Topo

Médicos operam feto no útero da mãe e corrigem má-formação na medula

Feto é operado dentro de útero da mãe pela equipe liderada pelo Dr. Michael Belfort, em Houston, nos EUA - Beatrice de Gea/The New York Times
Feto é operado dentro de útero da mãe pela equipe liderada pelo Dr. Michael Belfort, em Houston, nos EUA Imagem: Beatrice de Gea/The New York Times

Denise Grady

31/10/2017 12h27

O paciente, ainda na barriga da mãe, entrou em foco na tela plana de uma escura sala de cirurgias. Dedos das mãos, dos pés, as solas dos pés --todos bonitinhos, perfeitamente formados.

Mas a parte inferior das costas não é assim. A pele lisa apresenta uma abertura que não deveria estar lá, um orifício oval que expôs a borda branca de um osso e os nervos da medula espinhal.

"Bom, agora é pra valer", disse o Dr. Michael A. Belfort, diretor da obstetrícia e ginecologia na Faculdade de Medicina de Baylor e obstetra e ginecologista-chefe do Hospital Infantil do Texas.

O feto, com 24 semanas e dois dias de idade e menos de um quilo, estava prestes a passar por uma cirurgia. Ele tinha uma forma grave de espinha bífida, quando a espinha dorsal e a medula espinhal não se desenvolvem adequadamente. As crianças que nascem com esta condição geralmente não podem caminhar e sofrem de acumulação de líquido no cérebro, falta de controle da bexiga e outras complicações.

Um neurocirurgião pediátrico, Dr. William Whitehead, juntou-se a Belfort na mesa de operações. Os médicos realizam a cirurgia fetal de reparação de espinha bífida desde a década de 1990; não é uma cura, mas pode diminuir o grau de deficiência.

Mas agora Belfort e Whitehead estão testando uma nova técnica experimental --que alguns estão ansiosos para aprender, mas outros a veem com cautela, questionando sua segurança para o feto em longo prazo.

Os cirurgiões fizeram uma grande incisão no abdômen da mãe, gentilmente levantaram seu útero --ainda ligado internamente-- e abriram duas fendas pequenas, de quatro milímetros. Em uma delas, inseriram um "fetoscópio", pequeno telescópio equipado com uma câmera, luz e uma garra. A segunda fenda foi para outros instrumentos em miniatura.

Iluminado por dentro, o útero brilhava, vermelho e mágico na sala escura. 

Técnica utilizada por cirurgiões para operação de feto "retira" útero do corpo da mãe - Beatrice de Gea/The New York Times - Beatrice de Gea/The New York Times
Técnica utilizada por cirurgiões para operação de feto "retira" útero do corpo da mãe
Imagem: Beatrice de Gea/The New York Times

A espinha bífida ocorre no início da gravidez, entre a terceira e a quarta semanas, quando o tecido que forma a coluna vertebral deve se dobrar em um tubo e se fechar, mas isso acaba não acontecendo adequadamente. Há entre 1.500 e 2 mil casos por ano nos Estados Unidos.

As causas não são totalmente conhecidas, mas em alguns casos a deficiência do ácido fólico, uma vitamina do complexo B, pode influir. Assim, são recomendados suplementos para gestantes e a vitamina é adicionada a produtos com grãos e cereais.

A introdução da cirurgia pré-natal para a espinha bífida foi um passo ousado. No começo, os médicos ficavam tão preocupados que apenas operavam se as condições fossem fatais caso nada fosse feito; mesmo que a cirurgia fosse prejudicial, o feto morreria de qualquer maneira.

A espinha bífida geralmente não é fatal, então a prática padrão era operar após o nascimento. Mas os resultados da cirurgia pós-natal eram variados: a maioria das crianças não conseguiu andar e teve outros problemas.

Os médicos começaram a suspeitar que os resultados poderiam ser melhores se o defeito fosse corrigido antes do nascimento. O dano espinal pode ser piorado pelo fluido amniótico, que se torna cada vez mais tóxico para o tecido nervoso exposto, conforme a gravidez avança e o feto despeja cada vez mais dejetos no fluido.

Os cirurgiões pensaram que se a abertura pudesse ser fechada antes do nascimento, selando o fluido, alguns dos danos nervosos poderiam ser evitados. Eles começaram a operar na década de 1990, mas não estava claro se a cirurgia estava ajudando.

Um estudo histórico publicado em 2011 descobriu que --para fetos cuidadosamente selecionados-- a cirurgia pré-natal era melhor do que a pós-natal. A porcentagem de crianças que conseguiu caminhar independentemente aumentou de 20 para 40 por cento, e a necessidade de um "shunt" (um canal de desvio) foi diminuída pela metade, de 82 para 40 por cento.

"Queria que a porcentagem beneficiada fosse maior", disse Whitehead, acrescentando que até agora a cirurgia pré-natal não parece ajudar com a incontinência urinária, e a maioria das crianças com espinha bífida precisa de cateteres de urina.

