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Autorizado no Brasil, remédio de maconha é pouco prescrito por médicos

Hoje, o Conselho Federal de Medicina só autoriza neurologistas, psiquiatras e neurocirurgiões a prescreverem derivados de maconha para casos específicos de epilepsia - Ricardo Borges/Folhapress
Hoje, o Conselho Federal de Medicina só autoriza neurologistas, psiquiatras e neurocirurgiões a prescreverem derivados de maconha para casos específicos de epilepsia Imagem: Ricardo Borges/Folhapress

Fernanda Teixeira Ribeiro

Colaboração para o UOL, em São Paulo

30/12/2018 04h01

Permitido pelo Conselho Federal de Medicina desde 2014 e com importação legalizada em 2015 pela Anvisa, o canabidiol, um componente da maconha, ainda é pouco prescrito pelos médicos no Brasil -- mesmo com evidências científicas de eficácia em alguns tratamentos.

Em 2015, quando a prescrição passou a ser permitida, contabilizaram-se 321 pedidos médicos. Em 2018, o número de receitas cresceu 62% (520 prescrições até novembro), mas um valor ainda muito baixo, para um país de mais de 200 milhões de habitantes.

"Os médicos sentem-se inseguros em prescrever, principalmente pela dificuldade em encontrar informações, a falta de estudos clínicos robustos e de medicamentos em farmácias. Mas muitos ainda não acreditam no benefício terapêutico", diz a médica especialista em medicina funcional Paula Dall Stella, coordenadora científica da Associação Brasileira de Pacientes de Cannabis Medicinal.

Há três anos, a Anvisa transferiu o canabidiol da lista de substâncias proscritas (proibidos) para a de controladas, isto é, pode ser vendida apenas com receita médica especial.

Com efeito comprovado pela ciência no tratamento de epilepsia, em muitos casos o canabidiol é a única substância conhecida capaz de controlar crises graves de convulsão em crianças e adolescentes.

As receitas médicas são necessárias para que as famílias de pacientes consigam entrar na Anvisa com pedido especial de importação de medicamentos que contêm a substância, nenhum deles produzidos no Brasil. A maioria desses medicamentos são óleos purificados, feitos de variedades da planta que contêm alta concentração de canabidiol e muito baixa de THC - outro componente principal da planta, responsável pelos efeitos psíquicos característicos do uso recreativo de maconha.

Divergências no Brasil

Uma explicação para a pouca quantidade de médicos que receita remédios derivados de cannabis no Brasil são as restrições do Conselho Federal de Medicina, que só autoriza neurologistas, psiquiatras e neurocirurgiões a prescreverem o componente para casos específicos de epilepsia.

Pacientes com outras doenças que poderiam se beneficiar de efeitos terapêuticos da cannabis - como dores crônicas, sintomas do câncer, esclerose múltipla - enfrentam dificuldades para obter prescrição.

Isso acontece porque os medicamentos que atendem essas outras condições têm quantidades de THC que ultrapassam as de canabidiol, mesmo que ligeiramente. É o caso do Sativex, indicado para controlar espasmos da esclerose múltipla, único remédio de cannabis registrado pela Anvisa no Brasil, como Mevatyl.

Ian Almerico leva caixa com "cannabis" em empresa que trabalha com maconha medicinal, na Califórnia - Jim Wilson/The New York Times - Jim Wilson/The New York Times
Homem leva caixa com "cannabis" à empresa que trabalha com maconha medicinal na Califórnia
Imagem: Jim Wilson/The New York Times
Apesar de a Anvisa ter registrado esse medicamento e receber pedidos de importação especial de remédios que contenham mais THC, com laudo médico, o Conselho Federal de Medicina mantém as restrições quanto ao THC.

Segundo o psiquiatra Salomão Rodrigues, conselheiro do CFM, se de um lado existem evidências que comprovam o uso seguro do canabidiol, de outro não há estudos que comprovem segurança do THC, que "mesmo em doses mais baixas pode causar danos graves e irreversíveis". Ele fala do risco de crises psicóticas de natureza esquizofrênica e de problemas de desempenho cognitivo, no caso de uso crônico e precoce (antes dos 15 anos de idade).

