conseguiu retomar alguns atendimentos, já que chegou um médico de São Paulo. A outra vaga, ainda aberta, não recebeu inscrição. O temor do gerente da UBS, Luiz Gustavo Feitosa, é sobrecarregar o novo profissional. "Temos duas equipes de Estratégia da Família, é um médico por equipe. Eu não tenho como sobrecarregar um médico para atender as duas equipes. São aproximadamente 11.600 pessoas atendidas mensalmente", contou ao UOL.

Marilene Guedes, de 47 anos, foi uma das pacientes que precisou ir até a UPA para tratar de diabetes e pressão alta. Ela lamentou a saída da médica Marisol, cubana que atendia no posto desde 2013. "Ela era muito boa. Atendia muito bem, dava atenção para o paciente. Foi muito ruim o tempo sem ela, fez muita falta", conta. Antes de ir embora, no último dia 2, Marisol deixou receitas para que Marilene conseguisse retirar as necessárias medicações.

Nesta sexta, Marilene voltou à UBS para tentar marcar consulta com o médico recém-chegado. Mas a expectativa é que consiga agendamento apenas em janeiro.

O mesmo aconteceu com Bento Vieira da Silva, de 71 anos. Sofrendo com a baixa audição e catarata, fazia todo seu acompanhamento com a médica cubana. "Ela era uma boa doutora. Depois que saiu, ficou mais difícil, precisei marcar com outro médico."

Sofrendo de pouca audição e catarata, Bento Vieira da Silva, de 71 anos, fazia todo o seu tratamento na UBS de Franco da Rocha com uma médica cubana - Gabriela Cais Burdmann - Gabriela Cais Burdmann
Sofrendo de pouca audição e catarata, Bento Vieira da Silva, de 71 anos, fazia todo o seu tratamento na UBS de Franco da Rocha com uma médica cubana
Imagem: Gabriela Cais Burdmann

O novo médico se apresentou há alguns dias. A equipe da unidade de saúde reagendou as consultas perdidas nas últimas semanas e o volume de trabalho ficou intenso.

A diretora de atenção básica de Franco da Rocha, Alessandra Miranda, contou que a expectativa é para que o médico decida continuar na unidade. Segundo ela, a localização da UBS explica a falta de interesse dos médicos brasileiros.

"Os médicos ligam para perguntar se tem metrô aqui perto. E não temos", relata. "É um município que evoluiu muitíssimo, mas é marcado por ser uma cidade-dormitório, de baixa renda". A estação de trem mais próxima, da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), fica a 7 km do posto. Os cubanos costumavam morar nos arredores de suas unidades, o que facilitava os atendimentos.

O prazo final para apresentação dos médicos era esta sexta, mas ele foi estendido para a próxima terça-feira (18). As inscrições também foram prorrogadas para domingo (16) para brasileiros e estrangeiros formados no exterior que não possuem registro no Brasil (leia mais sobre o cronograma abaixo).

No último balanço do Ministério da Saúde, 5.352 médicos já compareceram ou iniciaram atividades, cerca de 64% das vagas ocupadas do edital. Quem aceitar a vaga receberá uma bolsa de R$ 11,8 mil. 

'A responsabilidade acaba sendo minha', diz enfermeira

No posto de saúde Valflor, em Embu-Guaçu, é a enfermeira Sheila Ferreira, 40, quem atende a população - Rafael Roncato/UOL - Rafael Roncato/UOL
No posto de saúde Valflor, em Embu-Guaçu, é a enfermeira Sheila Ferreira, 40, quem atende a população
Imagem: Rafael Roncato/UOL

Dos 15 médicos que se inscreveram para atuar em Embu Guaçu (a 49 km da capital), apenas seis foram trabalhar ao longo do mês. Os dois que prometeram dar expediente a partir desta sexta (14) não apareceram. "Nós tínhamos 18 equipes da família, 15 médicos eram cubanos. Terminei com três médicos", contabiliza a secretária municipal de Saúde, Maria Dalva.

