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Estudo sobre zika revoluciona divulgação de dados, mas é criticado por usar macacas

Transparência entusiasma cientistas para quem a colaboração acelera pesquisas - Fernando Vergara/AP
Transparência entusiasma cientistas para quem a colaboração acelera pesquisas Imagem: Fernando Vergara/AP

Donald G. Mcneil Jr.

Em Madison, Wisconsin

29/07/2016 06h00

Das centenas de macacos no centro de primatas da Universidade de Wisconsin, alguns, incluindo a "rhesus macaque" 827577, são agora famosos, pelo menos entre cientistas rastreando o vírus da zika.

Desde fevereiro, a equipe chefiada pelo doutor David H. O'Connor, diretor do departamento de doenças infecciosas globais do centro de primatas, vem realizando um experimento único em termos de transparência científica. A tática pode prenunciar a evolução de novas maneiras de reagir a epidemias de rápida disseminação.

O'Connor e colegas vêm infectando macacas grávidas com o vírus da zika, registrando minuciosamente seus sintomas, além de realizar exames de sangue e de ultrassom. Só que, em vez de reservar os dados para periódicos acadêmicos, os pesquisadores os publicam quase que imediatamente em um site acessível a todos.

A abertura do processo entusiasma os cientistas, para quem isso estimula a colaboração e acelera a pesquisa.

"O trabalho de David é muito útil. Todos nós aprendemos um com o outro, com a vantagem de um não duplicar o trabalho do outro", disse o Dr. Koen Van Rompay, virologista do Centro Nacional de Pesquisa com Primatas da Califórnia, na Universidade da Califórnia, campus de Davis.

Como um todo, as epidemias de ebola e zika fizeram especialistas em doenças infecciosas adotar maior velocidade e abertura. Até agora, eles se sentiam forçados a esconder dados e amostras de tecidos. As carreiras dependem da publicação em periódicos famosos, que muitas vezes se recusam a publicar estudos já divulgados e podem levar meses para editar os textos.

Precisa testar em animais?

Ao mesmo tempo, a abertura de O'Connor expôs algumas das exigências mais macabras da pesquisa científica.

Ativistas dos direitos animais estão aborrecidos com a realidade brutal do processo de infectar as macacas e dissecar seus filhotes. Para eles, esse trabalho é desnecessário porque os cientistas já aprenderam bastante tirando sangue de mães humanas infectadas pelo zika e dissecando fetos humanos que morreram no útero ou foram abortados.

"Para começo de conversa, nós questionamos se esse trabalho precisava ser feito", afirma Kathy Guillermo, vice-presidente do grupo Pessoas pelo Tratamento Ético dos Animais (Peta, na sigla em inglês), que rejeita pesquisa médica em animais.

No começo do mês, a 827577 foi anestesiada e seu bebê nasceu por cesariana. O filhote foi então dissecado, para que 60 tecidos diferentes pudessem ser examinados.

O laboratório publicou a menor descrição possível dos resultados.

"Se eles quiserem ser completamente transparentes, deveriam mostrar tudo. Deveriam transmitir 24 horas como os macacos vivem, como morrem, a cesariana, a eutanásia dos bebês e o que acontece com seus corpos", argumenta Kathy.

Com seus grandes olhos castanhos e pele rosada, os macacos têm rostos muito humanos, e Kathy disse esperar que exibir o processo inteiro repelisse visitantes suficientes para fazê-los se opor à pesquisa.

O'Connor reconheceu que a patologia "envolve determinada quantidade de sangue".

 

Embora a 827577 tivesse sido infectada em seu primeiro trimestre, o filhote não adquiriu microcefalia. Até agora, o laboratório somente encontrou o vírus da zika nos nervos ópticos, na medula óssea e em um nódulo linfático.

Isso pode sugerir que os macacos são cópias imperfeitas da infecção humana, mas O'Connor defende que seu uso era a única maneira de fazer experiências para, por exemplo, saber o momento da infecção era essencial.

Muitos laboratórios capazes de exames altamente especializados também precisam de amostras de tecido e relativamente poucas mães infectadas com o vírus da zika permitem autópsias de seus fetos ou bebês.

Os macacos também são empregados em exames perigosos demais em humanos – tais como infectar uma mulher grávida com dengue depois com zika para ver se a primeira piora a segunda, como ocorre em pacientes com infecções sucessivas por dengue.

O laboratório de O'Connor já fez um teste que seria antiético em humanos, demonstrando que macacos que se recuperam da infecção com uma cepa africana do vírus não seriam infectados com a cepa agora circulando pelas Américas.

Isso sugere que a atual cepa americana não vai se espalhar pela África ou Ásia porque as cepas anteriores, que circularam nesses continentes durante décadas ou séculos, são protetoras.

