Topo

Primeiro país a legalizar maconha, Uruguai declara 'guerra' ao álcool

Matías Sosa deve cumprir a lei que proíbe comércios como o dele de vender bebidas alcoólicas à noite. O governo uruguaio quer ampliar a restrição - BBC
Matías Sosa deve cumprir a lei que proíbe comércios como o dele de vender bebidas alcoólicas à noite. O governo uruguaio quer ampliar a restrição Imagem: BBC

Gerardo Lissardy

Enviado especial da BBC Mundo ao Uruguai

30/07/2015 08h27

Matías Sosa é caixa noturno de uma loja de conveniência de um posto de combustíveis de Montevidéu, mas à meia-noite se converte numa espécie de fiscal da venda de vinho, cerveja e uísque.

À meia-noite, diariamente, entra em vigor no Uruguai uma lei que proíbe a venda de bebidas alcoólicas até as 6h da manhã. E Sosa, 30, tem que cumprir a lei diante de clientes sedentos.

"Me choca um pouco ter que explicar [a lei] a cada pessoa que chega, mas está bem", afirmou à BBC Mundo. "Há um pouco mais de ordem, a coisa estava um pouco descontrolada."

Sosa conta que os clientes da sua loja, no bairro de classe média alta Parque Rodó, criticam o fato de o mesmo país ter legalizado a maconha, uma droga que em breve deverá ser vendida ao público em farmácias.

"Com esse assunto da maconha, todos estão sempre perguntando: Ah, não vende álcool, mas a qualquer momento vai começar a vender maconha aqui?", relata.

É provável que em poucos meses essa rotina de proibição e queixas comece mais cedo para Sosa: o governo anunciou um projeto de lei para estender o veto à venda de álcool das 22h de cada dia até 8h do dia seguinte.

A iniciativa, que excluiria bares, restaurantes e casas noturnas, integra uma batalha anunciada pelo presidente uruguaio, Tabaré Vázquez, contra o consumo de álcool.

Neste país de 3,3 milhões de habitantes que nos últimos anos surpreendeu com leis liberais e permissivas sobre maconha, aborto e casamento gay, também há normas restritivas sobre o álcool, o sal e até sobre fantasias de Carnaval.

'Tolerância zero'

Ao assumir a Presidência em março, sucedendo José Mujica, o médico oncologista Vázquez prometeu ações "muito fortes" contra o alcoolismo, parecidas com as que impulsionou contra o tabaco em seu primeiro mandato (2005-2010).

Por iniciativa dele, o Uruguai se tornou em 2006 o segundo país da América Latina e o sexto do mundo a proibir o fumo em espaços públicos fechados, um ano depois de Cuba.

Em 2009, o país determinou a cobertura de 80% dos maços de cigarro com alertas antitabagismo: "Se não parar de fumar por conta própria, pare por quem precisa de você", afirma, por exemplo, um desses alertas, sobre a imagem de um menino triste encostado em um túmulo. Também foi proibido o uso nos maços de expressões como "light", "mentolado" e "gold".

Deste modo, o Uruguai se inseriu na vanguarda mundial desse tipo de política, que, segundo o governo, permitiu reduzir o consumo de tabaco e as doenças associadas ao uso.

Mas o país foi processado pela maior empresa internacional de cigarros, a Philip Morris, que alega que as restrições "vão mais além" das de outros países e violam um tratado de investimentos.

Já no segundo mandato, Vázquez enviou em maio ao Congresso um projeto de lei para impedir que motoristas de veículos ingiram uma quantidade mínima de álcool, baixando do atual 0,3 a 0,0 grama de álcool permitido por litro de sangue.

O argumento para isso foi o de que há provas de que o consumo de álcool, inclusive em pequenas quantidades, aumenta o risco de acidentes de trânsito.

Mas parlamentares de oposição disseram que essa medida, inspirada em normas do Brasil e outros países, se aplicaria em um país que legalizou o mercado de maconha, e pediram também "tolerância zero" para o consumo da droga por motoristas.

Juan Andrés Roballo, secretário da Presidência uruguaia, afirma que as ações referentes a álcool têm origem numa comissão que Vázquez criou com representantes políticos e sociais, e nega que tenham "espírito proibicionista ou de guerra às drogas".

"O consumo social de um copo de uísque, vinho ou o que seja não está proibido", afirmou Roballo à BBC Mundo. "O que está proibido é juntá-lo com outras atividades, como dirigir".

'Combinação original'

Iniciativas como as que envolvem o álcool estão longe de ser novidade no Uruguai, onde segundo dados oficiais há 260 mil pessoas afetadas pelo uso problemático da bebida.

O governo de Mujica, que como Vázquez pertence à coalizão de esquerda Frente Ampla, propôs um projeto de lei para proibir em discotecas, pubs e bares o "open bar" (consumo ilimitado de álcool depois de pagar uma entrada) e os "happy hours" (duas bebidas pelo preço de uma).

Mas esse projeto naufragou no Congresso, enquanto avançavam iniciativas que fizeram do Uruguai o primeiro país do mundo a ter um mercado legal de maconha ou o segundo da região que permitiu o aborto quase sem restrições, depois de Cuba.

Roballo afirma que essas medidas e as iniciativas sobre o álcool têm em comum um ímpeto de "regulação" por parte do Estado, mas alguns as encaram como uma mistura atípica.

"Por um lado, é uma combinação ao menos original entre aquelas leis, normas ou disposições do arsenal mais liberal, e por outro lado, essas regulações muito fortes", avalia o historiador uruguaio José Rilla.

O Uruguai cultivou uma tradição liberal desde o início do século 20, quando consagrou o Estado laico e aprovou leis pioneiras na região sobre temas sociais como o divórcio por iniciativa da mulher e o voto feminino. Rilla lembra, no entanto, que nessa época também surgiu "um Estado sanitarista que distingue e define bem o saudável e o doente, o bom e o mau, onde colocar os loucos e os doentes, como tratá-los e o que é uma vida saudável". E afirma que a evolução mais recente disso coincide com uma tendência mais global e com o mandato de um presidente como Vázquez, "que baseia uma parte de sua força e prestígio perante a opinião pública em sua condição de médico".

Mas isso não é um reflexo exclusivo da Presidência.

Montevidéu, a capital que abriga 40% da população uruguaia, proibiu no ano passado restaurantes, bares e outros pontos de venda de comida de colocar sal ou potes de maionese nas mesas sem que os clientes peçam, para resguardar a saúde deles.

Também há restrições por motivos de segurança.

No Carnaval deste ano, por exemplo, a polícia indicou que estavam proibidos "fantasias ou estandartes que satirizem ideias religiosas, políticas, filosóficas ou étnicas", assim como brincadeiras com água e queima de foguetes.

Apesar de os uruguaios encararem essas limitações com tranquilidade, alguns não escondem a irritação.

Um deles é Agustín Rovira, estudante de contabilidade de 27 anos que foi comprar uma cerveja na loja de Sosa e foi informado que o veto havia começado, ainda que seu relógio estivesse marcando dois minutos para a meia-noite.

"Bancamos os liberais de primeiro mundo ao liberar a maconha e tudo isso, e depois nos impõem restrições como crianças, como no caso do álcool, que supostamente sempre foi legal", afirmou, antes de ir embora com as mãos vazias.