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Prender humorista por apologia ao terror 'é absurdo', opina especialista em islã

14/01/2015 20h25

Daniela Fernandes

De Paris para a BBC Brasil

O humorista francês Dieudonné foi acusado de antissemitismo

A prisão do polêmico humorista francês Dieudonné, nesta quarta-feira, por "apologia ao terrorismo" é considerada "absurda" pelo professor Olivier Roy, um dos maiores especialistas franceses em islã e autor de inúmeros livros sobre o tema.

O humorista, considerado por muitos como antissemita, foi detido por ter escrito em sua página no Facebook "se sentir Charlie Coulibaly", em referência a Amedy Coulibaly, que atacou um supermercado judaico em Paris na sexta-feira e matou quatro pessoas. Coulibaly também havia matado uma policial municipal na quinta-feira em Montrouge, no sul da capital francesa.

Dieudonné M’Bala M’Bala, que já havia sido proibido em janeiro de 2014 pelo governo de apresentar seu espetáculo, considerado antissemita pelas autoridades, será julgado por um tribunal penal, anunciou a Procuradoria de Paris.

A prisão do humorista por "apologia ao terrorismo" ocorreu no mesmo do dia do lançamento do primeiro número da revista satírica Charlie Hebdo após o atentado na quarta-feira que matou 12 pessoas.

A revista, que traz na capa a caricatura do profeta Maomé com um cartaz "Eu sou Charlie", se esgotou rapidamente em todas as bancas do país e teve sua tiragem ampliada para 5 milhões de exemplares.

Piadas

Entre o público de Dieudonné há muitos jovens de periferias pobres da França, nascidos no país, mas de origem estrangeira, que se divertem com suas piadas duvidosas sobre o Holocausto e outros temas ligados aos judeus.

"Qual mensagem será passada com a prisão de Dieudonné aos jovens das periferias? Eles vão entender que a liberdade de expressão só vale para alguns na França e não para todos", disse à BBC Brasil Olivier Roy, autor de inúmeros livros, entre eles O Islã Globalizado, A Laicidade face ao Islã, A Santa Ignorância e Islã e Ocidente.

"A liberdade de expressão é sagrada e para todos menos para Dieudonné. É preciso se voltar para a cultura dos jovens e discutir os questionamentos que eles têm em vez de fazer moralismo, que nunca funcionou", diz o especialista.

A prisão do humorista lançou nesta quarta-feira um debate na França sobre o direito à liberdade de expressão, garantida pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1789.

A legislação francesa delimitou posteriormente esse princípio, estipulando que a liberdade de expressão não é aplicada nos casos de injúria, difamação, incitação ao ódio racial e apologia ao terrorismo.

O Ministério da Justiça revelou nesta quarta que 54 processos judiciais foram instaurados por apologia ao terrorismo desde os atentados na semana passada São contra pessoas que publicaram mensagens e vídeos em redes sociais e outros atos considerados pró-terrorismo.

Alguns já foram rapidamente julgados. A pena maior, até o momento, foi dada a um homem no norte da França condenado a quatro anos de prisão por ter defendido o atentado cometido pelos irmãos Saïd e Chérif Kouachi contra a Charlie Hebdo.

'Resposta política'

Na semana passada, muitas crianças e jovens, em sua grande maioria muçulmanos, se recusaram a fazer um minuto de silêncio nas escolas em homenagem às vítimas dos atentados. Outros publicaram mensagens nas redes sociais dizendo "eu não sou Charlie".

"É normal que exista recusa em fazer um minuto de silêncio. As pessoas são obrigadas a se alinhar ao discurso oficial. Impor essa homenagem é impor uma doutrina", afirma Roy, cientista político e professor do Instituto Universitário Europeu, na Itália.

Um outro ponto que vem sendo abordado por alguns na França é se haveria necessidade de reformar o islã praticado no país, o que Roy também considera "absurdo".

"A resposta não é teológica e sim política. Em vez de abrir o debate com os jovens, prega-se a laicidade e o islã moderado", diz o especialista. "Mas nas escolas das periferias pobres, os jovens não querem ouvir esses discursos, eles querem discutir e entender por que há liberdade de expressão para a Charlie Hebdo e não para Dieudonné".

Segundo Roy, um dos fatores que explicam a radicalização religiosa de alguns jovens é a "desculturalização" da religião causada pela globalização. "Muitos desses jovens não falam árabe e não conhecem o islã de seus pais nem as culturas muçulmanas. Alguns não conseguem se moldar à sociedade ocidental onde eles vivem. Eles inventam um islã que eles opõem ao Ocidente", completa o especialista.

Outro fenômeno é a "cultura da violência contemporânea". Para Roy, o desaparecimento da extrema esquerda violenta, que atuava nas décadas de 70 e 80, foi substituída pelo radicalismo religioso.

"Como no caso da extrema esquerda, o combate desses radicais islâmicos, que fracassaram na escola, no trabalho e entraram na delinquência, não é para melhorar a situação dos oprimidos e dos excluídos da sociedade. É para derrubar a ordem mundial em vigor", diz ele.