Van Rompay também observou que muitos laboratórios farmacêuticos estão examinando suas "bibliotecas" em busca de drogas que possam curar a infecção do zika. Eticamente, eles devem ser testados primeiro em camundongos e macacos antes de humanos.

As experiências com macacos no laboratório de Wisconsin confirmaram outro achado observado em alguns humanos: o vírus vivo permanece no sangue de uma grávida durante meses em vez de desaparecer em menos de duas semanas, como costuma ocorrer.

O'Connor afirma não saber se isso acontece porque a gravidez geralmente enfraquece o sistema imune da mãe (para que seu corpo não rejeite o bebê) ou porque o feto não consegue se livrar do vírus e continua reinfectando a mãe.

 

Método evita repetição de estudos

Os veterinários que cuidam do centro de primatas afirmam que ao efetuar essas descobertas, eles provocam o mínimo possível de dor e sofrimento nos macacos e que a publicação de seu trabalho salva a vida de outros macacos.

"Isso ajuda as pessoas em outros laboratórios a não repetir estudos", diz o Dr. Saverio Capuano, veterinário responsável pelo centro.

Van Rompay, por exemplo, não infectou macacas grávidas porque sabia que O'Connor o fizera; ele somente infectou os fetos.

As macacas que dão à luz não são mortas e autopsiadas, diz a Dra. Heather A. Simmons, patologista chefe do centro. Elas voltam à colônia de reprodução o que, em si, poderia ajudar a responder outra questão importante: a mãe que teve um filho infectado pelo vírus da zika pode ter novos filhos com segurança?

Regras para exportação de amostras

O planejamento para os experimentos em Wisconsin começaram em novembro, quando virologistas brasileiros com quem O'Connor colabora há muito tempo em pesquisa sobre HIV e hepatite C lhe pediram para ajudar a investigar um vírus africano pouco conhecido suspeito de provocar graves defeitos congênitos, tais como microcefalia, em dezenas de recém-nascidos no nordeste do Brasil.

Só que demorou semanas para enviar as amostras do vírus zika do Brasil. As regras para exportação "eram dúbias e contraditórias", conta o Dr. Esper Kallas, infectologista da Universidade de São Paulo e um dos colaboradores de O'Connor:

Finalmente eu disse: 'Trata-se de uma emergência. Vou compartilhar as amostras e se quiserem me prender, vou chamar a imprensa e eles podem me filmar sendo preso'

Demorou outras semanas para O'Connor ter permissão do comitê de ética de sua universidade para fazer experimentos nos macacos. Em 14 de fevereiro ele anunciou pelo Twitter que havia começado.

A princípio, "a coisa foi grandemente ignorada", conta. Depois, em 23 de fevereiro a revista "Nature" noticiou o fato. Outros pesquisadores o parabenizaram, pediram amostras de tecido e orientação sobre o desenvolvimento do vírus, oferecendo coautoria nos estudos.

Ele se sentiu inspirado a desafiar o sistema pelo trabalho da Dra. Pardis Sabeti, geneticista evolutiva da Universidade Harvard e do Instituto Broad. No começo do surto de ebola em 2014, ela publicou em um site público genomas do vírus ebola que havia sequenciado.

Em entrevista telefônica, Pardis afirmou se sentir "muito honrada" e considerou "correta" a decisão de O'Connor.

Para ela, a maior velocidade recompensa o fato de perder o exame feito pelos resenhistas de um periódico, ainda que dados questionáveis fossem às vezes pegos pela imprensa.

"Eu imagino que o sistema vai se corrigir sozinho", ela acredita.

A decisão de O'Connor foi a manifestação mais radical de uma tendência em andamento. No começo de fevereiro, cerca de 30 dos periódicos acadêmicos mais famosos, instituições de pesquisa e financiadores assinaram uma "declaração sobre o compartilhamento de dados em emergências de saúde pública" na qual as publicações concordaram em disponibilizar gratuitamente todos os artigos sobre o vírus zika em vez de cobrar o valor da assinatura, que pode somar centenas de dólares.

Os periódicos também concordaram em avaliar artigos que foram publicados em primeiro lugar para serem comentados em fóruns públicos como o bioRxiv, hospedado pelo Laboratório Cold Spring Harbor, em Long Island. Os financiadores aceitaram distribuir o mais amplamente possível o dinheiro pelo compartilhamento de dados.

Agora, O'Connor não sabe o que fazer com sua nova celebridade.

"Nunca pensei em ser um divulgador, um evangelista. Eu estava contente trabalhando no anonimato, então é uma experiência surreal. Todos nós crescemos no mesmo sistema. Você faz um estudo, envia a um periódico e o seu lugar na hierarquia depende da qualidade da publicação que o noticia."

"Se as coisas sempre foram assim, você pensa que está correto. Mas quando tem dados que podem contribuir para a resposta da saúde pública durante uma epidemia, devemos realmente nos apegar a esse sistema?"