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'Bebi urina e sangue de morcego para sobreviver no Saara'

Apesar do trauma de 1994, Prosperi voltou a disputar a Maratona des Sables quatro anos mais tarde e diz ter virado um "homem do deserto" - BBC
Apesar do trauma de 1994, Prosperi voltou a disputar a Maratona des Sables quatro anos mais tarde e diz ter virado um "homem do deserto" Imagem: BBC

04/12/2014 12h14

O italiano Mauro Prosperi tinha 39 anos quando participou da Marathon des Sables de 1994 - uma corrida de seis dias, 250 quilômetros, pelo Saara, tida como a mais difícil do mundo. Após uma tempestade de areia, o ex-pentatleta olímpico ficou perdido no deserto por 10 dias. Aqui ele conta sua história.

"O que eu gosto mais sobre correr maratonas 'extremas' é o fato de que você entrar em contato com a natureza - as corridas são realizadas em cenários bonitos, como montanhas, desertos e geleiras. Como atleta profissional, eu não podia aproveitar este ambiente porque estava concentrado em ganhar medalhas.

Descobri sobre a Marathon des Sables por acaso. Já tinha me aposentado do pentatlo (prova olímpica em que competidores participam dos esportes de tiro, hipismo, natação, esgrima e corrida) quando um amigo me disse: 'Há uma maratona incrível no deserto - mas é muito difícil'. Adoro um desafio, então comecei a treinar imediatamente, correndo 40 km por dia, reduzindo a quantidade de água que eu bebia para me acostumar com a desidratação.

Minha mulher, Cinzia, achava tudo uma loucura - a corrida é tão arriscada que você tem que assinar um formulário e informar para onde quer que enviem seu corpo se você morrer. A gente tinha três filhos com menos de oito anos de idade, então ela estava preocupada. Tentei tranquilizá-la. 'O pior que pode acontecer é eu ficar bronzeado', disse.

Quando cheguei ao Marrocos, descobri uma coisa maravilhosa - o deserto. Estava encantado.

Atualmente a Marathon des Sables é uma muito diferente, com até 1.300 participantes.

Tempestade de areia

É como uma cobra gigante (os participantes praticamente competem em fila indiana). Você não poderia conseguiria se perder nem se tentasse.

Mas, em 1994, havia apenas 80 pessoas. Poucos estavam correndo - por isso, na maior parte do tempo eu estava sozinho.

Mas as coisas deram errado no quarto dia, durante a fase mais longa e difícil da corrida.

Quando partimos naquela manhã já havia um pouco de vento. Eu tinha passado por quatro postos de controle quando entrei em uma área de dunas. Eu estava sozinho - os "coelhos" (pessoas encarregadas de ir na frente indicando o ritmo da corrida) já haviam passado.

De repente, começou uma tempestade de areia muito violenta. O vento chegou com uma fúria enorme. Fui engolido por um paredão amarelo de areia. Eu não conseguia enxergar nem respirar. A areia ricocheteava no meu rosto - era como uma tempestade de agulhas. Eu entendi pela primeira vez o quão forte pode ser uma tempestade de areia. Virei de costas para o vento e enrolei um lenço em volta do meu rosto para fazer com que a areia parasse de me machucar.

Eu não estava desorientado, mas tinha que me manter em movimento para não ser enterrado. Um hora eu agachei em um lugar protegido e fiquei esperando a tempestade terminar.

Foram oito horas. Quando o vento parou, tudo estava escuro, então eu dormi nas dunas. Eu estava chateado com a corrida, porque, até então, eu estava em quarto lugar. Pensei: 'Tudo bem, não posso mais ganhar, mas ainda consigo fazer um bom tempo. Amanhã de manhã eu vou acordar muito cedo e tentar chegar ao fim'.

Os competidores têm 36 horas para terminar essa fase da corrida - mais tempo que isso e você é desclassificado - então ainda havia uma chance. O que eu não poderia imaginar era o quanto a tempestade iria mudar tudo ao meu redor.

Acordei muito cedo em uma paisagem completamente diferente.

Eu não estava preocupado porque eu tinha certeza de que, mais cedo ou mais tarde, iria encontrar alguém. 'Quem sabe quantos outros corredores estão na mesma situação?', eu pensava. 'Assim que eu vir alguém podemos nos juntar e terminar juntos'. Este era o meu plano, mas infelizmente não deu certo.

Santuário sangrento

Quando percebi que estava perdido, a primeira coisa que fiz foi urinar em minha garrafa d'água extra, porque quando você ainda está bem hidratado sua urina é a mais clara e mais potável. Lembrei de meu avô me dizendo como, durante a guerra, ele e seus companheiros tinham bebido a própria urina quando a água acabou. Fiz isso por precaução, mas não estava desesperado. Eu tinha certeza que os organizadores iriam me encontrar em breve.

Ao correr o Marathon des Sables você tem que ser autossuficiente, e eu estava bem preparado: tinha uma faca, uma bússola, um saco de dormir e muitos alimentos desidratados em minha mochila. O problema era a água. Tínhamos água fresca nos postos de controle, mas quando a tempestade me atingiu eu só tinha metade de uma garrafa de água sobrando.

Era muito cuidadoso. Eu só andava quando não estava tão quente, no início da manhã e à noite. Durante o dia, quando eu não estava andando, tentava encontrar abrigo e sombra. Estava usando dois chapéus - um boné de beisebol com um gorro de lã vermelha em cima - para manter a temperatura o mais constante possível.

