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Por que na Colômbia não tem tantos casos de microcefalia?

Kiara Munoz brinca com seu filho Juan Diego, nascido com microcefalia resultante do vírus da zika, em Barranquilla, na Colômbia - Katie Orlinsky/The New York Times
Kiara Munoz brinca com seu filho Juan Diego, nascido com microcefalia resultante do vírus da zika, em Barranquilla, na Colômbia Imagem: Katie Orlinsky/The New York Times

Donald G. McNeil Jr., em Barranquilla, e Julia Symmes Cobb, em Bogotá (Colômbia)

The New York Times

10/11/2016 06h00

Esta cidade tropical na costa do Caribe pode conter a resposta para um dos mais profundos mistérios da epidemia de zika: por que o maior surto do mundo, depois do Brasil, produziu tão poucos defeitos de nascença?

No Brasil, mais de 2.000 bebês nasceram com microcefalia --cabeças anormalmente pequenas e danos cerebrais-- causada pelo vírus da zika. Na Colômbia, as autoridades fizeram previsões de que haveria até 700 bebês com esse problema até o final deste ano. Houve apenas 47.

A diferença tem sido vista em todas as Américas. Segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde), os EUA têm 28 casos, quase todos ligados a mulheres infectadas em outros países. A Guatemala tem 15 e a Martinica, 12.

Se o restante das Américas tivesse sido afetado como o Nordeste do Brasil, uma maré de microcefalia estaria varrendo a região. A maioria dos especialistas diz que isso não acontecerá, mas não sabem por quê.

Descobrir o que deteve a microcefalia na Colômbia poderá ajudar outros países a conter os piores efeitos da epidemia. 

9.nov.2016 -  - Katie Orlinsky/The New York Times - Katie Orlinsky/The New York Times
Miguel Parra-Saavedra, médico especialista em gravidez de alto risco, realiza um ultrassom na clínica Cedifetal, em Barranquilla, na Colômbia
Imagem: Katie Orlinsky/The New York Times


Há algumas diferenças óbvias entre a epidemia da Colômbia e a do Brasil. A população colombiana é de menos de um quarto da brasileira, e quase a metade dos habitantes vivem em altitudes maiores, onde há menos mosquitos.

E a zika circulou em silêncio por muito mais tempo no Brasil. O vírus chegou lá no início de 2014, e na Colômbia só no final de 2015. Tendo combatido uma severa epidemia de chikungunya em 2014, a Colômbia estava mais preparada que o Brasil para mobilizar os batalhões de combate aos mosquitos.

Mas tudo isso não parece suficiente para explicar a disparidade. Há cada vez mais evidências de duas outras possibilidades.

As mulheres grávidas aqui, alertadas para a tragédia que ocorria no Brasil, podem ter feito abortos em maior número, segundo as autoridades. Outras parecem ter ouvido o polêmico conselho do governo de adiar a gravidez. 

O doutor Miguel Parra-Saavedra, diretor de medicina materno-fetal na clínica Cedifetal em Barranquilla e um dos maiores especialistas do país em gravidez de alto risco, é um dos especialistas que suspeitam que muitas grávidas na Colômbia, alarmadas com as notícias, fizeram exames de ultrassom e abortaram fetos defeituosos.

Algumas de suas pacientes fizeram isso.

Parra-Saavedra dirige um estudo de defeitos de nascença ligados à zika em cooperação com os CDC (sigla em inglês para Centros de Controle e Prevenção de Doenças) dos EUA. Ao longo da pesquisa feita até agora, ele diagnosticou 13 casos de microcefalia fetal.

Quatro das mães abortaram imediatamente, disse ele. Outras quatro, e possivelmente uma quinta, buscaram fazer aborto, mas foram recusadas por suas companhias de seguro-saúde.

Só quatro pacientes, segundo Parra-Saavedra, escolheram ter os bebês.

Entre as que tentaram fazer aborto estava Zuleima, 37, mãe de duas filhas saudáveis.

9.nov.2016 - Zuleima cuida de sua filha Milagros, que nasceu com microcefalia como resultada do vírus da zika - Katie Orlinsky/The New York Times - Katie Orlinsky/The New York Times
Zuleima cuida de sua filha Milagros, que nasceu com microcefalia como resultada do vírus da zika
Imagem: Katie Orlinsky/The New York Times
Quando ela e seu marido, Jaime, 47, um operador de máquina desempregado, souberam que o bebê que esperavam tinha microcefalia, pediram o que chamam aqui de "interrupção da gravidez".

