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O gaúcho sobrevive no século 21 como símbolo rebelde e esquivo

22/11/2022 15h45

Eterno e, ao mesmo tempo, esquivo: 150 anos depois de seu "nascimento" na literatura, o gaúcho continua no coração da "argentinidade", no meio do caminho entre mito e testemunha de como o país foi construído, percebido e transformado.

Um turbilhão de poeira envolve a cavalgada com centenas de animais. No centro, os peões se esforçam para manter unida a tropilha de sete ou oito exemplares sem que se perca um, nem se interrompa o caminho dos outros, em uma demonstração de virtuosismo equestre.

É o "entrevero de tropilhas", um evento-chave na Festa da Tradição que se celebra a cada ano em San Antonio de Areco.

Essa localidade, situada a apenas 120 quilômetros da moderna e cosmopolita Buenos Aires, parece outro país: território de homens a cavalo, dos pampas, da tradição gauchesca. Boina, alpargata, violão e facão na cintura.

A cada 6 de dezembro, a Argentina comemora o Dia Nacional do Gaúcho.

Sua figura também está presente no Uruguai e com variações em Paraguai, no sul do Brasil, Bolívia e Chile. Mas, neste ano de 2022, no qual completam 150 anos da publicação, em 1872, de "Martín Fierro", o poema épico do argentino José Hernández, os atos comemorativos se multiplicaram com exposições, conferências e questionamentos sobre identidade.

"Aqui me ponho a cantar

ao compasso da viola,

que o ser a quem desconsola

uma dor extraordinária,

como a ave solitária,

cantando é que se consola".

(...)

"Minha glória é viver livre

como o pássaro no ar;

no chão não vou me aninhar,

onde há tanto que sofrer,

e ninguém me há de seguir

quando eu voltar a voar".

- Não tão branco -

O poema épico "Martín Fierro" combina sextilhas com estrofes de quatro versos para cantar a epopeia melancólica de um gaúcho da primeira metade do século 19, que goza de liberdade e de uma vida nômade, ao mesmo tempo em que sofre injustiça e discriminação por sua origem mestiça.

Rebelde, arredio a autoridades, ladrão de gado e às vezes briguento, Martín Fierro é também corajoso, solidário e leal.

"O gaúcho se tornou um ídolo popular, muito antes de intelectuais e do Estado o proporem como um símbolo nacional", diz à AFP o historiador Ezequiel Adamovsky, pesquisador no Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas.

O poema, traduzido hoje para 50 idiomas, foi publicado em folhetins baratos e foi, à sua época, "um sucesso de vendas". Em 1913, consagra-se como poema nacional.

Os setores mais nacionalistas "tentaram apresentar o gaúcho como um herdeiro direto dos conquistadores espanhóis, que não tinha se misturado com nenhum habitante local, o que é uma fantasia insustentável. Tentaram projetar no corpo do gaúcho a imagem de branco e europeu", afirma Adamovsky, autor de "El gaucho indómito".

Por sua vez, os anarquistas, pela rejeição da autoridade; os comunistas, em nome da luta de classes, e os peronistas, pelo apoio dos trabalhadores rurais, reivindicaram ao longo da história a alma do gaúcho, uma disputa que, de alguma maneira, persiste até hoje, descreveu o historiador.

- A gaúcha e a gauchada -

 

Com um toque de rebeldia feminista, Gabriela Cabezón Cámara publicou, em 2017, o romance "Las aventuras de la China Iron", no qual recria o personagem de Martín Fierro a partir do olhar de sua companheira, que, abandonada pelo gaúcho, deixa a estância e parte com uma amiga para descobrir o país e a liberdade.

Em San Antonio de Areco, também há releituras da imagem do gaúcho, mas, sobretudo, há preservação, com magníficos cavalos montados com destreza tanto por crianças como idosos.

"O homem a cavalo continua trabalhando e é impossível substitui-lo, porque, apesar de muitas vezes se deslocar em um veículo, existem lugares aos quais é impossível chegar de outra maneira", afirma à AFP Victoria Sforzini, diretora de Cultura e Patrimônio do município de San Antonio de Areco.

"Também há muitos usos e costumes que passam de geração em geração", como a forma de laçar um animal ou a prática de tocar o gado, assinala Sforzini.

Em 2022, é difícil determinar quem é o gaúcho: os peões que exibem sua destreza nas estâncias para turistas ou os trabalhadores rurais de salários modestos. Ou talvez o pedreiro Julio Casaretto, filho, neto e sobrinho de gaúchos que, nos fins de semana, ensina sua pequena filha a montar a cavalo "porque está em nosso sangue". 

"O gaúcho sempre foi, desde muito cedo, um personagem literário", assinala Adamovsky, para quem "continua existindo essa visão de uma figura cavalheiresca, valente, fiel aos amigos. Inclusive, usa-se a expressão 'fazer uma gauchada' para dizer 'fazer um favor'", conclui.

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