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Lesões oculares e cegueira, marcas indeléveis dos protestos no Chile

12/11/2019 19h57

Santiago, 12 Nov 2019 (AFP) - Ao correr, ele sentiu um dos olhos se fechar. Segundos depois, o sangue no rosto confirmou que Carlos agora fazia parte das quase 200 pessoas com ferimentos oculares durante as manifestações no Chile, um recorde que supera o de algumas zonas em conflito no mundo.

Aos 18 anos e convicto de que um país com menor desigualdade social é possível, Carlos Vivanco engrossa a lista de feridos por esferas de chumbo disparadas pelas forças policiais nas manifestações que eclodiram no Chile há quatro semanas.

A cifra de feridos nos olhos durante a crise que começou no país, até agora um dos mais estáveis da região, supera o número de casos registrados na França durante a crise dos 'coletes amarelos', nos protestos em Hong Kong e no conflito israelense-palestino, segundo denúncias do Colégio Médico do Chile e de grupos de direitos humanos.

- Mutilados -Ao dispararem as esferas, "quiseram me causar dor, vergonha, arrependimento, medo, mas sinto que provocou o efeito contrário: sinto mais raiva do que medo; mais ódio do que vergonha e é contra essas pessoas que estão aí fora, atirando, mutilando as pessoas", diz Carlos com desembaraço, em sua casa na comuna de La Pintana, um bairro da periferia de Santiago.

Este estudante secundarista perdeu a visão total do olho esquerdo há três semanas, quando foi a um protesto em seu bairro. Enquanto corria para fugir da Polícia, foi atingido por oito esferas de chumbo no corpo, inclusive a que lhe causou a grave lesão ocular.

Por pouco não perdeu a visão do outro olho: outra esfera ficou encrustada na glândula lacrimal. Alguns centímetros a mais e Carlos teria tido o mesmo destino de Gustavo Gatica, um estudante de 21 anos, que ficou quase cego após ter sido atingido nos dois olhos por esferas na sexta-feira passada.

"Estava claro do que são capazes, mas não pensei que tivessem permissão para atirar assim, como açougueiros", afirma este jovem, ferido na primeira semana de protestos.

Em sua juventude, Carlos é um veterano de revoltas estudantis que lideram a convulsão social, uma militância aprendida do irmão mais velho, que em 2006 participou da chamada "Revolução dos Pinguins", contra o primeiro governo da presidente socialista Michelle Bachelet (2006-2010).

- Praça "Dignidade" -A quilômetros de La Pintana, nas proximidades da Praça Itália - epicentro das manifestações e renomada pelos manifestantes como "Praça Dignidade" -, César Callozo foi ferido assim como Carlos, quando tocava percussão com outros músicos.

"Havia um ambiente muito lindo; de repente senti o impacto no olho e caí no chão. Depois, a dor foi embora e o rosto ficou dormente; fiquei de pé e gritei que não iam me vencer", lembra à beira das lágrimas este construtor e músico de 35 anos, enquanto aguarda junto a outros feridos o exame médico no hospital Salvador de Santiago.

Na mesma sala, Nelson Iturriaga, de 43 anos, também espera que os médicos o ajudem a recuperar em parte a visão do olho ferido.

"Quiseram apagar o incêndio com gasolina e o povo continua nas ruas", pedindo "dignidade", diz Iturriaga, também construtor.

- "Triste recorde" -Mauricio López, chefe de turno da Unidade de Trauma Ocular do Hospital Salvador, que recebe a maioria das vítimas atingidas por esferas metálicas, lamentou a situação:

"Temos o triste recorde mundial no número de casos de cegueira. Muito mais do que em zonas de conflito como Hong Kong ou o que aconteceu com os 'coletes amarelos' em Paris, na Espanha ou até mesmo na guerra da Palestina".

"É uma epidemia", advertiu o oftalmologista.

O Instituto Nacional de Direitos Humanos (INDH) contabilizou na segunda-feira em 197 as pessoas com danos oculares, "especialmente por tiros de escopetas com esferas, mas também com outras armas, como o lançamento de bombas de gás lacrimogênio".

López assegurou que em 35 casos os feridos chegaram com olhos com lesões profundas e risco quase total de perder a visão.

O governo defendeu a ação dos Carabineiros (Polícia) junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, embora tenha se comprometido a limitar o uso deste tipo de munição.

Vinte mortos, cinco nas mãos das forças de segurança, milhares de feridos e detidos completam as estatísticas sombrias da crise social que levou Piñera a enviar os militares para patrulhar as ruas por nove dias.

Mudanças profundas no sistema privado de pensões, que castiga a maioria com renda insuficiente, e a reforma da Constituição, herdada da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990) são os pilares das demandas de uma população que pede um país menos desigual.

Com quase um mês de mobilizações, os protestos seguem.

"O movimento me custou um olho, mas estou feliz" porque a luta por um Chile mais justo continua, diz Carlos, mostrando orgulhoso a tatuagem sobre os dedos, que forma a palavra "Liberdade".

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