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A luta para acabar com a mutilação genital feminina no Curdistão iraquiano

02/01/2019 17h58

Sharboty Saghira, Iraq, 2 Jan 2019 (AFP) - Apesar da ameaça de chuva na localidade de Sharboty Saghira, no Curdistão iraquiano, uma mulher se recusa a se mover da porta de uma casa onde duas meninas correm o risco de sofrer mutilação genital.

"Sei que estão em casa! Só quero conversar", grita a curda iraquiana Kurdistan Rasul, de 35 anos, que empreende uma cruzada com a ONG WADI contra a mutilação genital feminina (MGF).

A própria Rasul foi vítima de MGF, uma prática por meio da qual os genitais externos femininos são extirpados totalmente ou parcialmente, e que era extremamente frequente na região curda.

A campanha da WADI ajudou a reduzir esta prática e Rasul contribui para erradicá-la em Sharboty Saghira, ao leste da capital regional, Erbil. Já visitou a localidade em 25 ocasiões, desafiando a teoria do imame de que o Islã ordena a MGF e alertando as parteiras sobre os riscos de infecção e trauma emocional.

Nesta manhã de céu cinza, Rasul convida os moradores a conversarem sobre sua saúde na mesquita e aproveita para descrever os riscos da MGF. Uma mulher se aproxima dela e conta que sua vizinha planeja submeter suas duas filhas à mutilação genital.

Isso leva Rasul até a casa, onde bate na porta, antes de começar a pedir freneticamente que a deixem entrar. Mas a porta continua fechada.

"Estamos mudando as convicções das pessoas. Por isso é tão difícil", conta Rasul à AFP, afastando-se da casa.

- "Eu era só uma menina" -A MGF é praticada há décadas no Curdistão iraquiano, uma região que em geral é conhecida por suas posturas progressistas em termos de direitos da mulher.

As vítimas costumam ter quatro ou cinco anos e ficam afetadas durante anos, com sangramentos, sensibilidade sexual extremamente reduzida, rasgos durante os partos e depressão. Algumas morrem devido à perda de sangue ou a infecções.

As autoridades curdas proibiram a MGF em 2011 por meio de uma lei sobre violência doméstica, ameaçando os responsáveis com até três anos de prisão e uma multa de cerca de 80.000 dólares. Desde então, o número de casos diminuiu.

Segundo uma pesquisa do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) de 2014, 58,5% das mulheres do Curdistão tinham sido mutiladas.

Atualmente, a taxa é de 37,5% para as mulheres de entre 15 e 49 anos. No resto do Iraque, é inferior a 1%.

"Me cortou, estava doendo e eu chorei", lembra Shukriyeh, de 61 anos, sobre o dia em que sua mãe a mutilou, há mais de 50 anos. "Eu era só uma menina. Como ia me irritar com a minha mãe?".

As seis filhas de Shukriyeh também sofreram MGF, mas devido às campanhas intensas, se recusaram a fazer a mesma coisa com suas filhas.

Há alguns anos, Zeinab, de 38, permitiu que algumas mulheres de sua família mutilassem sua filha mais velha quando tinha três anos.

Após as sessões da WADI, protegeu suas outras duas filhas da mutilação genital.

"Naquele momento aceitei, mas agora não o faria. Sim, me arrependo. Mas o que posso fazer agora?".

- "De mulheres contra mulheres" -Para Rasul, é difícil combater um tipo de violência baseada em gênero que é praticada pelas próprias mulheres.

"O homens e as mulheres jovens concordam que deve-se pôr fim à MGF. Mas quando saímos de um povoado, as mulheres mais velhas dizem a eles: 'Tenham cuidado, essa ONG quer criar problemas'", conta.

"Eu digo a essas mulheres que isto é uma violência que elas fazem com suas próprias mãos, de mulheres contra mulheres", aponta Rasul.

A proximidade das que praticam a mutilação dificulta que as vítimas recorram à justiça.

"A lei de 2011 não está sendo aplicada porque as meninas não vão denunciar seus pais ou mães", aponta Parwin Hassan, que lidera a unidade contra a MGF do governo regional curdo.

Segundo Hassan, neste ano as autoridades curdas apresentarão uma estratégia para fortalecer a lei de 2011 e realizarão mais campanhas de conscientização.