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A hora da morte: Nos EUA, famílias processam médicos por salvarem a vida dos paciente

Getty Images
Imagem: Getty Images

Paula Span

23/04/2017 17h10

O que aconteceu com Beatrice Weisman na madrugada de 29 de agosto de 2013 não devia ter acontecido: a equipe médica do Hospital Geral de Maryland a encontrou em meio a uma parada cardíaca, a ressuscitou e a manteve viva.

Matriarca de uma família do bairro de Eastern Shore, em Maryland, Weisman, que na época tinha 83 anos, havia sofrido um AVC em junho e passado semanas em dois hospitais.

Felizmente, ela e o marido haviam deixado diretrizes médicas para esses casos; ela havia nomeado o marido, William, para tomar decisões médicas em seu nome, caso ela se encontrasse incapacitada.

Em agosto, quando sua condição começou a piorar, William Weisman convenceu a família a se reunir na casa em Easton. Com o apoio dos quatro filhos, ele autorizou o formulário de Ordens Médicas para Tratamentos de Manutenção da Vida, ou MOLST, na sigla em inglês, afirmando que caso o coração e os pulmões da esposa deixassem de funcionar, a equipe médica deveria permitir que ela morresse.

(Em Maryland e na maioria dos outros estados, esses formulários se tornaram parte das ordens médicas; eles são válidos em todos os ambientes médicos e servem como uma diretriz clara dos desejos do paciente, sobrepondo-se às diretrizes básicas).

Ainda assim, quando Beatrice Weisman foi encontrada no leito tendo uma parada cardíaca, a equipe médica deu início a uma massagem cardíaca responsável por costelas quebradas e um pneumotórax. A equipe usou o desfibrilador para aplicar choques elétricos, além de injetar epinefrina para conseguir reanimá-la.

“Meu pai ficou arrasado”, afirmou Christian Weisman, o filho mais velho do casal.

Ele afirmou que os pais “fizeram tudo do jeito que tinham que fazer – os testamentos, as diretrizes, o MOLST”. Mas quando a equipe encontrou a paciente, “eles ainda assim violaram seus desejos”.

Christian Weisman processou o Hospital Geral de Maryland pela forma que tratou sua mãe, alegando lesão corporal, negligência e “estresse emocional causado intencionalmente”, entre outras acusações.

Os médicos e hospitais já se habituaram às ameaças de processos sempre que não são capazes de salvar a vida de um paciente. Agora, algumas instituições enfrentam processos por não permitirem que o paciente morra.

Diversos processos similares estão sendo abertos em todo o país, sob a premissa e que os fornecedores de serviços de saúde não levaram em conta as diretrizes indicadas pelos pacientes, ressuscitando pessoas que afirmaram claramente que não gostariam que isso acontecesse.

Historicamente, a prática vigente é a de “em caso de dúvida, peque por colocar em prática tratamentos de manutenção da vida, mesmo que sejam agressivos”, afirmou Thaddeus Pope, diretor do Instituto de Direito Médico da Faculdade de Direito Mitchell Hamline, em St. Paul, Minnesota.

Afinal de contas, pacientes ressuscitados na UTI podem ter os respiradores desligados posteriormente, afirmou, mas “não é possível reverter a morte”. De forma geral, os tribunais não têm se mostrado abertos aos casos de “manutenção indesejável da vida”.

Todavia, Pope acredita que isso pode mudar e compilou uma série de exemplos recentes na edição mais recente da revista científica Journal of Clinical Ethics.

“Os tribunais estão entendendo cada vez mais que a manutenção indesejável da vida também é uma forma de dano”, afirmou. “Antigamente as famílias tinham dificuldades até para conseguir representantes legais nestes casos. Agora, os advogados começam a aceitar esses processos”.

Durante décadas, desde a difícil batalha legal envolvendo Karen Ann Quinlan e Terri Schiavo, os americanos lutaram para obter o direito de deixar por escrito suas preferências de tratamentos de fim de vida.

“Leis estaduais, leis federais, todo o tipo de grupo de defesa dos interesses de médicos e pacientes – todo mundo dizia a mesma coisa”, afirmou Pope. “Existe um trato. Se você documenta suas preferências e preenche um formulário oficial indicando-as, isso garante que seus desejos serão honrados”.

E quando isso não acontece, em alguns casos os pacientes também são parcialmente responsáveis. Talvez tenham dado instruções vagas, ou deixado os documentas necessários em casa ou com o advogado.

Todavia, nesses casos recentes, os advogados afirmam que os pacientes e seus representantes legais fizeram tudo certo – mas, ainda assim, os pacientes foram submetidos a ações indesejadas de manutenção da vida.

No estado da Geórgia, Jacqueline Alicea está processando o Doctors Hospital of Augusta e o cirurgião que exigiu que sua avó, Bucilla Stephenson, de 91 anos, fosse mantida em um respirador artificial em 2012. Isso estava em desacordo com as instruções verbais dadas por Alicea na qualidade de responsável legal pela saúde da avó, assim como das diretrizes deixadas por ela em relação a procedimentos de manutenção da vida.

“Podia ter jogado os documentos na lata do lixo, já que não iriam levar em conta os desejos da senhora Stephenson”, afirmou Harry Revell, o advogado de Alicea. “Eles ignoraram e passaram por cima dos direitos da paciente”.

