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Indígenas exigem respeito à sua cultura em políticas anticoronavírus no Brasil

09/07/2020 18h03

Amajari, Brasil, 9 Jul 2020 (AFP) - A COVID-19 coloca os indígenas da Amazônia brasileira diante da encruzilhada entre permanecerem na aldeia, com poucos recursos médicos, ou irem para a cidade, arriscando-se a serem infectados e ao desarraigamento cultural de não poderem celebrar um necessário ritual fúnebre.

Lucita Sanoma viveu esta violência na pele em 25 de maio, quando seu bebê de dois meses faleceu e foi enterrado com suspeita de coronavírus em Boa Vista, a mais de 300 km de seu lar, sem que ela estivesse ciente.

O enterro imediato, adotado no Brasil como medida sanitária em casos confirmados ou sob suspeita de Covid-19, contraria a cultura yanomami, cujo ritual fúnebre é comunitário e transcorre em várias etapas, durante meses e anos. O corpo é deixado por duas semanas na floresta. Depois, os ossos são cremados e as cinzas, guardadas em uma urna, que, tempos depois, será enterrada.

As autoridades "têm que entender e respeitar a questão cultural", afirmou o líder indígena Mauricio Yekuana, em alusão a Lucita e outras três mães confrontadas com o mesmo drama.

"Eu quero levar o corpo do meu filho de volta pra minha aldeia (...), Precisamos chorar juntos", disse Lucita à AFP através de um intérprete.

Pequena, com os cabelos pretos caídos nos ombros, os olhos fixos no chão, a jovem sanoma (subgrupo yanomami) enxuga as lágrimas enquanto descreve, em seu idioma, seu limbo emocional.

"Eu vim acompanhando meu filho direto para o hospital (...) A última informação que recebi foi que meu filho veio a óbito. Desde então, nunca mais o vi", conta com voz suave, ritmada, filtrada por uma máscara que deixava descobertos apenas seus olhos, quase fechados.

Não poder realizar o luto com a comunidade "é uma falta de respeito, com certeza afeta bastante o psicológico da mãe", explica Júnior Yanomami, presidente do Conselho de Saúde Indígena Yanomami.

Lucita voltou à sua aldeia na região de Auaris, noroeste do Brasil. O corpo do seu filho continua em um túmulo sem lápide de um cemitério de Boa Vista até que a justiça decida se poderá voltar para casa para que seus familiares possam fazer o ritual fúnebre na comunidade, necessário para superar o luto.

- Equipamentos próprios -Para Mauricio Yekuana, estas situações resultam de políticas sanitárias que desconsideram a perspectiva indígena. "Eles (o governo) querem impor e obrigar os indígenas a ouvir o que eles querem fazer", disse à AFP.

Yekuana explicou que as famílias decidirão onde receber tratamento à medida que os casos se apresentarem, mas como alternativa, a comunidade lançou uma campanha para comprar seus próprios respiradores e equipamentos e evitar ir à cidade.

"Este é um desafio que amedronta os moradores da região", diz. Enquanto isso, as aldeias enfrentam o coronavírus com medidas como o distanciamento social e equipamentos de proteção.

Um desafio ainda maior com a presidência de Jair Bolsonaro, que vetou trechos de uma lei que obrigariam o governo a facilitar condições sanitárias e de auxílio emergencial a indígenas, alegando que não especificava os recursos orçamentários com os quais seriam concedidos.

Segundo o sistema de saúde indígena, que só atende os indígenas aldeados, há mais de 8.000 casos e 187 falecidos por COVID-19. Quatro óbitos e 186 casos são de yanomamis, a maioria infectados na cidade. Outros três mortos, como o filho de Lucita, estão sob suspeita.

Embora não haja casos confirmados em Auaris, onde vivem uns 4.000 yanomami e yekuana, a preocupação é visível. Muitos habitantes usam máscaras e luvas e a palavra "coronavírus" entrou no vocabulário.

"Temos medo", diz Paulo, um cacique que usa máscara, veste camisa e short e usa uma flecha como bengala. Ele conta que muitos adentraram a floresta fugindo do vírus.

As Forças Armadas levaram a Auaris equipamentos de proteção, remédios e assistência. "Que não ousem ameaçar a nossa Amazônia", diz uma inscrição na entrada do 5º Pelotão Especial de Fronteiras do Exército, onde foram feitos testes rápidos de COVID-19.

Ali, o céu queima a pele e a luz cega os olhos. O céu é brilhante, mas em segundos, é coberto por nuvens pesadas que provocam uma chuva ensurdecedora. O temporal não detém as crianças que jogam futebol no descampado do pelotão e pulam no pequeno parque junto a uma das portarias.

Ao redor, ergue-se a serra que marca a fronteira natural com a Venezuela, para onde se estende a terra yanomami que do lado brasileiro abriga quase 27.000 indígenas em 96.000 km2.

Apontando para o verde infinito, o secretário especial de saúde indígena Robson da Silva afirma que o principal motivo de contágio nas aldeias é o fluxo constante dos próprios indígenas.

Mas para os indígenas, que medem as distâncias em tempos de caminhada e de navegação, o contato externo, principalmente por via aérea, é o responsável por introduzir um novo vírus nesta região que tem sido, por décadas, cenário de violência e invasão de garimpeiros.

"Se não tivesse isso, a gente estaria tranquilo", diz Mauricio Yekuana, protegido por uma máscara que contrasta com os traços negros de jenipapo ao redor dos seus olhos.

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