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'Vingança anunciada' em Belém expõe uso sinistro do Whatsapp

Autoridades investigam possibilidade de que assassinatos em Belém tenham sido ato de vingança após morte de policial - Ag Pará
Autoridades investigam possibilidade de que assassinatos em Belém tenham sido ato de vingança após morte de policial Imagem: Ag Pará

Camilla Costa

Em São Paulo

07/11/2014 13h25

"A noite de terça-feira pra mim foi terrível", disse à BBC Brasil um morador do bairro do Guamá, em Belém (Pará), que pediu para não ser identificado.

Naquela noite, dez pessoas foram mortas em bairros da periferia após a morte do cabo da Polícia Militar Antonio Marcos da Silva Figueiredo, 44 anos. A polícia investiga se os assassinatos estão conectados.

"Eu estava no ônibus quando minha irmã me ligou avisando que era para eu ter cuidado ao entrar pro nosso bairro, pois tinham matado um policial. Tinham mandado um áudio [com a voz de um suposto policial militar] pelo Whatsapp, [dizendo] que não era para ficar ninguém nas ruas, pois eles estavam atirando em quem estivesse nas esquinas ou tivesse cara de suspeito."

Entre os mortos há um adolescente de 16 anos que levava a namorada para casa, um cobrador de van de 20 anos e um deficiente físico de 27 anos, que trabalhava em um supermercado. De acordo com a Polícia Civil, pelo menos sete mortes têm características semelhantes.

Em um bairro mais afastado da região onde aconteceram os assassinatos, o estudante João Batista Xavier, de 19 anos, também recebeu de amigos, pelo aplicativo Whatsapp, a mensagem de áudio alertando que moradores dos bairros do Guamá, de Canudos e de Terra Firme não saíssem de suas casas.

Pessoas são assassinadas em Belém após morte de PM

"Eu fiquei sabendo da morte do policial no meu grupo da faculdade no Whatsapp. Depois, recebi o áudio de três pessoas diferentes. Fiquei com bastante medo. Amigos que moram nesses bairros já receberam mensagens como essas antes, de pessoas ligadas ao crime. Mas eu moro do outro lado da cidade, é a primeira vez que vejo algo assim."

As aulas da Universidade Federal do Pará, que fica entre os bairros afetados, na mesma rua onde morreu o cabo da PM, foram canceladas na quarta-feira e, na quinta-feira, ainda havia menos alunos do que o normal no campus, segundo Xavier.

O caso expõe o crescente uso do aplicativo de mensagens instantâneas mais popular do Brasil por grupos em ambos os lados da lei. Atualmente, o Whatsapp já é utilizado por polícias em pelo menos 15 Estados, além do Distrito Federal, para receber denúncias de cidadãos e compartilhar informações dentro da corporação.

Investigações em todo o país, por sua vez, têm revelado o uso do aplicativo por facções criminosas. Segundo reportagem do jornal "O Globo", traficantes no Estado do Rio de Janeiro também estão usando mensagens de áudio para impor toques de recolher a moradores durante brigas entre facções ou confrontos com a polícia.

'Questão de segurança'

Desde a noite de terça-feira até o dia seguinte, hashtags como #ChacinaemBelém, #Belém e #Guamá estavam entre os assuntos mais populares do Twitter brasileiro. Após a morte do cabo Figueiredo, mensagens e boatos se espalharam rapidamente via Whatsapp e redes sociais por toda a cidade, falando sobre uma possível chacina nos bairros periféricos.

"A morte do policial aconteceu por volta das 20h e em seguida começaram a se espalhar as informações no Whatsapp, os áudios. As primeiras mensagens que eu recebi foram por volta das 22h30. Os portais de notícias na internet só confirmaram a morte do PM por volta da meia-noite", disse Xavier.

A mensagem de áudio do suposto policial, à qual a BBC Brasil teve acesso, dizia: "Senhores, sério, façam o que for preciso, mas não vão para o Guamá, não vão para o Canudos, nem para a Terra Firme hoje à noite. É uma questão de segurança dos senhores, tá? Mataram um policial nosso e vai ter uma limpeza na área. Ninguém segura ninguém, nem coronel das galáxias. Os meninos estão soltos. E, por favor, fiquem em casa, não vão para a rua, não fiquem em esquinas".

Pelo Twitter, moradores também reproduziam o que diziam ser mensagens postadas por policiais militares no Twitter e no Facebook. Em uma mensagem, um sargento da PM convoca outros a "dar uma resposta" ao crime naquela noite. O policial, no entanto, nega ter incitado ações ilegais.

De acordo com o tenente-coronel Leno Carmo, porta-voz da Polícia Militar do Pará, a corregedoria investiga a autoria das mensagens - algumas das quais já teriam sido deletadas, mas continuaram a ser replicadas nas redes sociais.