O Doctors Hospital deu uma declaração expressando compreender a situação da família, afirmando contudo que “o tratamento dispensado foi apropriado e levou em conta os interesses da paciente”.

Embora Alicea estivesse pronta para deixar que a natureza seguisse seu curso natural, inicialmente ela hesitou em dizer para os médicos desconectarem as máquinas que mantinham sua avó viva. Entretanto, depois de uma semana, ela autorizou a remoção do respirador artificial e dos cuidados paliativos; a avó faleceu após três dias.

O processo aberto por Alicea, agendado para ir a julgamento em junho, visa ressarcir cerca de US$200 mil em despesas médicas e hospitalares (pagas quase integralmente pelo Medicare), além de danos e honorários advocatícios.

Contudo, a decisão da Suprema Corte de um caso em julho terá repercussões em outros casos. Os juízes negaram a reivindicação de imunidade dos réus, afirmando que “é a vontade do paciente ou de seu agente designado, e não a do prestador de cuidados de saúde, que rege o relacionamento”.

Decisões como essa podem influenciar julgamentos posteriores, mesmo em outros estados.

Um tribunal de apelações da Califórnia decidiu que irá permitir que uma viúva receba os honorários advocatícios em um caso envolvendo das instruções deixadas pelo marido e as intervenção do Condado de Humboldt, onde o casal vivia.

Dick Magney indicou a esposa, Judith, como sua responsável legal. Hospitalizado em 2015 em decorrência de uma série de condições potencialmente fatais, ele optou por cuidados paliativos. Entretanto, alguém no hospital relatou uma suspeita de negligência à agência de proteção de adultos do condado.

Judith Magney, de 71 anos, e seu advogado passaram meses lutando contra o condado, que tentou substituir Magney como responsável legal pelo marido, obrigando-o a tomar os antibióticos que ele havia se negado a tomar anteriormente, além de escolher um cuidador temporário para o paciente.

Durante uma entrevista, Jeffrey Blanck, conselheiro do condado, defendeu as ações em nome de Magney uma vez que “ele perdia e recobrava a consciência” e, em alguns momentos, concordava com os antibióticos.

Magney morreu em um asilo em outubro de 2015 aos 74 anos de idade. Mas sua viúva continuou lutando para que o Condado de Humboldt pagasse seus honorários advocatícios até que o Primeiro Distrito de Apelações da Califórnia divulgasse sua decisão no ano passado.

O tribunal concluiu que o condado “ignorou consciente e deliberadamente a lei e os fatos”, obrigando o estado a pagar os honorários advocatícios devidos por Magney. O advogado da idosa, Allison Jackson, havia pedido 1,44 milhão de dólares, incluindo danos.

Os conflitos em torno das diretrizes de fim de vida praticamente não são previsto em lei. Nesses casos recentes, “ninguém ainda foi indenizado”, afirmou Pope.

E quando os casos são resolvidos por meio de acordos extrajudiciais, como geralmente acontece, os termos geralmente são confidenciais, de forma que ninguém sabe o tamanho do cheque.

Agências do estado também multam asilos por ressuscitarem residentes que tinham emitido ordens para não ressuscitar. Na maioria dos casos as multas são baixas – US$1.370 em Connecticut, US$16 mil na Flórida – entretanto, essas ações podem afetar as escolhas dos clientes em relação aos asilos.

“Agora, quando você acessa o site Nursing Home Compare, isso afeta a nota e a reputação dos asilos”, afirmou Pope, referindo-se ao guia do Medicare para ambientes de vida assistida e asilos de idosos.

Em Maryland, o caso Weisman irá aos tribunais em novembro. “Não quero dizer que a intenção do Hospital Geral de Maryland foi ruim”, afirmou o advogado da família Weisman, Robert Schulte. “Seu formulário MOLST estava na primeira página do prontuário. Eles simplesmente não olharam”.

William Weisman morreu cerca de um ano após a esposa ser liberada, de forma que o processo foi aberto por Christian. Eles querem US$250 mil em custos hospitalares, além de cerca de US$180 mil anuais em gastos com a saúde da mãe, do momento de sua ressuscitação, até sua eventual morte. O processo também exige que o hospital melhore os procedimentos e treinamentos em caso de pedidos para não ressuscitar.

Uma porta-voz do hospital afirmou por e-mail que os funcionários que ressuscitaram Weisman não tiveram a intenção de ignorar sua ordem de não ressuscitar, e que os tribunais de Maryland declararam que a manutenção da vida não representa dano.

Ela também destacou que “a senhora Weisman passou por uma recuperação impressionante”.

Isso é verdade – graças a uma fisioterapia intensiva e cuidados 24 horas por dia, tudo pago pela família. Embora adorasse jogar boliche e baralho, Weisman deixou o Hospital Geral de Maryland em novembro de 2013 presa a uma cama e sendo alimentada por tubos e cateteres.

Aos 86 anos de idade, ela vive na casa da família em Easton com três turnos de cuidadores. Ela faz todas as refeições, reconhece os familiares e vai à igreja aos domingos. Contudo, a demência a deixa confusa e assustada, afirmou o filho.

“Fico feliz todos os dias ao ver minha mãe, mas também vejo seu sofrimento aumentar a cada dia. Ela me pergunta por que continua por aqui e é muito difícil responder isso.”