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Das joias aos gadgets: quem é a designer que revolucionou o Google

Ivy Ross, vice-presidente de design de hardware no Google - Benjamin Krantz/Divulgação
Ivy Ross, vice-presidente de design de hardware no Google Imagem: Benjamin Krantz/Divulgação

Matheus Pichonelli

Colaboração para o UOL, em São Paulo

24/05/2019 04h00Atualizada em 24/05/2019 15h28

Resumo da notícia

  • Ivy Ross, contratada pelo Google em 2014, esteve à frente do Glass
  • Empresa restringiu venda dos óculos, mas Ross seguiu impondo sua marca
  • Ela vem definindo nova estética do Google como suave e convidativa
  • Alto-falante Home e celular Pixel são outros produtos com assinatura visual de Ross

Com mochilas nas costas e óculos no rosto, um grupo de engenheiros saltava do helicóptero para espalhar a novidade. Do alto, mesmo tendo as mãos livres, eles faziam fotos e compartilhavam vídeos na velocidade de um Hangout in Air. Tudo era capturado pelos óculos, explicava o Google ao fim do vídeo promocional, lançado em julho de 2012.

Vista hoje, a queda parece a alegoria perfeita entre expectativa e realidade daquela invenção. O Google Glass não demoraria a se tornar um retumbante fracasso, e a imagem dos "glassholes", espécie de stalkers que registravam tudo ao redor sem pedir licença, resumia o conflito. Google, estética e privacidade não cabiam na mesma frase.

Depois do tropeço, o projeto foi repaginado e passou a ser liderado por Ivy Ross, uma designer de joias contratada pela gigante de tecnologia em 2014 após trabalhar em campanhas de sucesso para a GAP e a Calvin Klein. Um ano depois, o Google anunciava que o produto só seria vendido para empresas e desenvolvedores.

Google Glass marcou a história da empresa - Dan Leveille/Divulgação - Dan Leveille/Divulgação
Google Glass marcou a história da empresa
Imagem: Dan Leveille/Divulgação

O Google Glass foi rebaixado, mas Ross caiu para cima, como se diz no jargão empresarial. Em 2016, ela se tornou vice-presidente de design de hardware do Google, dando início a uma verdadeira reconfiguração nos desenhos e no posicionamento da companhia.

Entre suas responsabilidades está, por exemplo, o Laboratório de Empatia --um espaço, segundo ela, para diferentes profissionais se questionarem sobre o que fazem, como fazem, como se relacionam e quais as responsabilidades envolvidas na interação entre máquinas e humanos.

Sete anos depois do salto frustrado do Google Glass, a mudança (sem trocadilhos) está na cara.

Uma das primeiras designers de joias a usar titânio, tântalo e nióbio, elementos que revelavam espectro de cores quando em contato com a eletricidade, Ivy Ross apresentou seu lado artístico pelo mundo até os 20 anos. Com obras expostas em 12 museus internacionais no currículo, entre eles o Smithsonian, em Washington (EUA), ela cruzou o rubicão do mundo das artes e o mundo dos negócios muito antes de chegar ao Google.

"Com minha egotrip satisfeita quando jovem, comecei a me perguntar como poderia alcançar outras pessoas. E vejo o meu papel como o maestro de orquestra neste momento. Meu trabalho agora é entender e ver os dons e talentos de todos, e criar os diálogos que nos impulsionam coletivamente", disse ela em uma entrevista recente.

Especializada em design e psicologia durante os estudos na Escola Superior de Arte, na Escola de Design da Universidade Syracuse e no Fashion Institute of Technology, em Nova York, onde nasceu, ela decidiu estudar gestão na Harvard Business School no início dos anos 1990. Foi assim que se credenciou para atuar como vice-presidente de design de produtos para garotas da Mattel.

Até chegar ao Google, Ross passou ainda por postos executivos na Gap Inc, na Art.com e Disney Stores of America, onde foi chefe de criação.