A época ideal para a cirurgia é entre a 24ª e a 26ª semanas de gravidez, disse Belfort --cedo o suficiente para impedir alguns danos aos nervos, mas tarde o suficiente para que o bebê tenha uma boa chance de sobreviver se algo der errado e for preciso fazer seu parto.

Sua paciente, Lexi Royer, de 28 anos, e seu marido, Joshua, 29, estavam juntos desde o ensino médio e sempre quiseram filhos. Mas Lexi teve problemas de saúde que, de acordo com os médicos, fariam da gravidez algo improvável. Ela teve um aborto espontâneo e não engravidava de novo. 

Lexi Royer e seu marido, Joshuwa, aguardam o início do procedimento cirúrgico, em Houston, nos EUA - Beatrice de Gea/The New York Times - Beatrice de Gea/The New York Times
Lexi Royer e seu marido, Joshuwa, aguardam o início do procedimento cirúrgico, em Houston, nos EUA
Imagem: Beatrice de Gea/The New York Times

Então, o casal ficou emocionado em maio quando descobriram que ela estava grávida. Durante um exame de ultrassom na décima terceira semana, os dois viram o filho pela primeira vez.

"Tínhamos lágrimas de felicidade, mas então a técnica de ultrassom disse que precisava buscar um médico", disse Lexi.

Seguiu-se uma série de exames e visitas a especialistas. A cada uma, a notícia era pior. O defeito era severo e grave, e o tronco encefálico estava sendo puxado para baixo na coluna vertebral.

"Parecia que estávamos olhando para danos cerebrais, tubos de alimentação, um tubo de respiração e uma cadeira de rodas, uma má qualidade de vida", disse Lexi.

O término da gravidez foi proposto como uma opção, e Lexi sentiu que os médicos o estavam forçando. Esta poderia ser a única chance de terem um filho.

Eles queriam saber mais sobre a condição do bebê. Lexi, que é cabeleireira, e seu marido, bombeiro e técnico médico de emergência, pesquisaram na internet e descobriram no Facebook grupos para pais de crianças com espinha bífida. Alguns relataram bons resultados de um procedimento que os médicos em sua cidade natal, San Diego, nunca ouviram falar: cirurgia fetoscópica.

No início de setembro, eles foram a Houston para dois dias de exames. Os resultados confirmaram que o bebê um defeito espinhal severo, mas ainda lhes deu esperança.

"Ele estava mexendo as pernas, até movendo os pés. Ele tem uma função que eles chamam de movimento do 'pedal do acelerador'. Seu tornozelo vai para frente e para trás, um sinal realmente bom de que poderá caminhar", disse Lexi.

Mesmo que não pudesse andar, ela disse que precisar de uma cadeira de rodas não arruína a qualidade de vida de uma pessoa.

Ainda mais importante, os médicos achavam que a cirurgia tinha uma boa chance de eliminar a necessidade de um "shunt" implantado para resto da vida, que drena o excesso de fluido do cérebro. Esse dispositivo geralmente precisa ser substituído, o que requer mais cirurgias, que podem levar a uma infecção.

Lexi reconheceu que não havia garantia de que seu filho estaria livre de um "shunt". Mas afirmou que o casal sentiu "paz e felicidade" depois de decidir fazer a cirurgia.

Em 26 de setembro, o dia anterior à operação, Joshuwa, Lexi e os pais dela foram ao encontro da equipe médica no Hospital Infantil do Texas.

Com mais de uma dúzia de médicos e enfermeiras, a sala de conferências estava cheia. Todos estariam envolvidos na operação.

Belfort analisou os resultados dos exames, dizendo ao grupo que o feto tinha uma "lesão significativa" envolvendo grande parte das costas. Mas acrescentou: "Ele é capaz de fazer o movimento do pedal, e isso é ótimo. Há muita função motora para preservar".

Dirigindo-se a Lexi, ele disse: "Essa é uma cirurgia experimental, sem garantia. Você é quem assumirá o risco por outra pessoa. Você não é obrigada a fazer isso. Ninguém irá te julgar se mudar de opinião, e poderá mudar de ideia até o último minuto, até que esteja anestesiada".

No início da manhã seguinte, após a anestesia geral, a cirurgia começou em uma sala de operação superaquecida, ideal para o feto, mas sufocante para médicos e enfermeiras com máscaras, luvas e trajes cirúrgicos.  

Dr. Michael Belfort (à dir,) e equipe realizam cirurgia em feto, ainda dentro do útero da mãe, que tem espinha bífida, em Houston, nos EUA - Beatrice de Gea/The New York Times - Beatrice de Gea/The New York Times
Dr. Michael Belfort (à dir,) e equipe realizam cirurgia em feto, ainda dentro do útero da mãe, que tem espinha bífida, em Houston, nos EUA
Imagem: Beatrice de Gea/The New York Times

Durante a cirurgia pré-natal padrão para a espinha bífida, os cirurgiões cortam o abdômen e o útero da mãe para chegar ao feto. Mas a nova abordagem experimental é diferente.

