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Os bastidores do projeto 'Balas Perdidas' da AFP

14/12/2017 10h04

Rio de Janeiro, 14 dez 2017 (AFP) - "Morrer atingido por uma bala perdida antes mesmo de nascer. Como algo assim poderia ser imaginável?", questiona Pascale Trouillaud, diretora do escritório da Agência France-Presse no Rio de Janeiro (AFP-Rio).

Foi para dar corpo a esta realidade que nasceu o projeto multimídia interativo "Balas Perdidas".

- O projeto - O título, a princípio, impôs-se por conta própria. Foi a única coisa que não produziu qualquer discussão em nosso escritório da AFP-Rio em torno do nosso projeto multimídia interativo: "balas perdidas" para português e o espanhol, "balles perdues" para o francês, "stray bullets" para o inglês.

Um título que diz tudo sobre a inocência das vítimas. Um título marcante. Como essas balas que ceifam a vida de uma criança da favela brincando no pátio da escola e que arruínam seus pais para sempre.

Havia chegado na "Cidade Maravilhosa" há um mês e a tragédia de um feto atingido por um tiro no ventre da mãe me fez pensar que tínhamos chegado ao ápice do horror.

Morrer de uma bala perdida antes mesmo de nascer. Como algo assim poderia ser imaginável?

- 'Guerra no Rio' -Inicialmente, havia Mauro. Nosso então freelancer de fotografia brasileiro, um carioca bem familiarizado com as favelas do Rio de Janeiro, que nos trouxe a ideia: realizar uma reportagem sobre a explosão de violência nas "comunidades" um ano após os Jogos Olímpicos em torno do tema das balas perdidas.

Em julho passado, os tiroteios ocupavam as primeiras páginas dos jornais. O Extra e O Globo lançavam uma página perturbadora, intitulada "Guerra no Rio". Em agosto, o exército foi chamado para ocupar as favelas. Meses antes, houve registros de policiais envolvidos em tráfico de armas.

Rio, metrópole tropical de cartão postal, cidade do samba, de praias e do futebol, capturada em uma espiral incontrolável de corrupção e violência.

Nós nos lançamos cheios de entusiasmo neste projeto misturando vídeo, foto e texto.

A ideia era falar, a partir de um outro ponto de vista, do aumento da violência nesses amontoados de casas coloridas que brotam nos morros do Rio; dar voz às vítimas pegas em meio ao fogo cruzado entre quadrilhas de criminosos e as forças de segurança. Pessoas comuns que não têm nada a ver com as redes mafiosas que controlam essas zonas sem lei.

Mas quantos testemunhos? Em qual formato? Policiais também? Sociólogos para compreender melhor a situação? Historiadores? Políticos, talvez? E como diferenciar as balas perdidas dos possíveis excessos nas intervenções policiais?

Depois de muito debate, optamos por um projeto homogêneo: iríamos entrevistar apenas moradores de favelas (ou de bairros adjacentes), afetados na pele ou que tiveram um parente morto por uma bala perdida. Pessoas que contassem a história de uma vida que mudou quando eles mesmos, seu filho, seu irmão ou sua mãe estiveram no lugar errado na hora errada.

Desde a nossa primeira entrevista, o testemunho foi tão forte, o discurso tão poderoso, que decidimos filmar os personagens em um fundo preto, em close, sem o ambiente deles. Nós não mostramos as favelas, os becos ou as casas modestas onde entrevistamos nossas testemunhas para não tirar nada da força de suas palavras.

Por outro lado, filmamos e fotografamos os cadernos preenchidos com uma caligrafia aplicada, o pequeno par de tênis e as medalhas: esses objetos evidenciam que a vida de uma criança foi interrompida, que nunca mais poderá ir à escola, nem jogar futebol, nem participar de um torneio de basquete.

Também escolhemos entrevistar apenas oito pessoas, quando havíamos partido da ideia de colher vinte depoimentos. Ouvir as palavras arrepiantes dessas vítimas foi esgotante. Estas oito histórias são todas parecidas, mas todas igualmente diferentes.

O testemunho de Luciana Novaes nos comoveu particularmente. Totalmente paralisada do pescoço para baixo após ter sido atingida por uma bala perdida, Luciana diz, com uma voz doce, pontuada pelo barulho terrível de seu respirador artificial, "agradeço a Deus todos os dias por não guardar raiva dentro de mim".

Tornando-se vereadora para "ajudar os outros" após sua provação, Luciana, a quem essa bala em seu corpo a deixou com apenas 1% de chance de sobreviver, vive hoje, tetraplégica, "uma espécie de renascimento". Demorou um ano para voltar a falar e oito meses antes de poder se alimentar pela boca novamente.

Emendamos esses encontros muito fortes e o projeto se tornou mais ambicioso. O serviço de Infografia e Inovações em Paris nos levou a refletir sobre um módulo interativo, com gráficos e mapas para explicar o contexto. Recuperamos o valioso banco de dados "Fogo Cruzado" da Anistia Internacional, que lista as vítimas dos tiroteios nas favelas.