Google na sala de estar

Aos 65 anos, a ex-designer de joias é hoje peça-chave na transição da gigante da tecnologia em direção ao mundo prestes a ser reconfigurado pela internet da coisas.

Essa transição tirou o Google do rosto dos bisbilhoteiros e levou a empresa ao Salão do Móvel em Milão, onde apresentou, em abril de 2018, a instalação sensorial "Softwear".

Exposição Softwear, do Salão do Móvel de Milão, em 2018 - Divulgação/Google - Divulgação/Google
Exposição Softwear, do Salão do Móvel de Milão, em 2018. No topo do objeto branco ao centro está um Google Home, alto-falante inteligente da empresa
Imagem: Divulgação/Google

A empresa voltou ao local, em abril deste ano, com a mostra "Space for Being", projetada a partir dos princípios da neuroestética, ramo da ciência que investiga como a estética visual afeta nossos corpos e mentes.

A não ser os veículos especializados, pouca gente notou que, ao se posicionar nestes espaços, o Google anunciava para o mundo: cansei de ser feio.

Segundo o neurocientista cognitivo Álvaro Machado Dias, que também é professor livre-docente da Universidade Federal de São Paulo e blogueiro do UOL Tecnologia, a chegada de Ivy Ross ao Google coincide com um momento em que a empresa começava a sofrer contestações em razão do desprezo pela privacidade e pela experiência dos usuários com seus produtos que, até então, eram projetados para serem funcionais e ponto.

"O Google Glass, ao contrário das expectativas, foi um fiasco histórico", lembra. "Aquele monte de gente tirando foto um do outro pelas ruas gerou um grande mal-estar", diz o especialista. A partir de 2014, esse pouco caso com os usuários e a privacidade, que renderia multas milionárias à companhia, se tornou também um problema para os acionistas.

Naquele momento, lembra Machado Dias, o Google se preparava para lançar seu próprio smartphone, o Google Pixel. E acabava de comprar a Nest, uma empresa que havia desenvolvido sensores inteligentes de controle da temperatura e fumaça dentro de casa. "Ali se preparava o terreno para o que daria origem ao Google Home".

Google Home Hub, Pixel Slate, Pixel 3 e 3 XL - Márcio Padrão/UOL - Márcio Padrão/UOL
Google Home Hub, Pixel Slate, Pixel 3 e 3 XL
Imagem: Márcio Padrão/UOL

Em outras palavras, o mundo da internet das coisas começava a ser desenhado.

As empresas começaram a entender que precisavam dar um passo além no relacionamento com o usuário. Isso coloca em questão a intimidade das pessoas, já que você está entrando na casa delas e precisa passar uma sensação de privacidade. É nesse contexto que o Google começa a mudar a sua estética, adotando padrões mais simples, mas delicados, mais minimalistas. Era um jeito de dizer: 'não somos intrusivos'
Álvaro Machado Dias

A responsável por pincelar esta imagem é filha de um designer industrial que trabalhava para Raymond Loewy, ícone do design. Ivy Ross conta ter aprendido com o pai a ver as coisas além da aparência. Em entrevista à revista de tecnologia "Fast Company", ela disse que desde criança via o pai observar as luminárias da casa enquanto se perguntava como poderia transformar aquilo em outro gadget.

"Um designer resolve problemas dos quais milhões de pessoas vão se beneficiar. E, para mim, isso se tornou realmente inspirador", definiu ela.

No texto de abertura da entrevista, concedida em 2018, a publicação informava que quem estava criando os acessórios mais bonitos da atualidade não era a Apple, a Samsung ou a Microsoft --e sim (quem diria?) o Google. Entre os produtos, a publicação destacava as caixas de som e os fones desenvolvidos pela companhia.

Na entrevista, a preocupação com a privacidade ficava clara: ela definia a nova estética do Google como suave, humana e convidativa. E que o desafio era fazer os produtos se encaixarem no ambiente sem parecer uma intrusão.

