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DVD é o novo LP: quem ainda compra e aluga filmes desse jeito no Brasil?

Há quem valorize filmes que só existem em DVD e faça questão de ter em casa; você curte? -
Há quem valorize filmes que só existem em DVD e faça questão de ter em casa; você curte?

Matheus Pichonelli

Colaboração para o UOL, em São Paulo

09/04/2019 04h00

Resumo da notícia

  • O DVD é uma mídia ameaçada de extinção, mas que ainda tem um público fiel
  • Esse público curte curadoria e filmes que não são encontrados na Netflix, por exemplo
  • Plataformas de streaming priorizam lançamentos e não atendem cinéfilos
  • Há um mercado fiel, mas que sofreu um baque com a crise das megalivrarias

A videolocadora da minha cidade criou um perfil no Facebook em 13 de outubro de 2011. No mesmo dia, anunciou: "Acompanhe e saiba tudo sobre os últimos lançamentos em Blu-ray e DVD, notícias sobre o mundo do cinema e outras novidades". Foi o segundo e último post da página, que nunca mais foi atualizada. No dia 20 de março deste ano, após 26 anos, a videolocadora fechou as portas e disponibilizou todo seu acervo para venda.

Eu era um dos sócios, mas não alugava filmes lá havia algum tempo - mais precisamente, desde que instalei uma SmartTV na sala e passei a acompanhar com mais atenção o catálogo da Netflix, que antes só via (quase nunca) pelo celular.

A ironia é que eu soube do fechamento da videolocadora 20 minutos após terminar uma conversava, pelo WhatsApp, com o Carlos Vinícius Borges, o Cavi, dono da lendária Cavideos, que há 21 anos funciona em Humaitá, no Rio de Janeiro. Meu contato com ele, com um pedido de entrevista, tinha uma pergunta central: quem ainda compra ou aluga DVD no Brasil?

A pergunta se desdobrava em outras, e não tinha só interesse jornalístico, mas também pessoal. Queria entender, e dimensionar, o que e o quanto estamos perdendo nesta rápida transição na forma como acessamos o cinema dentro e fora de casa.

cavi - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Cavi, dono da Cavideos: "Tomara que, a exemplo do Super 8, os DVDs se tornem cults"
Imagem: Arquivo pessoal

Uma mídia em extinção

Quando criança, esperava ansioso meu pai chegar em casa na sexta-feira com os VHSs que assistiríamos em família no sábado --só depois de adulto fui entender por que os dele ficavam sempre no alto do "bar" da sala de estar, aquele móvel de cerejeira onde guardávamos licores baratos e pendurávamos nossas taças de gosto duvidoso de cabeça para baixo. Os anos 90 eram um grito de alerta: exija fita selada!

Na década seguinte, já faculdade, vi o acervo de DVD da biblioteca ser praticamente montado com a chegada da "nova tecnologia". Em São Paulo, nossos finais de semana tinham mais DVDs da 2001 do que comida na geladeira. Até outro dia, comprava tudo o que podia das coleções de DVDs nas bancas dos jornais, e forrei as estantes de casa a cada queima de estoque das Lojas Americanas, herdeira do espólio da Blockbuster. Montei, assim, minha própria videoteca.

Até que, em uma reunião, ouvi um produtor cultural dizer que não conseguiu avaliar a versão final de um documentário que lançaria em DVD porque ninguém na produtora tinha aparelho ou computador com entrada para aquela mídia. O documentário foi lançado em um pendrive dentro de uma caixa. Aquela conversa foi a senha para não deixar meu filho chegar perto, com suas mãozinhas destruidoras, do meu velho aparelho de DVD. Tudo o que sabia sobre cinema ainda cabia lá.

Dados recentes do Centro de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) e da Associação Nacional de Fabricantes de Produtos Eletrônicos (Eletros) dão uma noção do quadro:

  • O índice de pessoas que assistia vídeos online passou de 49% para 71% entre 2012 e 2017
  • A fabricação de aparelhos de DVDs caiu de 1,5 milhão em 2016 para 638 mil em 2018

Me sentindo numa ilha que afunda um pouco mais a cada dia, levei minhas questões a dois entendidos no assunto: como vamos ver nossos filmes favoritos quando eles simplesmente deixarem o catálogo das plataformas de streaming? Os aparelhos vão simplesmente desaparecer do mercado e virar objeto de museu, como aconteceu com as máquinas de escrever após a chegada dos PCs? O DVD tende a se tornar um novo vinil, produto que não só voltou às prateleiras como aqueceu a própria indústria fonográfica em tempos recentes?

Em outras palavras: se não guardar meus filmes num cofre, como meu filho descobrirá, daqui a alguns anos, diretores como Scorsese, Kurosawa ou Bergman?

locadora - Getty Images - Getty Images
Para sobreviver, as locadoras precisam se reinventar: viraram de casa de sucos a ponto de encontro de cinéfilos
Imagem: Getty Images

Falta curadoria

"É um problema sério", reconhece o Cavi, compartilhando das minhas aflições.

Esses streamings mais conhecidos não têm um acervo gigantesco. Quem é cinéfilo, desses que vê dois filmes por dia, em um mês já viu tudo. Se as plataformas não melhorarem isso, se não olharem para esses cinéfilos, vão acabar atingindo só esse público mais superficial, que vê filme uma vez por semana e só quer saber de lançamento

Para ele, a tendência é que surjam plataformas dedicadas a filmes artísticos ou independentes, caso do MUBI. Até lá, diz, locadoras como as dele, que possui um acervo de quase 25 mil filmes, será destino de quem busca obras que não encontram mais em lugar nenhum - principalmente os clássicos, que, segundo ele, as plataformas não valorizam.

