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Retórica antiga de que há muita terra para pouco índio é perigosa, diz indigenista

Leonencio Nossa e André Borges

Brasília

18/12/2018 07h49

Maior indigenista da atualidade, Sydney Possuelo, 78 anos, afirma que o índio vive o seu pior momento no País. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, ele critica o risco de o futuro governo mudar o foco das políticas determinadas pela Funai - o órgão deixará a estrutura do Ministério da Justiça para se integrar à pasta da Mulher. A futura titular do ministério, Damares Alves, já falou, por exemplo, em rever a política para os chamados povos isolados. O sertanista avalia que só cabe ao índio fazer o primeiro contato.

Possuelo foi demitido da Funai em 2006 durante o governo Lula, após criticar a visão de que índio tinha terra demais - um discurso que agora volta à tona. "Índio não tem um palmo de terra. A terra indígena pertence à União para usufruto do índio." A seguir, os principais trechos da entrevista:

Como o sr. avalia a vitória de Jair Bolsonaro?

Como ele ainda não assumiu, tenho esperança de que, a partir de um esclarecimento, o presidente possa mudar sua posição sobre os índios. Há um risco de extinção da Funai, que já não tem força.

Como fica a situação dos militares neste cenário?

A questão indígena nasceu no meio militar, com o Marechal Rondon, nosso herói, que criou em 1910 o Serviço de Proteção ao Índio, o SIP. Se formos analisar especificamente o período do regime militar, depois de 1964, tivemos uma das melhores épocas da Funai na questão de estrutura e recursos. Havia poder de demarcar as terras, de vigiá-las, de não permitir invasões. Manter essa tradição seria um fato fantástico desse novo governo.

O sr. acha que essa possibilidade existe?

Temos de admitir que não é isso que está ocorrendo, infelizmente, mas tenho esperanças de que essa postura mude. A retórica antiga de que há muita terra para pouco índio é perigosa. Primeiro, é preciso deixar claro que índio não tem um só palmo de terra no Brasil. Ele não é dono de nada. O dono é a União, que lhe garante o usufruto exclusivo daquela área.

Foi por criticar esse discurso que o sr. foi demitido em 2006 pelo governo Lula.

Um só homem do agronegócio pode ter centenas de milhares de hectares, mas uma comunidade inteira de índios não pode ter. É preciso lembrar que o Brasil foi configurado pelo braço e pela presença do índio.

A futura ministra de Mulher, Damares Alves, disse que é preciso integrar os índios e acabar com a política de povos isolados. Como o sr. vê isso?

Eu criei essa política em 1987. Ela nasce exatamente do acompanhamento da história. Antes, quando se fazia contato, morriam muitos índios. Mas havia o dilema: se não fizer o contato, a comunidade indígena também morre com a abertura de estradas e fazendas. Então, trabalhamos com vários presidentes para definir uma política específica para esses povos isolados, sem contato com a sociedade nacional. Quando você contacta esse povo, ele começa a mudar sua atitude. Vai mudar para quê? Rondon achava que o índio tinha de vir para nossa sociedade para usufruir das nossas benesses, mas não é isso o que ocorre. O índio é sempre desprezado, não participa diretamente da nossa sociedade.

O que o sr. diria ao presidente eleito sobre esse cenário?

Quando foi candidato, ele disse que iria abrir as terras indígenas para o agronegócio. Isso é acabar com os índios, é um erro. Temos uma quantidade imensa de terras onde já cabe o agronegócio, que é importante para o País, mas as florestas nacionais e as terras indígenas também são. Tudo cabe neste País imenso.

O sr. acredita na possibilidade de mudança dessa postura?

Acredito que tudo isso faz parte apenas de um desconhecimento. E penso que, em algum momento, o presidente vai raciocinar melhor e, mais tranquilo, vai consultar a si mesmo. Não precisa consultar luminares. Basta ele analisar a nossa história, a história das Forças Armadas, para perceber como esses homens foram importantes para o País. Seria um erro gravíssimo fazer da floresta um campo de soja. Há outras terras para a agricultura.

Como o sr. vê a atuação das ONGs na área indígena?

O terceiro setor nasce como um auxiliar do governo quando o governo não dá conta de tudo. Nesse sentido, é interessante haver organizações para crianças, adultos, negros, índios, mas desde que essas entidades venham para cá e se juntem ao governo na busca do melhor caminho. O que não pode acontecer é cada um ter a sua política. O governo que estabeleça as diretrizes para as ONGs. A política deve ser estabelecida pelo governo.

O governo, então, precisa rever a política em relação às ONGs?

Creio que sim. Não é cortar recursos, é fiscalizar com braço de ferro. Essas organizações pegam dinheiro e ninguém vai atrás.

Como vê a presença de missionários evangélicos nas comunidades isoladas?

Quando fui presidente da Funai (1991 a 1993), botei para fora, expulsei missionários americanos que estavam na terra dos zoé, no Pará. A meta desses missionários é aprender a língua indígena para fazer uma Bíblia na língua deles e, a partir daí, o índio escolhe se vai para o céu ou para o inferno. Quando você vai para os EUA, é grande a chance de você não passar pela alfândega. Por isso, eu os expulsei da área e a Funai assumiu. É uma questão de soberania.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.