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Coronavírus e liberdades, o dilema dos aplicativos de rastreamento

27/05/2020 10h01

Paris, 27 Mai 2020 (AFP) - À medida que mais governos se voltam para os aplicativos de rastreamento na luta contra a COVID-19, surge um dilema entre a necessidade de proteger a saúde pública e o direito de seus usuários à privacidade.

Vários países lançaram aplicativos para telefones celulares com o objetivo de rastrear os movimentos das pessoas infectadas pelo vírus e alertar aqueles que estiveram em contato com elas, permitindo assim que as autoridades monitorem a propagação da pandemia.

Muitos temem, porém, que as informações pessoais coletadas por governos, ou empresas privadas, em nome do controle da pandemia possam ser usadas de forma abusiva em Estados autoritários.

"Se não tomarmos cuidado, a pandemia pode ser um marco importante na história da vigilância", escreveu o historiador israelense Yuval Noah Harari no jornal "Financial Times".

"Até agora, quando seu dedo tocava a tela do smartphone e clicava em um link, o governo queria saber exatamente em que seu dedo estava clicando. Mas, com o coronavírus, o foco do interesse muda. Agora, o governo quer saber a temperatura do seu dedo e pressão arterial sob a pele", completa.

Embora o progresso da tecnologia possa ser uma boa notícia para as autoridades de saúde pública, a "desvantagem é, obviamente, que isso daria legitimidade a um sistema de vigilância aterrador", disse Harari.

- 'Justificativa conveniente' -Muitos países já introduziram aplicativos para smartphones com a intenção de alertar as pessoas, caso tenham estado em contato próximo com alguém portador do vírus.

Em alguns países, seu uso é voluntário, mas em outros, não.

Os países asiáticos, os primeiros afetados pela pandemia que já causou mais de 350.000 mortos, também foram os primeiros a adotar esses aplicativos, muitas vezes de forma obrigatória.

A China, onde o surto da doença começou, lançou vários aplicativos que usam geolocalização através das redes de telefonia celular, dados compilados a partir de trens e aviões, ou postos de controle na estrada.

Seu uso é sistemático e obrigatório. E as autoridades atribuem a eles um papel fundamental para permitir a suspensão do confinamento e impedir a circulação do vírus.

A Coreia do Sul emitiu alertas em massa por telefone celular, anunciando os locais visitados por pessoas infectadas, e ordenou a instalação de um aplicativo de rastreamento no telefone de toda pessoa colocada em isolamento.

Na Tailândia, um aplicativo faz as pessoas escanearem um código de barras com seus telefones ao entrarem, ou saírem, de uma loja, ou restaurante. As autoridades devem alertar todas as pessoas que visitaram o local, se alguém que tenha passado por lá apresentar resultado positivo e enviá-los para um teste gratuito de coronavírus.

Os tailandeses também são convidados a usar o aplicativo para denunciar aqueles que não cumprem as regras sanitárias, como o não uso da máscara protetora em público.

"A pandemia ofereceu uma justificativa conveniente para os governos asiáticos que buscam melhorar, ou manter, suas capacidades autoritárias por um longo período", disse à AFP Paul Chambers, cientista político da Universidade Naresuan, na Tailândia.

"Esse poder autocrático pode ter vindo para ficar, porque esses governos podem argumentar que precisam ter poderes mais concentrados em caso de emergências futuras", estima.

No Catar, um controverso aplicativo de rastreamento de pessoas infectadas, cujo uso é obrigatório sob pena de prisão, atraiu críticas unânimes.

O aplicativo "Ehteraz" solicita aos usuários acesso à geolocalização, fotos e vídeos, bem como autorização para emitir chamadas.

- Desconfiança no governo -O debate também ocorre no Ocidente, onde leis mais rigorosas de proteção de dados geralmente são aplicadas.

Nos Estados Unidos, por exemplo, vários estados estão lançando seus próprios aplicativos, de caráter voluntário, para localizar pessoas que estiveram perto de um indivíduo com COVID-19.

Para ser eficaz, o rastreamento digital precisa da aceitação de pelo menos 40% a 60% da população, segundo alguns pesquisadores.

De acordo com uma pesquisa realizada pela empresa PSB, dois terços dos americanos desconfiam do governo quanto ao uso de dados pessoais ao lidar com a COVID-19.

Na França, terra da Declaração dos Direitos Humanos, o Parlamento debaterá nesta quarta-feira o lançamento de um aplicativo que alertará as pessoas que estiveram em contato com alguém infectado pelo novo coronavírus.

Embora o uso do aplicativo seja voluntário, os defensores das liberdades expressaram medo de que o aplicativo marque o primeiro passo em direção a uma sociedade sob vigilância constante.

Na Argentina, o aplicativo CuidAr, de autodiagnóstico do coronavírus e com geolocalização opcional, até então voluntário, tornou-se obrigatório na capital para renovar todas as permissões de circulação durante a quarentena.

Nas redes, membros de grupos da oposição, como a comunidade "Recontra-antiK" (anti-Kirchner), manifestaram sua oposição ao aplicativo.

"Eles querem controlar você e saber onde você está", resumiu o seguidor Gabriel Geneux no Facebook.

A desconfiança é alimentada por vários abusos e exemplos, como os da Agência de Segurança Nacional americana (NSA, na sigla em inglês), denunciada por Edward Snowden, até os vazamentos de dados do Facebook para a empresa britânica Cambridge Analytica, estima a Brookings Institution.

Embora este think tank americano considere que a saúde pública não deve "pagar o preço pelos erros passados de governos e empresas privadas", ressalta, ao mesmo tempo, a necessidade de "esclarecer o que essas ferramentas fazem e, acima de tudo, o que elas não fazem".

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