A tecnologia está aqui para nos ajudar, não para nos assustar. Mas algumas coisas não podem ser invisíveis, elas precisam ser mostradas ou colocadas em algum lugar. Elas devem ser esteticamente bonitas e se somar ao espaço, não subtrair. Todos nós estamos tentando nos livrar de algumas das bagunças da nossa vida
Ivy Ross

Estética Google em ascensão

Isso significa que o Google conseguiu alcançar uma estética própria, mais ou menos como fez a Apple, com seus iPads e iPhones, no início dos anos 2000?

Para Rachel Zuanon, professora do Instituto de Artes da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas-SP) e estudiosa da relação entre neurociência e processos criativos, ainda não.

"Essa 'estética Google' ainda está em construção. Não temos uma febre Google, como vimos com os produtos da Apple", disse Rachel. Para ela, o desafio é saber que não basta ter os dados em mãos: é preciso saber interpretar esses dados e traduzi-los.

"Quando a gente abraça essa perspectiva de cooperação entre os campos do conhecimento da neurociência, da arte e do design de maneira conectada, uma nova perspectiva se abre", diz.

Para Zuanon, não é por acaso que o Google escolheu para comandar esta transformação uma artista especializada em design de joias:

São produtos que exercem fascínio. É todo um imaginário que um designer tem de considerar quando projeta uma joia. Não é só uma questão funcional, ela te reposiciona. O Google foi muito sagaz em trazer alguém que sabe muito bem como despertar sentimento, emoção, atração e conexão

Por isso, avalia a professora, ir a Milão, em uma feira de design, é também estratégico. "Ela vai a campo para entender as diferentes interfaces de relacionamento com o público. É uma forma de construir uma relação da marca com seus consumidores. É uma empresa que já tem isso muito forte do ponto de vista das aplicações, dos mecanismos de busca. Agora eles também precisam desenvolver uma linha de hardware de maneira consistente."

Essa reconfiguração tem impacto também na arquitetura da empresa. Literalmente.

Campus Google São Paulo - Divulgação - Divulgação
Campus São Paulo do Google
Imagem: Divulgação

Com seis pavimentos, o Campus São Paulo do Google, localizado no bairro do Paraíso, tem LEED --a melhor certificação para edificações "verdes", isto é, sustentáveis ambientalmente-- e espaços abertos ao público, que convivem com áreas dedicadas a programas de startups da empresa e seus parceiros.

A decoração é inspirada no conceito "selva de pedra" e contém diversos elementos da cultura paulistana, como a Virada Cultural e a festa da Achiropita.

"Se antigamente os escritórios tentavam parecer casas, hoje é um caminho que parece uma universidade, com áreas apropriadas para cada tipo de uso. Vemos um cuidado com os próprios funcionários, com noções de conforto térmico e acústica. Eles só vão se locomover até lá se for um lugar especial, com diferentes salas de reuniões, como salas de brainstorming", explica Lula Gouveia, arquiteto do Superlimão Studio, que desenvolveu o projeto do Campus São Paulo.

Segundo ele, a ideia de escritório está mudando completamente --e são as empresas de tecnologia que lideram esta transformação.

Quando, portanto, alguém se questionar como um antigo site de buscas está ajudando a reconfigurar o mundo, a resposta não estará só na tela do computador ou do smartphone. Estará no desenho das casas, dos aparelhos, e das salas de reunião.

Na definição da revista Elle Decor, esse novo mundo Google é "surpreendentemente feminino e discreto" e busca "promover uma nova tecnologia que não pretende dominar nossas vidas, mas se integrar a elas".

Como resumiu Ivy Ross, em entrevista ao site Dezeen, "os objetos que você escolhe afetam seu bem-estar e seu corpo, e o fato de que a neurociência está provando isso é emocionante para nós".

Parece uma carta de princípios do estilo Made by Google. E é.

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