Belfort abriu a parte inferior do abdômen de Lexi, mas não o útero. Em vez disso, levantou o útero do corpo e inseriu o fetoscópio, e depois, através de outra fenda, as ferramentas cirúrgicas. Os médicos drenaram o líquido amniótico e bombearam dióxido de carbono para manter as paredes do órgão expandidas, dando espaço para trabalhar, garantindo uma visão melhor e permitindo um procedimento de cauterização quando necessário.

Eles deram ao feto uma injeção anestésica e depois, guiados por imagens nas telas de vídeo, começaram a operá-lo, puxando a pele e as membranas sobre a medula espinhal exposta e costurando-as com cinco pontos para selar o líquido amniótico.

Como a fenda era grande, fizeram "incisões relaxantes" ao longo das laterais, para afrouxar a pele para que pudessem puxá-la nas costas. Os cortes se fechariam, embora deixassem cicatrizes.

De poucos em poucos minutos, um cardiologista pediátrico relatava a frequência cardíaca fetal, que se manteve estável a uma taxa normal de cerca de 150 batimentos por minuto. Quando a cirurgia foi concluída, os médicos substituíram o líquido amniótico por solução salina.

A cirurgia demorou três horas. A operação padrão de abertura é mais rápida e fácil, mas Belfort e Whitehead pensaram que seu método seria mais seguro para a mãe e o feto.

Com o procedimento de abertura uterina, o corte aumenta o risco de um parto prematuro, o que coloca o feto em risco de uma série de complicações.

A incisão também aumenta a probabilidade de ruptura uterina durante o trabalho de parto, e exige que a mãe dê à luz por cesariana, o que geralmente é mais arriscado para as mulheres do que um parto normal.

A cicatrização no útero das duas operações faz com que seja provável que ela precise de cesariana em partos futuros, além de aumentar o risco de problemas de placenta que podem colocar sua vida em risco. As pequenas incisões para os fetoscópios são pensadas para reduzir essas complicações.

Para desenvolver seu procedimento fetoscópico, Belfort e Whitehead operaram em ovinos e passaram várias centenas de horas ao longo de dois anos praticando em um simulador que eles mesmos criaram. Esse aparelho consiste em uma bola de borracha do tamanho de uma bola de basquete --como um útero com 24 semanas de gravidez-- com uma boneca no interior, embrulhada em pele de frango que cortaram para imitar a espinha bífida. 

Os médicos realizam simulações com uma bola --o útero-- e uma boneca, com o intuito de aperfeiçoar a técnica usada na cirurgia - Beatrice de Gea/The New York Times - Beatrice de Gea/The New York Times
Os médicos realizam simulações com uma bola --o útero-- e uma boneca, com o intuito de aperfeiçoar a técnica usada na cirurgia
Imagem: Beatrice de Gea/The New York Times

Eles inseriam fetoscópios na bola e, com os olhos no monitor, trabalharam juntos para costurar a pele de frango. Realizaram mais de 30 operações simuladas, incluindo duas sessões em uma sala de operação, com uma equipe cirúrgica completa. Chegaram ainda a usar o simulador pelo menos duas vezes por mês para manter suas habilidades, disse Belfort.

Eles operaram a primeira paciente em julho de 2014. Em agosto, na revista científica "Obstetrics and Gynecology", relataram seus primeiros 28 casos. Até agora, os resultados foram bons, embora os números sejam pequenos.

Nenhum feto morreu, poucos necessitaram de "shunts" e algumas das mães tiveram partos normais. As gravidezes parecem durar mais, aproximando-se mais do final do que com o procedimento aberto. Mais pesquisas são necessárias, mas outros centros médicos começaram a adotar a técnica. Cirurgiões da Universidade Johns Hopkins usaram isso para tratar cinco pacientes, e Belfort está ajudando a formar colegas em Stanford.

Os médicos que praticam o procedimento aberto são críticos e alertam que o dióxido de carbono bombeado para o útero pode prejudicar o feto e causar problemas neurológicos. Belfort disse que não houve provas de danos. Mas o tempo dirá.

Lexi, que ficará em um apartamento em Houston até o fim da gravidez, teve uma recuperação dolorosa da cirurgia. Mas não tem arrependimentos.

"O procedimento não é obrigatório, mas eu definitivamente sinto que é a coisa certa para nós. Ver o ultrassom e como ele está se saindo bem, movendo os tornozelos e os pés, é um momento muito feliz", disse ela.

"Não consigo imaginar continuar a gravidez sem saber quais danos estavam sendo causados e se ele estava piorando. Agora estou mais aliviada para continuar."

O parto deve ocorrer até 14 de janeiro.