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Zap e telefone coletivo: programa de saúde infantil improvisa na pandemia

Visitadora do Criança Feliz em Careiro (AM) - Foto: Arquivo pessoal / Arte: Arthur Souza
Visitadora do Criança Feliz em Careiro (AM) Imagem: Foto: Arquivo pessoal / Arte: Arthur Souza

Lola Ferreira

Do UOL, no Rio*

15/08/2021 04h00

"Não posso dizer que a pandemia impôs barreiras, porque significaria dizer que a gente parou. A gente se reinventou." Alice Canto, 37, é assistente social e supervisora do programa Criança Feliz na cidade de Careiro (AM), a 120 km da capital amazonense.

Desde abril do ano passado, a profissional busca alternativas para continuar atendendo famílias em situação de vulnerabilidade econômica e em localidades isoladas durante a pandemia de covid-19.

Cada município e visitador teve de se adaptar sozinho e, por vezes, investir recursos próprios (como internet e aparelho celular) para continuar o acompanhamento das famílias. O UOL ouviu supervisores municipais e visitadores para entender os principais desafios.

Visitadora do Criança Feliz em Careiro (AM) - Foto: Arquivo pessoal / Arte: Arthur Souza - Foto: Arquivo pessoal / Arte: Arthur Souza
Visitadora do Criança Feliz em Careiro (AM)
Imagem: Foto: Arquivo pessoal / Arte: Arthur Souza

O Criança Feliz é o único programa do país que prevê visitas domiciliares para auxiliar no desenvolvimento infantil. Criado há cerca de cinco anos, no governo de Michel Temer (MDB), enfrentou seu maior desafio durante o isolamento: acompanhar o desenvolvimento das crianças sem vê-las pessoalmente.

Em Careiro, Alice criou um canal de YouTube com atividades para não interromper o desenvolvimento das crianças. Sem qualquer orçamento extra por parte do governo federal, ela teve de contar com voluntários na gravação dos vídeos. Hoje, o canal tem 11 programas.

Em um município com especificidades —há épocas de cheias nas ruas e famílias acessadas somente via barco—, a assistente social defende um repasse de verba ajustado àquela realidade.

"Aqui, o município faz muito, mas queríamos mais atenção geral. Temos nossas distinções que teriam de ser vistas pelas autoridades", afirma.

Mãe-visitadora grava vídeos com a filha

O WhatsApp foi o recurso mais utilizado: os visitadores escrevem mensagens ou gravam áudios descrevendo as atividades a serem feitas —com objetos que as famílias tenham nas casas— e aguardam um retorno em vídeo da execução.

Em Quixadá (CE), de 88 mil habitantes, a visitadora Taís Ferreira, 26, foi além e gravou os vídeos junto com a filha de um ano e oito meses para que as famílias pudessem ver passo a passo como realizar a atividade com uma criança.

Moradora do Quilombo Sítio Veiga, em Quixadá, Taís atende também algumas das 39 famílias que moram ali. Ela experimentou na prática cada etapa do programa, já que sempre fez as atividades em sua casa —a filha nasceu um mês antes de se tornar uma visitadora.

As atividades que eu elaborava com as crianças, elaborava com minha filha. O desenvolvimento dela com o programa era ótimo, então na pandemia eu não pude parar. É uma forma de incentivar a participação correta."
Taís Ferreira, visitadora do Criança Feliz em Quixadá (CE)

Eliete Santos, 34, é uma das mães do quilombo. A família participa do programa há nove meses, já com a pandemia em curso. Ela relata que a filha de dois anos apresentou desenvolvimento considerável na fala e no andar desde então.

"O programa me ajudou a manter a rotina com ela durante a pandemia, mesmo sendo pelo celular, eu tentava realizar tudo. Ela hoje reconhece objetos, cores, fala melhor. Sem contar o nosso vínculo", conta a mãe.

Eliete Souza e sua filha Maria participam do programa em Quixadá (CE) - Foto: Arquivo pessoa / Arte: Arthur Souza - Foto: Arquivo pessoa / Arte: Arthur Souza
Eliete Souza e sua filha Maria participam do programa em Quixadá (CE)
Imagem: Foto: Arquivo pessoa / Arte: Arthur Souza

Sem internet, família usa telefone do vizinho

Mas nem todos têm acesso a um celular com internet. Gabriel Marques, 25, visitador do programa no Distrito Federal, relata que uma das soluções adotadas foi o acompanhamento via telefone comunitário.

"Uma das famílias que atendo não tem celular ou internet, então passou a usar o telefone do vizinho. A gente entrou em contato dessa forma, ligando, e tivemos de organizar bem os horários. A sorte é que o projeto também une as famílias que participam", relata o estudante de psicologia.

A responsável pelo programa no Distrito Federal, a assistente social Verônica Oliveira, orientou os visitadores de forma que não causassem mais sobrecarga às famílias durante a pandemia.

"Orientamos que as nossas tarefas não fossem tipo as de escola, mas sim focadas em momentos de relaxamento, como contar histórias e ver fotos. Algo relaxante para o cuidador e a família, sem deixar de fortalecer o vínculo e o desenvolvimento."
Verônica Oliveira, assistente social e coordenadora no DF

Atendida desde antes da pandemia no DF, Luciene Galdino coleciona vídeos que exibem o avanço do desenvolvimento de sua filha, hoje com um ano e dez meses. "Vejo minha filha uma criança inteligente, brincalhona e esperta", afirma.

Na modalidade online, as famílias têm de produzir um vídeo com a criança fazendo as atividades propostas. Com isso, há a chance de ter de regravar as imagens até a criança "acertar". Apesar das dificuldades, Marques defende a continuidade do formato.

"Aprendi muito com a questão do toque humano e em viver a realidade de outras famílias. O trabalho que fazemos hoje traz impacto no futuro, para crianças, famílias e relações. Da primeira infância é de onde saem os resultados para todas as fases da vida."
Gabriel Marques, 25, visitador do Criança Feliz no DF

Alice Canto, assistente social e supervisora do Criança Feliz em Careiro (AM) - Foto: Arquivo pessoal / Arte: Arthur Souza - Foto: Arquivo pessoal / Arte: Arthur Souza
Alice Canto, assistente social e supervisora do Criança Feliz em Careiro (AM)
Imagem: Foto: Arquivo pessoal / Arte: Arthur Souza

Famílias do Bolsa Família são prioridade

Hoje, 2.902 municípios fazem parte do programa, que já atendeu cerca de 1 milhão de gestantes ou crianças. Ao todo, são cerca de 20,5 mil visitadores.

Os profissionais são treinados para fazer junto às famílias atividades correspondentes a cada faixa etária da primeiríssima infância —até os três anos de idade— e oferecer suporte durante a gestação.

O alvo prioritário do programa são as famílias beneficiárias do Bolsa Família.

Com a pandemia, o governo federal não aumentou os repasses, mas estipulou em portaria que os municípios poderiam fazer as atividades de forma remota e deveriam disponibilizar equipamentos de segurança (máscaras e álcool em gel) quando necessário.

Os municípios recebem R$ 75 por família beneficiária do programa, recurso destinado principalmente ao pagamento dos visitadores —que ganham em torno de R$ 1.500 por mês.

*Essa reportagem foi realizada a partir do programa Dart Center, da Universidade de Columbia.