No segundo dia, no pôr do sol, eu ouvi o barulho de um helicóptero vindo em minha direção. Eu supus que estava me procurando, então tirei meu sinalizador e disparei no ar, mas ele não viu. Ele estava voando tão baixo que eu podia ver o capacete do piloto, mas ele não me via - ele passou direto.

O helicóptero, emprestado pela polícia marroquina, estava voltando à base para reabastecer. Desde 1995, por causa da minha experiência, os corredores foram equipados com o tipo de sinalizadores usados no mar - quem corre não gosta, porque eles pesam 500g -, mas naquele momento os sinalizadores que tínhamos eram muito pequenos, não maiores que uma caneta.

Depois de dois dias, me deparei com um marabuto - um santuário muçulmano - onde beduínos param quando estão atravessando o deserto. Estava vazio, mas ao menos eu tinha um teto sobre a cabeça.

Suicídio

O marabuto estava cheio de areia, por causa das tempestades, então o teto estava muito baixo. Fui até o telhado para fincar minha bandeira italiana, na esperança de que alguém que estivesse me procurando pudesse vê-la. Enquanto estava lá, vi alguns morcegos amontoados na torre. Peguei um punhado deles, cortei suas cabeças, tirei suas entranhas com uma faca, e então bebi o seu sangue. Depois comi pelo menos 20 deles, crus.

Eu estava no marabuto por três dias, quando ouvi o som de um motor - um avião. Não sei se ele estava me procurando, mas imediatamente comecei um incêndio com tudo que eu tinha - a minha mochila, tudo - na esperança de que o avião veria a fumaça. Mas neste exato momento uma outra tempestade de areia começou. Durou 12 horas e o avião não me viu.

Fiquei muito deprimido e convencido de que iria morrer depois de uma longa agonia, então queria acelerar isso. Se eu morresse no deserto, ninguém iria me encontrar. Minha mulher não iria receber a pensão - na Itália, se alguém desaparece é preciso esperar 10 anos antes de ser declarado morto. Se eu morresse no marabuto, pelo menos iriam encontrar o meu corpo.

Minha decisão de me matar surgiu mais do raciocínio lógico do que do desespero. Escrevi um bilhete para minha mulher com um pedaço de carvão e depois cortei meus pulsos.

Deitei-me e esperei para morrer, mas meu sangue havia engrossado e não fluía.

Na manhã seguinte, acordei. A morte ainda não me queria.

Interpretei isso como um sinal. Recuperei a confiança e decidi ver tudo como uma nova competição contra mim mesmo.

Ainda tinha um monte de energia sobrando, não estava cansado. Estava acostumado a treinar 12 horas por dia e tinha treinado bem para a Marathon des Sables, então não me sentia muito fraco.

Cabras e resgate

Decidi sair do santuário e andar novamente. Segui o conselho que um tuareg (membro de um dos povos nômades do deserto) tinha dado para todos antes de começarmos a corrida: 'Se você está perdido, siga as nuvens que você vê no horizonte ao amanhecer, que é onde você vai encontrar vida. Durante o dia, elas vão desaparecer, mas defina sua bússola e continue nessa direção'.

Caminhei por dias, matando cobras e lagartos para comê-los crus, como forma de também me hidratar. Imagino que algum tipo de instinto primitivo tenha aflorado naqueles momentos por conta da emergência da situação. Meu lado homem da caverna tinha sido despertado.

Percebi que perdera muito peso - quanto mais andava, mais frouxo meu relógio ficava no meu pulso. Estava tão desidratado que não podia mais urinar.

Queria ver minha família e meus amigos novamente, então me concentrei nisso.

Aprendi que há comida no deserto. Você só precisa aprender a procurá-la. Enquanto caminhava pelo deserto, por exemplo, vi leitos secos de rios e lá encontrei cactos de onde pude tirar um pouco d'água.

Depois de oito dias, encontrei um pequeno oásis. Bebi a água vagarosamente durante umas seis ou sete horas. Vi pegadas na areia, então sabia que não estava longe de pessoas.

No dia seguinte, enxerguei bodes e cabras à distância, o que meu deu ainda mais esperança.

Então vi uma jovem pastorinha tuareg. Ela também me viu e saiu correndo, com medo. Depois de nove dias no deserto eu certamente não tinha uma aparência muito amistosa. Estava coberto de poeira e sujeira. Cheguei a um acampamento tuareg, onde fui socorrido antes de ser levado a uma base militar próxima.

Descobri então que estava na Argélia. Tinha me desviado 291 km do percurso da prova.

Quando finalmente consegui falar com minha mulher, já no hospital, na cidade de Tindouf, a primeira coisa que perguntei a ela foi se meu enterro já tinha sido realizado.

Fui pesado e descobri que tinha perdido 16kg - estava com apenas 45kg. Tive danos à vista e ao fígado, mas meus rins estavam bem. Durante meses pude apenas tomar sopa e outros líquidos. Foram precisos dois anos para me recuperar.

Quatro anos depois, porém, voltei a correr a Marathon des Sables. As pessoas me perguntam por que voltei, mas quando começo uma coisa preciso terminá-la. Outra razão é que não consegui viver sem o deserto. Preciso voltar todos os anos para saudá-lo e desfrutar dele.

Corri oito maratonas desérticas e agora estou me preparando para meu maior desafio: em 2015, quero correr 7.000 km de costa a costa pelo Saara, de Agadir (Marrocos), perto do Oceano Atlântico, a Hurghada (Egito), no Mar Vermelho.