Símbolo de tempos tão perturbadores, "Fogo Cruzado" é um serviço participativo que fornece há seis meses em tempo real aos moradores dos bairros sensíveis do Rio a localização de tiroteios perto de suas casas, os mortos, os feridos, as operações da Polícia, para que não se aproximem. A maioria das cidades tem aplicativos para o trânsito, no Rio de Janeiro é para os tiroteios.

- Pulmões perfurados -Todos os jornalistas da AFP Rio - de língua espanhola, inglesa, francesa - participaram do projeto e a redação em português cuidou das traduções e encontrou algumas testemunhas.

Mais de quatro meses de trabalho realizado por uma dúzia de pessoas, dezenas de reuniões editoriais e centenas de e-mails e telefonemas depois, concluímos o projeto envolvendo a maioria dos serviços com um escritório da AFP no exterior, o de Infografia.

Um projeto cujos desafios não imaginávamos. Primeiro em nível técnico, assumidos no setor de Infografia em Paris por Frédéric, designer, e Clément, desenvolvedor, que também passou dias trabalhando neste módulo.

No Rio, a dificuldade era encontrar nossas testemunhas nas favelas, onde quase dois milhões de cariocas sobrevivem.

Mas a gente não entra em Manguinhos, Acari ou no conjunto Amarelinho como em uma fábrica, especialmente agora, e faz perguntas sobre a segurança. Era necessário encontrar, através dos nossos contatos, vítimas ou parentes de vítimas que concordassem em testemunhar. Às vezes, foram necessárias semanas de esforços.

Alguns não quiseram falar, como Claudinea, arrasada pela dor. Seu bebê Artur, nascido de 39 semanas após uma cesariana de emergência, paralisado e com os dois pulmões perfurados por uma bala perdida, não sobreviveu.

Nós recolhemos testemunhos de cariocas à beira das lágrimas, e, às vezes, tivemos que parar de fotografar ou filmar. Nossos jornalistas foram todos abalados pelo encontro com esses sobre os quais quase nunca se fala: homens e mulheres totalmente esquecidos pelas autoridades nessa guerra suja. Alguns falaram pela primeira vez de seu drama.

Eles sabem que nunca obterão Justiça, perderam um filho único, uma irmã amada, ou levaram um ano para voltar a falar e comer, mas se recusam a serem vencidos pelo ódio.

Nós, jornalistas no Rio, moramos em bairros menos violentos, geralmente vizinhos das favelas, porque a "Cidade Maravilhosa" tem mil comunidades. Mas quando no conforto de nossos apartamentos na Zona Sul escutamos os titoteios, não arriscamos nossas vidas. Não corremos o risco de sermos atingidos na cabeça por uma bala perdida que atravessou a parede. Podemos ir ao mercado de manhã sem temer se vamos voltar para casa com vida.

Mas agora, como me disseram os jornalistas que participaram desta aventura coletiva, "as vítimas das balas perdidas não são mais apenas números, a cada nova vítima, pensamos naqueles que encontramos".

- O tempo necessário -Após todas as nossas visitas às favelas, foi preciso sintetizar em 90 segundos os vídeos de nossos oito longos testemunhos, resumir nossos textos em poucas frases e guardar para nós apenas algumas fotos desses rostos graves e dignos, torturados pela dor de um luto inimaginável.

Uma das dificuldades foi trocar ideias remotamente (inclusive pelo fuso horário) entre duas equipes: uma, editorial, no Rio, e outra para os infográficos, em Paris.

Era como montar um quebra-cabeça em 10 pessoas, em que cada um fabricava suas peças. Respeitando o quadro inicial, as peças deveriam se encaixar perfeitamente, mas apenas a imagem final provaria o sucesso.

Em Paris, o desafio técnico era contar histórias sob a forma de um relato on-line que funcionasse em uma grande variedade de dispositivos - celular, telas pequenas ou grandes - com conexões wifi variáveis, diferentes navegadores e fácil de usar e entender. Clément, o desenvolvedor, conseguiu, graças a uma "espessa camada técnica", tornar invisível o tecnicismo do produto.

Tivemos um grande desafio de tradução, uma vez que o módulo foi produzido em francês, inglês, espanhol e português, incluindo oito vídeos com legendas nessas línguas - essencial para visualização em celulares.

No final, criamos um produto em um formato próximo ao de um mini-documentário interativo. Um projeto de longo prazo porque, sorte excepcional para profissionais que trabalham quase sempre com pressa, pudemos tomar o tempo necessário para contar essas histórias, assumindo a tarefa de focar no testemunho e não em uma explicação sobre as raízes da violência nas favelas do Rio.

Esperamos ter conseguido mostrar a dor, a impotência, o sentimento de injustiça, mas também a coragem e a imensa dignidade desses seres humanos confrontados com uma perda irreparável. Enfim, sentimo-nos honrados pela confiança que essas pessoas depositaram em nós.

Pascale Trouillaud, Diretora AFP-Brasil