Em 2017 o Conselho se manifestou contra a decisão da Anvisa de incluir a Cannabis na relação de plantas medicinais.

"Nenhuma planta medicinal deve ser utilizada in natura. Este uso não traz segurança ao paciente quanto à dose da substância que está sendo administrada e seguramente cada tomada do 'remédio' terá uma dose diferente. Por outro lado, o paciente não estará usando apenas a substância que deseja, mas sim estará ingerindo muitas outras substâncias e corre o risco de ingerir uma ou mais que cause mal", diz Rodrigues.

Segundo Dall Stella, apesar de a maconha ser usada com fins medicinais há milhares de anos, a compreensão do sistema cerebral no qual atua - conhecido como sistema endocanabinoide - ainda é recente.

"O entendimento do sistema endocanabinoide é relativamente novo, e os medicamentos existentes não são utilizados na prática clínica. Hoje, existem pouquíssimas empresas farmacêuticas com medicamentos registrados e aprovados por órgãos regulatórios internacionais. Temos, de um lado, pouco conhecimento técnico tanto dos medicamentos como do sistema endocanabinoide; de outro, pouco incentivo da indústria em apoiar protocolos que utilizem a cannabis", diz.

Para Paula Dall Stella, "o Brasil é um país conservador, e ainda existe um tabu muito grande em relação à planta. A ignorância e o preconceito sobre o assunto dificultam muito o avanço".

A médica, que entrou em contato pela primeira vez com o uso medicinal da maconha ao verificar as melhoras dos efeitos colaterais da quimioterapia em um paciente de câncer que fez uso terapêutico da erva, afirma que a questão é mais complexa - os benefícios da planta podem ser resultado da ação conjunta de THC, canabidiol e outras cerca de 120 substâncias ativas da planta.

"Não é porque a Cannabis é um fitoterápico ou um medicamento 'natural' que ela não tenha efeitos colaterais ou interações medicamentosas. Mas ainda assim, é uma substância segura, quando bem utilizada', diz Dall Stella.

"Existe uma demanda por cannabis medicinal por parte dos pacientes, mas encontrar um médico que prescreva o tratamento e enfrentar a burocracia de importação é um desafio", diz Viviane Sedola, criadora da Dr. Cannabis, plataforma que conecta médicos que prescrevem compostos da cannabis, pacientes que buscam tratamento e empresas que fornecem os remédios.

Patrocinada pelas empresas fornecedoras, a plataforma dá informações sobre os trâmites burocráticos da autorização da Anvisa e da importação. "40% dos brasileiros sofrem dores crônicas, uma condição muito beneficiada pela cannabis, por exemplo. O Brasil tem potencial de se tornar um mercado bilionário de cannabis medicinal", diz.

Experiência no Uruguai

A falta de uma "educação médica em cannabis" não é problema exclusivo do Brasil, segundo a médica uruguaia Raquel Peyraube, coordenadora acadêmica do Curso de Cannabis Medicinal e Endocanabinologia no Uruguai, oferecido pelo governo a médicos no país.

No primeiro Congresso Internacional de Medicina Canabinoide, que aconteceu em São Paulo no fim do ano passado, Peyraube relatou os resultados de uma pesquisa que avaliou o uso medicinal da planta no país, que revelou que 58% dos usuários de cannabis medicinal o faziam sem nenhuma supervisão medica e que 23% consideravam os médicos incapacitados para receitarem cannabis de forma adequada.

"Os estudantes de medicina não têm acesso em sua formação a disciplinas sobre o sistema endocanabinoide - saem da faculdade sem saber como funciona esse importante sistema relacionado a tantas funções do organismo", diz Peyraube, destacando que a experiência no Uruguai ensina sobre a necessidade de uma educação da classe medica em cannabis em paralelo às mudanças na legislação, para evitar automedicação. "Médicos precisam de ferramentas de conhecimento para assim se sentirem seguros na prescrição da cannabis. Temos um histórico de mais de 4 mil anos de uso medicinal que não deve ser ignorado", diz Peyraube.