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Pandemia evidencia falta crônica de água em terras navajos

01/06/2020 16h36

Thoreau, Estados Unidos, 1 Jun 2020 (AFP) - Amanda Larson sobe seus três filhos a bordo de sua caminhonete para percorrer vários quilômetros de sua casa para encher galões de água, um recurso cuja falta na reserva indígena navajo ficou evidente devido à pandemia de COVID-19.

A mesma tarefa extenuante deve ser repetida a cada dois ou três dias. Toda a família deve cooperar para carregar na parte traseira do carro mais de 200 litros de água, usados para beber, lavar as roupas ou se limpar.

"É vergonhoso, degradante e comovente para meus filhos, que não podem simplesmente tomar um banho como todo mundo", confessa Larson à AFP, de volta à casa recém construída da família no povoado de Thoreau, Novo México.

"É assim que nos preparamos para a escola, ou para trabalhar com meu marido, nesses dois baldes" colocados no fundo da banheira, suspira esta mãe de 35 anos, professora de jardim de infância.

Na ausência de água corrente, 30 a 40% dos 178.000 habitantes da Nação Navajo não podem cumprir com a primeira recomendação de saúde diante do novo coronavírus: lavar as mãos regularmente.

Sem dúvida, essa é uma das razões pelas quais esse vasto território semiautônomo, a medio camino entre Arizona, Utah e Novo México, já soma quase 160 mortes (de 5.000 casos registrados), uma das taxas de mortalidade mais altas por habitantes do país.

- "A água é vida" -Escritas por todos os lados ao longo da reserva, de extensão semelhante à Escócia, quatro palavras servem como um grito de guerra para os navajos: "A água é vida".

O recurso está se tornando cada vez mais escasso na área: segundo um relatório da ONG DigDeep, a água superficial diminuiu 98% durante o século XX devido ao aumento das temperaturas e à redução das chuvas.

George McGraw, que fundou a organização em 2012 para ajudar as comunidades na África Subsaariana antes de mirar os Estados Unidos, também aponta para a negligência crônica do governo federal.

"Grandes áreas deste país, predominantemente negras, mestiças, indígenas e rurais, ficaram de fora dos grandes investimentos federais em infraestrutura", disse.

E as comunidades indígenas são as mais afetadas entre os 2 milhões de americanos que até hoje vivem sem conexão com as redes de água e saneamento.

Os navajos assinaram um tratado em 1868 com o Estado federal que lhes prometia, em troca de sua redenção e uma grande parte de suas terras, garantir o acesso a necessidades básicas como educação e saúde.

Mas seu direito à água nunca foi quantificado em nenhum texto, e os povos indígenas, que preferem ser chamados "Diné", viram de longe centenas de barragens serem construídas, muitas vezes às suas custas, nos estados áridos do sudoeste.

- Neve e bebidas açucaradas -Além da dificuldade para lavar as mãos, a escassez de água apresenta uma série de problemas.

Seu "enorme impacto sobre o estado geral de saúde da população" é "intensificado" pela pandemia atual, afirma a doutora Loretta Christensen, chefe do serviço de saúde local reservado para os indígenas.

Sem água potável, os moradores da reserva recorrem frequentemente a bebidas açucaradas de baixo custo que ajudam a aumentar entre eles a taxa de diabetes tipo 2, uma condição agravante para as pessoas infectadas com o vírus.

A falta de ingestão de água também empurra as famílias a viver umas sobre as outras debaixo do mesmo teto, para compartilhar os poucos chuveiros que ainda funcionam.

Nikishia Anthony, de 25 anos, mora com o noivo e a família em White Clay, um local acessível apenas em 4x4 por estradas poeirentas, no coração da reserva, a uma altitude de 2.300 metros.

Ela acaba de receber, neste dia quente de primavera, uma entrega de água do Centro Johns Hopkins para a Saúde dos Índios Americanos, que também distribui dispositivos de lavagem de mãos para as residências da região, originalmente projetados para a África.

Nikishia usará essa água para lavar garrafas e fazer leite em pó diluído para seu bebê Xavier, nascido há apenas uma semana.

Durante o inverno, geralmente bruto nesta altitude, no meio da floresta, a família derrete a neve para lavar as roupas e os pratos.

No resto do ano, dependem da água bombeada de um poço, a um quilômetro e meio dali. Mas o caminho leva tempo e a fila é ainda maior do que o normal desde o começo da epidemia.

- Poços radioativos -Alguns dos poços espalhados pelo território navajo estão contaminados por micróbios, inclusive radioativos, resultado de meio milhão de minas de urânio abandonadas.

Apesar de um relatório do DigDeep enfatizar que existe uma taxa alta de câncer de estômago incomum nas antigas regiões de mineração, sua água ainda é usada para os animais destinados a serem alimentos.

Morar perto de um cano também não é garantia de ter água corrente em casa. Este é o caso de Larson, que diz estar em uma lista de espera há três anos para ser conectada ao cano que passa a 200 metros de sua casa.

DigDeep instalou um grande tanque debaixo de sua casa pré-fabricada, o qual enche todo mês para abastecer a cozinha com água. "Uma grande mudança" para esta professora, que pode cozinhar mais facilmente sem ter que racionar a água para "lavar a louça normalmente".

Apesar do tanque e das viagens regulares na caminhonete até o ponto de abastecimento de água mais próximo, a família consome apenas cerca de 12.000 litros de água por mês, três vezes menos que a média de uma casa americana. E muitas famílias navajo usam ainda menos.

Organizações especializadas tentam aliviar a escassez buscando uma forma de limpar as águas subterrâneas a um custo menor, para o qual a natureza do terreno não é muito favorável.

O presidente da Nação Navajo, Jonathan Nez, se comprometeu a dedicar à crise da água parte dos US$ 600 milhões alocados pelo governo para enfrentar a pandemia.

No entanto, não tem certeza de que pode destinar legalmente a doação de emergência para projetos estruturais.

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