O aborto é legal na Colômbia para proteger a saúde da mãe, e o Ministério da Saúde considera um bebê gravemente deformado uma ameaça ao bem-estar mental da mãe.

Mas Zuleima --que pediu que o sobrenome do casal não fosse usado porque têm parentes contrários ao aborto-- já estava na 31ª semana de gravidez.

Enquanto a lei do aborto não especifica até que semana é possível abortar, sua seguradora reclamou dizendo que precisava de tempo para decidir se pagaria pelo procedimento.

"Houve muitos papéis para preencher e a empresa não dizia sim nem não", lembrou ela. "Eles diziam que me ligariam mais tarde."

"E nunca o fizeram --e então foi tarde demais. Eu tinha de ter o bebê."

Ela falou enquanto amamentava sua filha recém-nascida, Milagros. Atrás dela, o doutor William O. Contreras, neurocirurgião, disse em inglês que Milagros não tinha lobos frontais e que a conexão entre seus dois hemisférios cerebrais era anormalmente pequena.

"Quando isto acontece", disse ele, "não há inteligência, nem coordenação, atenção, iniciativa, cálculo-- e nenhuma memória."

O doutor Fernando Ruiz, vice-ministro da Colômbia para Saúde Pública, também disse que é "muito possível" que os abortos tenham reduzido o índice de microcefalia aqui. 

9.nov.2016 -  - Katie Orlinsky/The New York Times - Katie Orlinsky/The New York Times
Zuleima segura sua filha com microcefalia em um encontro de familiares em Caucasia, na Colômbia
Imagem: Katie Orlinsky/The New York Times


"A Colômbia tem leis e regulamentos dos mais progressistas da América do Sul", disse ele em uma entrevista. Com os ginecologistas alertas para a ameaça, disse ele, muitas mulheres fizeram ultrassom com tempo suficiente para tomar uma decisão.

Até um pequeno aumento no índice de abortos pode responder por uma redução acentuada na microcefalia.

Apenas 320 abortos legais foram relatados na Colômbia em 2011, segundo o Instituto Guttmacher, uma organização de pesquisa baseada em Nova York que apoia os direitos ao aborto. Mas o instituto estima que na verdade haja mais de 400 mil abortos por ano na Colômbia.

Nesse país, a maioria dos abortos não é realizada em clínicas por aspiração a vácuo, mas induzida por misoprostol, uma droga que causa fortes contrações, disse o doutor Guido Parra Anaya, diretor da clínica de fertilidade Procrear, em Barranquilla.

Qualquer médico pode prescrever a droga, e não é obrigado a relatar oficialmente.

O misoprostol também é dado comumente por fornecedores ilegais aqui, segundo o Instituto Guttmacher. Frequentemente, as mulheres são orientadas a tomar as pílulas e vão a um hospital quando começa a hemorragia, como se tivessem um aborto espontâneo. Os hospitais colombianos tratam cerca de 93 mil mulheres por ano de complicações pós-aborto.

Em julho, a doutora Martha Lucia Ospina, diretora dos Institutos Nacionais de Saúde da Colômbia, relatou que as mortes fetais relatadas como abortos espontâneos em certificados de óbito tinham aumentado 8%. Apenas recentemente os números começaram a voltar ao normal.

No Brasil, em contraste, o aborto só é permitido em casos de estupro ou incesto ou para salvar a vida da mãe. É difícil conseguir um aborto ilegal, porque a polícia, sob a pressão das bancadas evangélicas no Congresso Nacional, começou a reprimir as clínicas clandestinas há uma década.

E também, como o surto de microcefalia no Brasil apareceu sem advertência, até as mulheres que poderiam ter se arriscado a abortos ilegais não tiveram tempo de fazer exames de ultrassom. 
9.nov.2016 - Um bebê prematuro fica em uma incubadora na clínica Cedifetal, em Barranquilla, na Colômbia - Katie Orlinsky/The New York Times - Katie Orlinsky/The New York Times
Um bebê prematuro fica em uma incubadora na clínica Cedifetal, em Barranquilla, na Colômbia
Imagem: Katie Orlinsky/The New York Times
 

Na Colômbia, as mulheres hoje normalmente fazem três ultrassons durante a gravidez. O número maior de exames leva a decisões difíceis.

