Topo

Apoio de Trump e Bolsonaro amplia em até 2000% compra de hidroxicloroquina

O presidente Jair Bolsonaro e Donald Trump durante jantar na Flórida em março - Jim Watson/AFP
O presidente Jair Bolsonaro e Donald Trump durante jantar na Flórida em março Imagem: Jim Watson/AFP

Igor Mello

Do UOL, no Rio

30/04/2020 04h00

As declarações de Jair Bolsonaro (sem partido) e de Donald Trump, presidente dos EUA, sobre o uso da hidroxicloroquina no tratamento ao novo coronavírus fizeram com que as vendas do medicamento disparassem nas farmácias brasileiras, segundo mostram dados obtidos com exclusividade pelo UOL. No auge da comoção provocada por discursos de ambos os mandatários, as vendas da droga chegaram a crescer 2.190% em relação à média diária registrada em 2019.

Em meio à pandemia, as vendas de medicamentos à base de hidroxicloroquina —normalmente utilizados para o tratamento de malária e de doenças autoimunes como lupus e artrite reumatóide— dispararam. Foram comercializadas 227.245 unidades do medicamento em março, um crescimento de 180% em relação à média mensal de 2019.

A corrida pelo medicamento no Brasil teve seu ápice em 19 de março, quando Trump veio à público anunciar sua adoção no tratamento de pacientes com covid-19, doença causada pelo novo coronavírus. Apenas neste dia, foram vendidas no país 58.444 unidades de remédios com base na substância —um aumento de 2.190% em relação à média diária do ano passado, que foi de apenas 2.645 unidades.

Nos dias seguintes, Jair Bolsonaro somou-se ao presidente americano e chegou a determinar que laboratórios do Exército ampliassem a produção do medicamento.

Os registros de comercialização diária foram disponibilizados com exclusividade ao UOL pela consultoria Close-Up Internacional, que trabalha com dados dos setores farmacêutico e de saúde. Foram considerados quatro medicamentos à base de hidroxicloroquina: Reuquinol, Plaquinol, além de duas versões genéricas da droga.

As primeiras notícias sobre o uso do medicamento no tratamento do novo coronavírus remontam ao fim de fevereiro, quando houve relatos de que médicos chineses estavam estudando a efetividade da hidroxicloroquina. No entanto, a droga —até então desconhecida— passou a ganhar notoriedade no início de março, quando o cientista francês Didier Raoult publicou estudo com outros médicos de um hospital em Marselha, no sul da França, relatando altas taxas de cura de pacientes tratados com o medicamento.

A corrida às farmácias brasileiras chegou a zerar os estoques e provocou desabastecimento. Depois de vender 84.255 unidades entre 18 e 20 de março, no dia 22, apenas 1.175 caixas foram comercializadas.

As vendas tiveram um novo pico em 25 de março quando o presidente Jair Bolsonaro usou seus perfis nas redes sociais para defender o uso do medicamento contra a covid-19. Apenas neste dia, foram comercializadas 25.622 unidades. Bolsonaro escreveu que o tratamento com a droga "se mostrava eficaz" e que "nos próximos dias, tais resultados poderão ser apresentados ao público, trazendo o necessário ambiente de tranquilidade e serenidade ao Brasil e ao mundo".

O presidente defendeu o uso do medicamento em diversos momentos, mesmo com questionamentos de médicos e pesquisadores sobre sua eficácia e segurança.

Ele chegou a citar a droga no pronunciamento em cadeia nacional de rádio e TV que fez em 8 de abril: "Após ouvir médicos, pesquisadores e chefes de Estado de outros países, passei a divulgar, nos últimos 40 dias, a possibilidade de tratamento da doença desde sua fase inicial", defendeu.

Cientistas apontam riscos de tratamento

Apesar da pressão feita por Bolsonaro e Trump, cientistas têm feito críticas ao estudo francês que provocou o boom da hidroxicloroquina e alertam para os riscos de seu uso no tratamento de pacientes com coronavírus.

O diretor de Operações da OMS (Organização de Saúde), Michael Ryan, afirmou em abril que não há evidências científicas de que a hidroxicloroquina funcione como tratamento do novo coronavírus.

Um estudo americano, liderado por pesquisadores da Universidade de Virgínia com mais de 300 pacientes, constatou que a mortalidade pacientes tratados com a hidroxicloroquina foi de 27,8%, mais que o dobro daqueles que não receberam o tratamento (11,4%).

O comitê científico do Consórcio Nordeste, que orienta os governadores dessa região brasileira no enfrentamento à pandemia, também recomendou que a substância não seja usada.

"Estudos clínicos em múltiplos países demonstram, categoricamente, a inexistência de qualquer efeito terapêutico destes medicamentos e o gravíssimo risco de morte súbita por parada cardíaca irreversível", disse boletim do comitê, que tem entre seus membros o médico e neurocientista Miguel Nicolelis, considerado um dos maiores cientistas brasileiros.

Além de ter sua efetividade questionada, médicos apontam que o medicamento pode piorar o estado de saúde dos pacientes, provocando problemas cardíacos. Por isso, nove das principais entidades médicas brasileiras recomendaram "cautela" no uso da hidroxicloroquina.

"Deve-se ter cautela ao usar cloroquina ou hidroxicloroquina em associação com azitromicina, pois pode aumentar o risco de complicações cardíacas", afirma trecho que resume a opinião de consenso entre as entidades.

Na semana passada, o Conselho Federal de Medicina entregou ao ministro da Saúde, Nelson Teich, um parecer no qual recomenda que, enquanto não há estudos conclusivos sobre a droga, a hidroxicloroquina deve ser receitada em três cenários excepcionais, sempre por decisão do médico que assiste o paciente.