"Estamos primeiro analisando o fato, se realmente a autoria dessas mensagens foi de policiais ou de um fake [usuário falso] usando o nome de um policial. E também se o conteúdo dessas mensagens contribuiu de alguma forma para alguma ação policial fora dos limites legais", disse à BBC Brasil.

Informações e boatos

Para o morador do Guamá que deu seu depoimento sobre a noite de terça-feira à BBC Brasil, o aplicativo também foi uma forma de se comunicar com amigos sobre a situação no bairro.

"Ao chegar em casa trancamos tudo e ficamos apreensivos. De repente muitas motos começaram a passar na frente de casa com homens de preto, encapuzados e fortemente armados atirando para o alto e a esmo. Ouvimos muitos tiros. Tenho vários amigos em outras ruas aqui do Guamá, nós ficávamos trocando fotos, vídeos e áudios pelo Whatsapp", afirmou.

Algumas dessas imagens, que mostravam o que seriam alguns dos corpos encontrados separadamente no bairro e a reação de familiares ao encontrá-los, foram publicadas no Twitter. "As que eu publiquei são todas reais, algumas fui eu que tirei. (Descobri que) duas eram fakes (falsas), mas assim que soube eu as apaguei."

A circulação de imagens falsas e de estimativas de mortos que iam de 35 a cerca de 100 pessoas causaram pânico na população de Belém e serão investigadas, segundo o delegado Samuelson Igaki, da Divisão de Repressão e Prevenção a Crimes Tecnológicos da Polícia Civil paraense.

"A polícia vai realizar todas as investigações necessárias para encontrar quem deu causa e quem propagou essas informações inverídicas, que não refletiram a realidade, como 'não saiam de suas casas, a cidade está em pânico, a cidade vive uma guerra civil'", disse à BBC Brasil.

"Algumas fotos de corpos do incêndio da boate Kiss foram compartilhadas como fotos de Belém. Isso é uma falsa comunicação de crime."

Igaki diz ainda que não tem conhecimento do uso anterior do Whatsapp para toques de recolher impostos por criminosos e afirma que "foi a primeira vez" que a cidade viveu pânico generalizado por causa de mensagens espalhadas através do aplicativo. Ele também recebeu muitas delas em seu celular.

O cabo Figueiredo foi morto a tiros por três homens ainda não identificados. Segundo as autoridades, ele respondia a um processo por homicídio na Justiça comum e estava afastado do trabalho por razões de saúde.

"O clima por aqui ainda é de insegurança total, pois ainda não prenderam os verdadeiros assassinos do policial e enquanto isso não acontecer todos estamos com medo tanto da polícia como dos bandidos", disse à BBC Brasil o morador do Guamá.

'Nova fronteira'

O Whatsapp tem cerca de 600 milhões de usuários ativos no mundo, mais de 40 milhões deles no Brasil. Em uma pesquisa com quase 4 mil usuários de smartphones em cinco países, a consultoria britânica OnDevice, especializada no mercado de dispositivos móveis, afirmou que o aplicativo está em 72% dos telefones brasileiros, mais do que qualquer outro do tipo.

Para Carlos Affonso Pereira de Souza, diretor do Instituto Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS), o uso do Whatsapp por criminosos é uma consequência de sua popularidade no país.

"O uso da internet no Brasil migra cada vez mais para o uso de dipositivos móveis, quando, na década passada, o principal instrumento de inclusão foram as lan houses. Se temos uma população que passa boa parte do seu tempo de navegação no celular, é natural que todas as atividade, lícitas ou ilícitas, acabem acontecendo via celular", disse à BBC Brasil.

A facilidade de atingir instantaneamente um grupo grande de pessoas também é atraente tanto para fins positivos quanto negativos, segundo Souza.

"Por mais que o número de pessoas nos grupos seja limitado, o app faz com que a comunicação seja mais instantânea, diferentemente de um email. Por estar no celular, a pessoa obrigatoriamente vê a mensagem em qualquer lugar. Ele não exige uma conduta ativa dos usuários para receber informação. Além disso, há a facilidade de encaminhar as mensagens. Se você quer atingir um número grande de pessoas, aplicativos como esse são a escolha natural no Brasil."

No entanto, Souza acredita que a popularidade também faça do Whatsapp uma "nova fronteira da investigação por condutas ilícitas na internet".

"É uma plataforma que não tem ainda a experiência de decisões judiciais e uma metodologia de investigação da materialidade dos crimes, que já está consolidada nas redes sociais. O Google tem um termo de conduta com o Ministério Público. O Facebook já está acostumado a cooperar com as autoridades para investigar condutas ilícitas. O Whatsapp, embora comprado pelo Facebook, traz novos desafios técnicos."