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Como o presidente reeleito da Nigéria precisou provar que não era um clone

27.fev.2019 - Homem lê jornal que anuncia a reeleição do presidente da Nigéria, Muhammadu Buhari, em Kano - Luis Tato/AFP
27.fev.2019 - Homem lê jornal que anuncia a reeleição do presidente da Nigéria, Muhammadu Buhari, em Kano Imagem: Luis Tato/AFP

Alexandre Orrico

Colaboração para o UOL, em São Paulo

27/02/2019 10h57

Resumo da notícia

  • Boato da eleição: o verdadeiro Buhari teria morrido e sido substituído por clone
  • Num país onde 74% do conteúdo trafega por celulares, a fake news bombou
  • Adversário de Buhari, Nnamdi Kanu usou o boato para atrapalhar a reeleição
  • Kanu tenta provar nas redes sociais que se trata de um sósia
  • Para isso, analisa o jeito dele escrever e a palma de sua mão
  • Até que o próprio Kanu foi vítima de boatos: ele teria sido assassinado por Buhari

A maior economia da África sofre com as fake news em uma escala que deixaria com inveja qualquer produtor brasileiro de notícias falsas 

A Nigéria, maior economia da África, continuará com Muhammadu Buhari, 76, como presidente pelos próximos quatro anos. No cargo desde 2015, Buhari, ex-ditador e ex-general, foi declarado reeleito no fim desta terça (26), com 51% dos votos, contra 41% de seu principal opositor, Atiku Abukabar, 72, ex-vice-presidente e empresário multimilionário.

Mas antes de conseguir vencer Abukabar nas urnas, o presidente teve que lutar contra um boato de dar inveja em qualquer fabricante brasileiro de fake news: ele, o verdadeiro Buhari, teria morrido e sido substituído por um clone.

Em 2017 Buhari foi para Londres fazer um tratamento médico e ficou por lá três meses, longe da vida pública. Ele nunca deu maiores explicações sobre que doença tenebrosa fez com que ele ficasse esse tempo na Europa.

Quando voltou, o vácuo criado pela falta de informação havia sido preenchido por boatos.

Apoiadores do presidente Muhammadu Buhari comemoram sua reeleição em Katsina, na Nigéria - Sani Maikatanga/Reuters - Sani Maikatanga/Reuters
Apoiadores do presidente Muhammadu Buhari comemoram sua reeleição em Katsina, na Nigéria
Imagem: Sani Maikatanga/Reuters

Se você provavelmente já tem uma boa noção de como notícias falsas se espalham ferozmente no Facebook e no WhatsApp por aqui, imagina na Nigéria, um país com 86 milhões de usuários de internet onde 74% do conteúdo trafega por celulares --a maior taxa do mundo.

Meme descontrolado

Então o que começou como zoeira de internet ficou sério: segundo a agência de notícias francesa AFP, em 2018, a suposta morte e substituição de Buhari já tinha mais de meio milhão de visualizações em diversas redes. Uma pedra no sapato para quem tinha acabado de dizer que gostaria de ser presidente novamente.

O ativista político Nnamdi Kanu, que não é muito fã de Buhari, viu nestas fake news uma chance de ouro para desestabilizar o presidente e atrapalhar o plano de reeleição. Kanu defende com unhas e dentes a independência da Biafra, uma região no sudeste da Nigéria que já foi brevemente uma república em 1967.

Como dizer que o presidente é um clone de si próprio parecia ficção científica demais, Kanu começou a disseminar outra versão: a que dizia que o presidente havia morrido sim, mas em vez de clone seria na verdade um sósia sudanês chamado Jubril.

As redes sociais do ativista estão lotadas de "informação" sobre o assunto; ele já apontou que Buhari é canhoto enquanto Jubril é destro (uma busca reversa mostra que uma das imagens foi invertida para passar essa falsa impressão) e já fez uma análise comparativa das do desenho das linhas das mãos de Buhari para "desmascarar" o suposto impostor.

Na semana passada Kanu fez uma live de 40 minutos no Facebook, assistida por mais de 50 mil pessoas, chamada de "uma apresentação definitiva sobre Jubril, o impostor de Buhari e presidente da Nigéria".

Kanu não usa as fake news como arma política à toa. Em 2015, ele falou que defenderia a independência da Biafra mesmo que fosse na bala. Logo depois foi preso, sem julgamento, sob a acusação de traição. Saiu sob fiança depois de quase dois anos. Hoje, talvez com medo de ir pro xilindró novamente, ele mudou de estratégia. Afinal, para quê pensar em matar o presidente se você pode inventar que ele já está morto?

Oi, estou vivo

Muhammadu Buhari se viu na obrigação de afirmar publicamente que estava vivo e aproveitou o microfone de uma reunião da ONU sobre mudanças climáticas para dizer não era clone ou cópia coisa nenhuma. O vídeo da fala está até hoje tá pinado no Twitter dele.

Passada a eleição, nada indica que Kanu vá desistir da teoria. Como se a história já não fosse surreal o suficiente, o próprio ativista se viu recentemente vítima de boatos anunciando sua morte. Ele teria sido assassinado, quem diria, pelo próprio presidente reeleito Muhammadu Buhari.

Guerra de fake news

Wole Soyinka, escritor nigeriano e prêmio Nobel, resumiu a preocupação com o este cenário de proliferação de fake news em uma conferência sobre notícias falsas da BBC que aconteceu neste mês: "se nós não tomarmos cuidado, a terceira guerra mundial será iniciada por fake news, e estas fake news provavelmente serão geradas por um nigeriano".

Além de enfrentar as consequências de uma recessão econômica, terrorismo, corrupção e desemprego, o presidente reeleito provavelmente ainda vai ter que dizer mais algumas vezes que está, sim, vivo, seja ele clone, cópia ou o Buhari original. 

Moradores de Kano, na Nigéria, comemoram a reeleição do presidente Muhammadu Buhari - Luis Tato/AFP - Luis Tato/AFP
Moradores de Kano, na Nigéria, comemoram a reeleição do presidente Muhammadu Buhari
Imagem: Luis Tato/AFP

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