Para o colecionador, que possui filmes de cineastas de várias partes do mundo, trazidos de viagens ou deixados ali pelos próprios diretores, a força da nova tecnologia é impossível de conter, mas isso não quer dizer que muita coisa não se perca na transição.

A nova geração se guia pela curadoria dessas plataformas e não é estimulada a ver esse tipo de filme. Antes havia no balcão uma pessoa que te indicava filmes e novos diretores no tête-à-tête. O streaming ainda não conseguiu encontrar essa forma de diferenciação e curadoria. Você acaba sendo obrigado a ver o que eles querem, não o que você quer. A relação ficou muito mais fria
Cavi

Fernando Brito - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Fernando Brito, curador da Versátil Home Vídeo: "o público cinéfilo continuava comprando, ele não abandonou o DVD"
Imagem: Arquivo pessoal

I will survive

Para Fernando Brito, curador da Versátil Home Vídeo, empresa especializada em cinema autoral, o cenário não é tão catastrófico. Ele sabe o que diz: desde 1995, quando começou a trabalhar no setor, ele sentiu de perto o tranco da chegada da Blockbuster, da pirataria, do torrent e, agora do streaming. E sobreviveu.

Segundo ele, todo mercado de home vídeo passa por um processo de encolhimento, mas o Brasil é um caso à parte - e não apenas porque millennials e mídia física são quase como água e óleo no mesmo copo. Os lançamentos de box e coleções vinham numa crescente até a crise das principais megastores de livros e discos do país, a Livraria Cultura e a Saraiva - que, com o fim das locadoras, respondiam por cerca de 40% das compras desses filmes.

O pedido de recuperação judicial das duas empresas representou um baque ao mercado de home vídeo: dívidas congeladas, atraso em pagamentos, queda na receita, etc. Isso afetou o acesso aos pontos de venda e, com o alto preço do frete para compras online, interrompeu um processo de adaptação das editoras de vídeo, que se voltavam ao público de colecionadores - um público ainda considerável que não se sente representado pela Netflix.

Esse púbico faz questão de ter na mão, literalmente, uma experiência mais profunda com os filmes, o que envolve ter acesso aos extras, comentários do diretor, recortes curatoriais, box com filmes de gênero e cards dos pôsteres. Além, é claro, da possibilidade de ter o filme em casa para sempre, e não até a próxima limpa do catálogo.

Não acredito em ruptura total, mas em uma transformação. O que posso garantir: o público cinéfilo continuava comprando. Ele não abandonou o DVD, como um dia a máquina de escrever foi abandonada.
Fernando Brito

No caso da Versátil, a aposta é em coleções temáticas de filmes que simplesmente não chegam ao streaming, como cinema japonês, policial dos anos 70, filmes noir, de lobisomen, terror, vampiros - e, claro, recortes de obras fundamentais de diretores como Bergman, que no ano passado completou 100 anos.

Esse mercado de nicho tem tudo para sobreviver, segundo Brito:

Há uma demanda reprimida desses filmes, que não vai sumir de uma hora para outra. Muita gente valoriza esse material e faz questão de ter em casa. O colecionador que consome filmes clássicos ou documentários tem uma relação com cinema mais duradora, menos superficial. Ele ainda compra e é fiel à mídia física

O problema é que, com a crise das megastores, as empresas tiveram de reduzir o orçamento e replanejar toda a estratégia do ano. A Versátil, por exemplo, estima lançar em 2019 tiragens que representam de 30% a 40% do que lançava no auge da produção. A expectativa é que essas grandes livrarias se recuperem e que outros atores possam entrar neste mercado para dar vazão aos lançamentos.

Neste compasso de espera, porém, muitas distribuidoras têm desistido da mídia física e algumas saíram de vez do mercado. Um exemplo desse cenário é que filmes como "Moonlight", vencedor do Oscar em 2016, jamais foram lançados em DVD no Brasil.

Se está difícil para quem vende, imagina para quem aluga? A locadora de Cavi, por exemplo, tem cerca de 25 mil clientes, mas nem um quinto disso ainda aluga. No caso dele, o ponto de encontro de cinéfilos virou uma produtora de eventos culturais que distribui e produz os próprios filmes, porque, ele conta, só o aluguel de DVDs não compensa mais.

"Sempre encaramos a locadora como uma extensão do nosso quarto, da nossa casa. Os clientes percebiam isso. Não eram só pessoas que iam lá para consumir, eram amigos. Quase todos os funcionários da locadora eram clientes", diz.

Esse clima é o que faz renascer agora os cineclubes, comuns no início dos anos 2000 e que voltaram a aparecer. "Ajudei uns 15 cineclubes a serem abertos, indo lá fazer debate, emprestando filmes ou fazendo link com os diretores. Os cineclubes são um início para muita gente que quer ser diretor de cinema. Começam pela cinefilia e depois têm vontade de fazer, como eu." Cavi, como cineasta, já dirigiu filmes como o documentário "Cidade de Deus - 10 anos depois", de 2013, que por ironia do destino pode ser encontrado em plataformas como a Netflix.

Apesar da preocupação com a queda na produção, ele espera que, no futuro próximo, os DVDs deixem de ser um produto esquecido e se tornem o "novo vinil":

Tomara que, a exemplo do Super 8, os DVDs se tornem cults. Como se fosse uma obra de arte, um quadro, algo que pode ser autografado. Isso seria maravilhoso. Se vai rolar, só o tempo vai dizer