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Polarização invade entidades de classe

Pedro Venceslau e Paula Reverbel

São Paulo

16/05/2021 16h00

A antecipação do debate sobre a sucessão presidencial tem contaminado disputas em segmentos organizados da sociedade civil, como entidades de advogados, caminhoneiros, universitários, ruralistas e médicos. Como resultado, a polarização entre bolsonaristas e antibolsonaristas tomou conta dos debates internos nestas categorias, que em alguns casos espelham em suas eleições o mesmo clima de "Fla-Flu" político que tem dominado o cenário nacional.

O caso da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), instituição centenária que esteve na linha de frente dos movimentos pelo impeachment dos ex-presidentes Fernando Collor e Dilma Rousseff, é o que mais chama a atenção. Enquanto um documento assinado por juristas pedindo a saída do presidente Jair Bolsonaro tramita internamente, as bases da entidade já estão em campanha para as eleições de suas seccionais estaduais, que serão em novembro.

O resultado desse processo vai definir o colégio eleitoral que escolherá o próximo presidente da Ordem, em janeiro de 2022. O atual dirigente, Felipe Santa Cruz, não vai tentar a reeleição, pois planeja disputar o governo do Rio de Janeiro, em uma aliança que pode contar com o apoio do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Internamente, seu grupo se dividiu e setores bolsonaristas se articulam nos Estados para frear uma possível ofensiva da esquerda na entidade de advogados.

Na iminência da filiação de Santa Cruz a um partido político, seu vice na Ordem, Luiz Viana, rompeu a aliança e lançou manifesto contra a presença de política partidária na OAB. O atual presidente da entidade ganhou projeção nacional ao fazer críticas contundentes a Bolsonaro e à atual gestão federal.

"O que nós queremos é que a Ordem continue firme, como sempre foi tradicionalmente, nas críticas pertinentes aos aspectos constitucionais e legais, em qualquer que seja o governo, mas distante de partidos", afirmou Viana ao Estadão. Ele diz não se opor aos trabalhos realizados pela comissão. "Eu respeito o Felipe Santa Cruz e as suas decisões pessoais. Acho apenas que, para a nossa entidade, é melhor ter equidistância da política partidária", acrescentou. Segundo pessoas que acompanham o dia a dia da entidade, o fato de o secretário-geral da Ordem, Beto Simonetti, ter se viabilizado como sucessor de Felipe Santa Cruz, no lugar de Viana, contribuiu para o rompimento.

Procurado, Santa Cruz se disse um "democrata radical" e afirmou que a entidade cumpriu seu papel "constitucional". "Foi nossa a ação que garantiu a competência concorrente de Estados e municípios para o combate a pandemia. Já imaginou o que seria se o governo federal, além de boicotar as medidas sanitárias, pudesse impedir governos estaduais e prefeituras de adotar medidas? Ou de tomar iniciativa para que tivéssemos vacinas? Isso é politização? Não, isso é a OAB cumprir seu papel constitucional."

Nesse clima de divisão interna, setores bolsonaristas se mobilizam nos Estados e correm por fora para influenciar a troca de comando na principal entidade de advogados. O presidente em exercício da Ordem dos Advogados Conservadores do Brasil, João Alberto Cunha Filho, afirmou ao Estadão ser contra a atual direção da Ordem.

O grupo - que se formou para ingressar com processos contra críticos do presidente da República - acredita que as seccionais da OAB devem fiscalizar como os Estados e municípios aplicam verbas repassadas pelo governo federal, num discurso alinhado a Bolsonaro.

"Não houve nenhuma intervenção da OAB no sentido de solicitar a prestação de contas (de Estados e municípios)", afirmou.

Bolsões

A mobilização de bolsonaristas e anti-bolsonaristas não é restrita à categoria dos advogados. Com o retorno de Lula ao palco eleitoral, após ter suas condenações na Lava Jato anuladas pelo Supremo Tribunal Federal, grupos conservadores tentam criar bolsões de militância, enquanto petistas usam a narrativa da polarização para aglutinar antigos adversários no campo da esquerda e nos movimentos sociais. "Estamos criando núcleos de defesa da pauta conservadora também no movimento universitário, na classe artística, militares, agro e evangélicos", disse o empresário Luís Felipe Belmonte, vicepresidente do Aliança pelo Brasil, partido que Bolsonaro tenta, sem sucesso, tirar do papel.