A microcefalia também pode ser causada por outros vírus ou por mutações genéticas, mas o vírus da zika causa níveis inéditos de danos cerebrais.

"Em meus 22 anos como médico de ultrassom, nunca vi microcefalia desse jeito", disse Parra-Saavedra. "As cabeças são muito menores, em um grau severo."

Embora os bolsões de células mortas que preconizam a microcefalia possam aparecer mais cedo, as cabeças dos fetos só ficam inconfundivelmente pequenas no início do terceiro trimestre.

As seguradoras de saúde, que lutam com dificuldades financeiras, relutam em aprovar abortos tardios porque devem pagar pelos cuidados intensivos neonatais se a criança nascer viva.

Para as mães, o diagnóstico é compreensivelmente difícil. No terceiro trimestre os fetos no ultrassom parecem bebês recém-nascidos, e não embriões.

Os primeiros exames do filho de Kiara Muñoz, Juan Diego, foram normais. Quando sua microcefalia ficou evidente, ela estava no sétimo mês e podia ver claramente seu rosto.

"O ginecologista disse que eu poderia abortar e eu chorei", disse Muñoz, que tem 18 anos mas aparenta 15. "Foi muito difícil porque o bebê era tão grande. Meu marido e eu decidimos tê-lo. Eu espero um milagre."

A epidemia de zika na Colômbia atingiu o pico em fevereiro e foi declarada encerrada no final de julho. Muitas mulheres que engravidaram durante esse período ainda não deram à luz, por isso poderão aparecer mais casos de microcefalia.

Mas eles ainda serão muito menos do que se previa originalmente.  

Ruiz disse que com base na experiência do Brasil ele esperava ver 700 casos de microcefalia relacionada à zika este ano. Agora ele espera de cem a 250, no máximo.

Em dezembro, Ruiz pediu que as mulheres da Colômbia adiassem a gravidez, e acredita que muitas o fizeram, embora não o possa provar ainda.

9.nov.2016 -  - Katie Orlinsky/The New York Times - Katie Orlinsky/The New York Times
Grávidas esperam em uma clínica de Barranquilla, na Colômbia, país que teve grande surto do vírus da zika
Imagem: Katie Orlinsky/The New York Times


Uma queda na taxa de nascimentos indicaria que muitas mulheres ouviram o conselho, mas o departamento de estatísticas de saúde leva 18 meses para calcular a taxa de cada ano. 

Em alguns países latino-americanos, sugestões de ministérios da Saúde para que as mulheres adiassem a gravidez encontraram dura resistência --tanto da Igreja Católica quanto de grupos de mulheres que se queixavam da falta de acesso à contracepção.

El Salvador enfrentou uma reação forte quando pediu que as mulheres deixassem de ter filhos durante dois anos. Mas o Ministério da Saúde colombiano pediu que as mulheres esperassem apenas de seis a oito meses, enquanto as autoridades observavam se a epidemia aumentava. Algumas mulheres acharam isso sensato.

Enquanto seu marido, o policial Gustavo, e seu filho pequeno Sebastian olhavam, Madis Dominguez, 27, explicou como ela estava fazendo um ultrassom aos quatro meses em setembro.

Originalmente, ela pretendia engravidar em dezembro passado, segundo disse, "mas eles disseram para esperar seis meses. Então esperei até maio, quando eles disseram que parecia seguro de novo".

Quantas mulheres seguiram seu exemplo não será conhecido por algum tempo.

A epidemia parece estar diminuindo em grande parte da América Latina conforme os meses mais quentes e chuvosos chegam ao fim e mais pessoas, depois de picadas pelo mosquito, desenvolvem imunidade.

Alguns especialistas pensaram que pode ter sido prematuro declarar a epidemia terminada na Colômbia, porque o vírus tinha infectado menos de 1% da população. Na Polinésia Francesa, ele infectou mais de 60% antes que os casos desaparecessem.

Um estudo feito por cientistas do Imperial College de Londres estimou que em toda a América Latina, onde a geografia é muito mais diversificada que nas ilhas do Pacífico, pode levar de dois a três anos até que a imunidade generalizada detenha a epidemia.

Em lugares como Porto Rico, onde o vírus chegou relativamente tarde, os casos de microcefalia deverão continuar aumentando. O primeiro nascimento de uma criança com microcefalia ligada à zika foi relatado no mês passado.