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Covid mata mãe, e filha sofre preconceito: 'Doentes por falta de compaixão'

René Cardillo/UOL
Imagem: René Cardillo/UOL

Maria Luisa de Melo

Colaboração para o UOL, no Rio

04/04/2020 04h00

Depois de perder a mãe e o tio, vítimas do coronavírus, a funcionária de uma operadora de planos de saúde agora tem um novo desafio: driblar o preconceito em Volta Redonda, cidade onde vive no sul do estado do Rio.

A mulher de 33 anos, que pede para não ser identificada com medo de represália, conta que até mesmo uma pessoa conhecida evitou pisar na calçada de sua casa após exame confirmar que a covid-19 atingiu em cheio sua família. Vizinhos apontam de forma pejorativa a casa onde ela vivia com a mãe e seus dois filhos.

Após as mortes, que não puderam nem ter velório, ela tenta retomar a vida normal. "É como se a gente contraísse uma doença que nunca será curada", diz ela sobre o preconceito. Leia a seguir seu depoimento:

"Comecei a ter os sintomas da doença no último dia 9: febre, dores de cabeça, pelo corpo, nas costas, além de falta de apetite e de ar. Passei quatro vezes no médico, mas não cogitaram que eu pudesse estar infectada pelo coronavírus. Disseram que era só um estado gripal e eu voltei para casa.

Dois dias depois a minha mãe, de 67 anos, teve muita febre e vários sintomas parecidos com os meus. No primeiro hospital, detectaram que ela estava com as plaquetas abaixo do normal. Disseram que era dengue. O mesmo aconteceu com meu tio, de 66 anos. Com sintomas muito parecidos, os médicos trataram como se fosse dengue. Mas não era.

Os dois pioraram muito e precisaram ser internados. Foram entubados e morreram —meu tio no dia 21 e minha mãe dois dias depois.

Ao todo, quatro pessoas da minha família tiveram os mesmos sintomas. Eu, minha mãe, meu tio e uma tia. Mas só os dois mais graves conseguiram fazer o teste. Não temos ideia de como ocorreu essa contaminação. Nossa família só viajou junto para Minas Gerais e Paraty no Carnaval. E a minha mãe e o meu tio não moravam na mesma casa.

Não pudemos fazer nem velório para nos despedirmos. E os corpos tiveram que ser cremados, não pudemos enterrá-los. Isso tornou tudo ainda mais doloroso. Eu não pude sequer receber um abraço de consolo do meu pai, porque ele tem 70 anos e não podia sair da casa dele, para não correr o riscos.

Como se já não bastasse isso tudo, agora temos que lidar com a dor do preconceito. Até uma conhecida nossa, que sabe de todo o sofrimento que estamos enfrentando, passou do outro lado da nossa calçada, com medo de se infectar. Já escutamos vizinhos falando que a nossa casa era cheia de 'infectados do coronavírus'.

Mas não é assim. Depois que a minha mãe foi internada, cumprimos 15 dias de isolamento estipulados pelos médicos. Não saímos na rua, estamos todos bem. Então, essas coisas nos magoam muito.

Agora que acabou o período de isolamento que o médico nos estipulou, eu confesso que tenho medo de sair na rua. É como se a gente contraísse uma doença que nunca será curada. A sensação que tenho é de que a gente vai passar na rua e as pessoas vão olhar de forma estranha.

Pensando nisso, já fiz contato com a escola dos meus filhos (de dois e cinco anos) e expliquei tudo. Não quero que eles passem por nenhum preconceito quando voltarem à escola. Mas sei que é difícil de algumas pessoas entenderem, por ser algo muito novo.

Nas reportagens veiculadas sobre as mortes da minha mãe e do meu tio as pessoas perguntavam qual nosso bairro, rua e nossos nomes. Eu tenho muito medo de sofrer algum tipo de retaliação quando puser os pés na rua.

Por enquanto estou trabalhando de casa. Há pessoas infectadas pelo coronavírus, que vão cumprir os 15 dias de isolamento e estarão curadas. Mas, infelizmente, há muitas outras doentes por falta de compaixão e amor ao próximo. Para essas não existe cura.

Tenho medo dessas pessoas sem compaixão, mas agradeço muito a Deus a oportunidade de estar viva. Agradeço também pelas mensagens carinhosas que recebemos. Recomeçar sem a minha mãe é difícil, principalmente porque sou filha única. A vida toda sempre fomos só nós duas. Casei e, depois que tive filhos, voltei a morar com ela, que sempre foi fundamental, alegre e maravilhosa para nós.

As pessoas acham que estão blindadas de passar por um problema como esse. Mas isso é só até ter um caso na família, o que pode acontecer com qualquer um. Quando deito na cama, vem um filme na minha cabeça. Parece que estou num filme de terror, tentando sobreviver."