Sem profissionais, os postos da ESF (Estratégia Saúde da Família) atendem a população como podem. Algumas unidades emprestam especialista de regiões vizinhas; outras só podem contar com o trabalho dos enfermeiros. 

Há um ano lotado no posto Flórida, o médico Eduardo Galhardo, 32, recebeu o UOL no consultório da UBS Lagoa Grande, onde bate ponto toda sexta-feira desde a saída da colega cubana. "A sexta era o dia que eu dedicava oito horas para requalificação profissional, como exige o programa. Então me voluntariei para, na folga, vir trabalhar nesta unidade sem médico."

No restante da semana, quem se vira é a enfermeira Priscila Alves da Silva, 36. "Todos os pacientes passam comigo agora. Eu faço a triagem e decido o que fazer com eles. Se é urgente, mando para o pronto-socorro, se não, agendo para passar com o médico no dia da semana em que ele está aqui. A fila só cresce", diz. 

Galhardo também tem mais trabalho em seu posto de origem porque a outra médica cubana que atendia no Flórida precisou entregar o cargo. "Conseguimos encaixe para urgências, mas a maioria das 25 consultas diárias da médica são canceladas." Ele lembra que, quando a equipe de 18 médicos estava completa, cada um realizava, em média, 260 atendimentos por mês --4.680 no total. "As visitas domiciliares viraram lenda", diz.

Apesar da recusa de muitos médicos em trabalhar no município de 72 mil habitantes, Galhardo escolheu Embu Guaçu porque um avô mora no município. Sul-mato-grossense, ele diz que os colegas médicos não pensam em morar em uma cidade sem opção de lazer e de difícil deslocamento. "As pessoas não querem viver nem viajar todo o dia para cá."

O médico Eduardo Galhardo, que atua na UBS Recando Lagoa Grande, do bairro Flórida, em Embu-Guaçu, onde médicos cubanos do programa Mais Médicos atendiam regularmente uma alta demanda de pacientes - Rafael Roncato - Rafael Roncato
O médico Eduardo Galhardo atua às sextas-feiras na UBS Recando Lagoa Grande, em Embu Guaçu
Imagem: Rafael Roncato

Em outro canto da cidade, a situação é ainda mais grave. Sem opção de médico substituto, é a enfermeira do posto Valfror, Sheila Ferreira, 40, quem atende a população. Ao longo da quinta-feira (13), ela precisou cuidar de 11 gestantes. "Há 20 dias que elas só passam com enfermeiros."

Na semana passada, ela passou por um susto quando um paciente com diabete elevada passou mal. "Liguei para o Samu, mas não tinha ambulância. Então o médico foi me passando as instruções pelo telefone: 'Põe no soro, aplica insulina regular para baixar a glicemia'. Eu fico muito insegura nessas ocasiões porque tem protocolo que não me cobre. A responsabilidade acaba sendo minha."

Paciente da unidade, a cuidadora voluntária Maria Aparecida Botelho, 51, se emociona ao se recordar da cubana que trabalhava no Valflor. "Uma excelente médica. A gente sentia a humanidade nela." Há cinco anos diagnosticada com um aneurisma torácico abdominal, ela só conseguiu encaminhamento para cirurgia quando a médica cubana passou a atender na região. "Nunca me encaminhavam. No Brasil, filho de papai não põe a mão em pobre nem vem morar na periferia", desabafa. 

Conhecida no bairro por há anos ajudar a socorrer pacientes da região, Maria Aparecida agora tem trabalho dobrado. "Não tem médico. Estou desde as 5h andando para lá e para cá com um paciente idoso. Passei por seis postos, mas não tem quem atenda." Sem equipe na ESF, o pronto-socorro da cidade fica lotado. "Na Estratégia Saúde da Família, o médico investiga as causas da doença e cuida do problema. Agora o paciente vai direto para o hospital, toma um analgésico e volta para casa ainda doente. Quando descobre a causa, já é tarde." 