Estudioso dos movimentos sociais, o cientista político Vitor Marchetti, da Universidade Federal do Grande ABC, avalia que a direita está se organizando de forma mais atuante até em setores historicamente dominados pela esquerda. "O campo da direita está se articulando mais em alguns setores, inclusive no movimento estudantil", afirmou.

Ex-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) e da União da Juventude Socialista (UJS), Carina Vitral avalia que os jovens são os que mais combatem o bolsonarismo, mas admite que tem encontrado mais conservadores nas salas de aula. "Outro dia trombei até com um monarquista", contou. O atual presidente da UNE, Iago Montalvão, pondera que não existe ainda um coletivo nacional de estudantes conservadores organizados.

Nascido na esteira das manifestações pelo impeachment da então presidente Dilma Rousseff, o Movimento Brasil Livre (MBL) consolidou-se como uma força política de direita mesmo após romper com Bolsonaro. O grupo, que hoje conta com parlamentares jovens em vários partidos, chegou a ensaiar uma ação direta no movimento estudantil, ambiente historicamente controlado por múltiplas correntes de esquerda.

Mas ao perceber que a disputa por entidades como a UNE, União Brasileira de Estudantes Secundaristas (Ubes) e União Estadual dos Estudantes (UEEs) se dava em um modelo controlado pelos braços de juventude de partidos como PCdoB, PSOL e PT, o grupo mudou de estratégia e criou a Academia MBL. São, segundo a organização, em torno de 2.500 alunos matriculados.

Já o PSL, por sua vez, montou uma núcleo de juventude para disputar centros acadêmicos e tentar ampliar a atuação no Congresso da UNE.

Com a pandemia, divergências chegam à categoria médica

Na categoria dos médicos, o tratamento precoce - que prevê o uso de medicamentos sem eficácia comprovada para a covid-19 - opõe a Associação Médica Brasileira (AMB) ao Conselho Federal de Medicina (CFM). A primeira recomenda banir o "kit covid"; a segunda defende a autonomia do médico para receitar hidroxicloroquina e azitromicina diante da falta de alternativas terapêuticas contra o novo coronavírus. O CFM autorizou as prescrições em parecer emitido em abril do ano passado, quando ainda não havia evidências sobre a ineficácia das drogas. Atualmente, porém, estudos demonstram que elas não reduzem o risco de agravamento da doença e podem ter efeitos colaterais graves.

Já o posicionamento da AMB foi adotado a partir de janeiro, quando o médico ginecologista César Eduardo Fernandes assumiu a instituição. Contrário ao tratamento precoce - defendido pelo presidente Jair Bolsonaro -, Fernandes foi eleito com mais de 60% dos votos.

"Acreditamos que a autonomia do médico deve ter limites, de acordo com a ciência", afirmou o ginecologista, acrescentando que não pretende transformar a divergência em uma crise institucional. "Vivemos um momento em que mesmo às opiniões institucionais são emprestadas conotações políticopartidárias. Não é nosso caso. É simplesmente o direito de pensar diferente", disse Fernandes. "Eu adoraria dizer que temos um tratamento precoce que é eficaz. Não somos contra o tratamento precoce. Nós não temos um tratamento precoce, lamentavelmente."

Divisão

Uma das bases bolsonaristas mais fortes, o agronegócio também está dividido. Entidades de produtores organizaram ontem atos de apoio a Bolsonaro, contra o Supremo Tribunal Federal e pelo fim das medidas de isolamento adotadas por governadores e prefeitos. As manifestações tiveram entre os articuladores a Associação Brasileira dos Produtores de Soja, a Associação Nacional de Defesa dos Agricultores, Pecuaristas e Produtores da Terra e a Associação dos Cafeicultores do Brasil. A Associação Brasileira do Agronegócio, no entanto, se opôs ao movimento.

Outro setor que acolheu as bandeiras de Bolsonaro, mas que agora vê parte da categoria distante do presidente é o dos caminhoneiros. O presidente da Federação dos Caminhoneiros de São Paulo, Claudinei Pelegrini, mantém discurso alinhado ao Planalto e é crítico ao governador João Doria (PSDB).

Esse alinhamento, porém, não é mais consenso. No início do ano, a Associação Brasileira de Caminhoneiros anunciou uma greve no País, por causa da alta no preço do combustível. Na época, a Associação Brasileira dos Condutores de Veículos Automotores questionou: "Onde está a palavra do presidente da República?"

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.