'Não é só grana', afirma recém-formado

Na ESF Penteado, ainda na periferia de Embu Guaçu, a novidade é o médico recém-formado Rafael Barofaldi Bueno, 35. Paranaense radicado em Rondônia, Rafael é um dos poucos que se inscreveram e começaram a trabalhar na cidade. "Escolhi Embu Guaçu pela proximidade do município de São Paulo e pela qualidade de vida em uma cidade pequena."

Rafael não pretende deixar Embu Guaçu pelos próximos três anos de contrato: "Estou muito feliz por ter vindo. Consigo fazer meu trabalho, tenho tempo para estudar e aproveitar a qualidade de vida". Então por que outros médicos não aceitam a vaga?

O médico lembra que ele vem "de uma realidade amazônica, pesada, pior do que aqui. Em Embu Guaçu, há transporte, remédios e mais médicos do que lá". "Em Rondônia, o paciente leva 40 horas em um barco para chegar a uma consulta", compara. Mas ele entende as razões de outros médicos que dispensam o cargo: "Tem a questão financeira, mas tem a profissional também. Você se desaponta porque o estado não te dá condições de trabalho em regiões carentes. Isso nos afeta, a gente se culpa por não trazer resultados, é depressivo. Não é só grana, é realização pessoal também."

Na porta do posto, a dona de casa Tamires da Silva Santos, 19, gostou do novo médico, mas lembra saudosa do cubano que diagnosticou a pneumonia da filha, de 10 meses. "Os brasileiros diziam que ela não tinha nada. Foi o cubano que viu na primeira consulta, já chamou a ambulância e resolveu na hora."

Falta de médico desloca estreante para outra UBS

Já na periferia de Jandira (a 34 km da capital), a UBS Santa Tereza preencheu três das cinco vagas deixadas pelos médicos cubanos. Uma das novas profissionais se apresentou nesta sexta pela manhã, mas ainda não começou os trabalhos. "É uma cirurgiã e veio aqui comunicar que vai começar na segunda-feira. Ainda não sabemos quando vão vir os outros médicos", disse o coordenador da unidade, Reginaldo Duarte, ao UOL

Segundo Duarte, que ocupa o cargo há cerca de quatro meses, o município recebeu três novos médicos do programa nesta sexta e outros dois na última quinta (13). Jandira é uma das cidades da região onde havia mais médicos cubanos atuando, principalmente nas áreas mais pobres. Comparada às cidades próximas, como Osasco e Barueri, a cidade fora preterida por conta da estrutura precária. Ao todo, 34 profissionais da ilha trabalhavam na cidade.

A médica Larissa Corvelloni, 26, iniciou o trabalho recentemente na UBS Santa Tereza, em Jandira, mas teve de ser deslocada para atender em um posto onde não havia médicos - Foto: Edson Lopes Jr./UOL - Foto: Edson Lopes Jr./UOL
A médica Larissa Corvelloni, 26, iniciou o trabalho recentemente na UBS Santa Tereza, em Jandira, mas teve de ser deslocada para atender em um posto onde não havia médicos
Imagem: Foto: Edson Lopes Jr./UOL


Uma das médicas a assumir o posto na UBS Santa Tereza, Larissa Corelloni, que já havia conversado com o UOL em seu primeiro dia no Mais Médicos, teve de ser deslocada para outro posto da região por conta da falta de profissionais. Três dias após conversar com a reportagem, foi designada para cobrir a ausência de médicos na UBS Analândia, a cerca de 2 km da Santa Tereza.

Corvelloni contou à reportagem que voltara para UBS em que iniciou seus trabalhos na última quinta (13), após duas semanas atuando na unidade de Analândia. "Eu já havia me adaptado aqui, as pessoas estão gostando, mas onde precisar eu vou ajudar", conta. Questionada sobre a ausência do número ideal de médicos, a médica diz que a chegada dos profissionais já ajudou a retomar os trabalhos, mas que ainda há muita coisa para se fazer. "Três é melhor do que um", diz.

Resultado para residências pode gerar debandada

Larissa, que cursou a universidade por meio do ProUni e se formou em novembro deste ano, afirma que a maioria de seus colegas de classe que tentaram vaga no Mais Médicos também passaram pelo programa de inclusão na educação. "Nós queremos retribuir o que o governo fez, já que tivemos ajudo para concluir os estudos, vamos contribuir atuando nessas áreas mais carentes. Até pela nossa origem, pelo que passamos, acredito que meus colegas também pensem assim."

Tanto a médica como o coordenador Reginaldo Duarte levantam, no entanto, uma questão que pode se tornar comum nos próximos meses. Os médicos recém-formados, mesmo os que se inscrevem no Mais Médicos, costumam prestar provas de residências para fazer especialização. Segundo Corvelloni, existe um risco de uma debandada de médicos em fevereiro e março, quando os resultados dessas provas são divulgados e muitos médicos podem preterir o programa para cursar as residências.

"Eu já tive a informação que um médico que vinha para Jandira desistiu da vaga para fazer a residência", conta Duarte. "É comum que boa parte dos médicos queira atuar em áreas específicas, em grandes hospitais, até porque o curso de medicina é ainda muito elitista. E é um ambiente muito diferente dos postos de saúde, das áreas mais pobres", argumenta Corvelloni à reportagem.

10 dias sem médicos

 Na UBS Analândia, em Jandira, um mural ainda mostra os nomes dos médicos cubanos que atuavam na unidade - Edson Lopes Jr./UOL - Edson Lopes Jr./UOL
Na UBS Analândia, em Jandira, um mural ainda mostra os nomes dos médicos cubanos que atuavam na unidade
Imagem: Edson Lopes Jr./UOL

Na UBS Analândia, também em Jandira, onde Corvelloni fora deslocada para suprir a ausência de médicos, os pacientes da região ficaram pelo menos dez dias sem qualquer profissional. "Foi puxado, mas agora estamos normalizando a situação. Chegaram dois médicos nesta semana e as coisas já estão mudando", conta Aline Ambrogi, enfermeira da unidade. 

Segundo conta, os enfermeiros da UBS tiveram que preencher as lacunas deixadas pelos médicos, fazendo o máximo que podiam dentro das regras do Ministério da Saúde. "Eles não podem medicar ninguém, mas podem ajudar com exames de rotina, como o pré-natal de baixo risco, por exemplo", diz Ambrogi, afirmando ainda que os pacientes que chegaram durante o período sem médicos foram encaminhados ao pronto-socorro da região.

"Sempre fui especialista, mas agora estou entendendo a importância da medicina da família. Vejo que atuando melhor aqui no começo, na prevenção, posso ajudar o paciente e o colega que está na outra ponta", diz a médica Ademilza Siqueira, ginecologista que começou a atuar na UBS Analândia na última quarta-feira (12). 

Na conversa com o UOL, Siqueira estava acompanhada de Jorge*, médico cubano que prestou o Revalida e se inscreveu no último edital do Mais Médicos. Os dois ocupam as cinco vagas deixadas pelos cubanos após o fim da participação do país caribenho no programa. "Sinceramente, não tinha nenhum problema com a questão do salário, só queria permanecer no Brasil, fazer meu trabalho e ajudar as pessoas", conta ele. 

Veja como fica o novo cronograma do Mais Médicos:

Até 16 de dezembro - Inscrição dos médicos brasileiros e estrangeiros formados no exterior

Até 18 de dezembro - Apresentação dos médicos com CRM Brasil nos municípios

De 20 de dezembro a 21 de dezembro - Médicos CRM Brasil escolhem municípios com vagas disponíveis

De 27 de dezembro a 28 de dezembro - Médicos brasileiros formados no exterior escolhem municípios com vagas disponíveis

De 3 de janeiro a 4 de janeiro de 2019 - Médicos estrangeiros formados no exterior escolhem municípios com vagas disponíveis

* O nome foi alterado a pedido do entrevistado.