'Tem arma em casa?' Casos de crianças mortas por outras cria dilema sobre visita de amiguinhos nos EUA
A notícia de que duas crianças morreram nesta semana nos Estados Unidos após serem baleadas acidentalmente por outras crianças trouxe à tona novamente o debate sobre a onipresença de armas de fogo no país.
Não há números oficiais sobre o assunto, mas se estima que pelo menos 100 crianças morram todos os anos vítimas de disparos acidentais enquanto manuseiam armas de fogo.
Mãe de um filho pequeno, a jornalista da BBC Kate Dailey dá um testemunho pessoal sobre suas preocupações diante de tal cenário:
Quando meu filho tinha quatro meses de idade e minha licença-maternidade acabou, eu e meu marido começamos a buscar alguma família com quem pudéssemos dividir os custos da creche. Descobrimos um casal que morava no final de nossa rua.
Depois de algum tempo, fomos finalmente jantar com nossos vizinhos. Coincidentemente, o filho deles havia nascido um dia antes do nosso, e nossas agendas eram totalmente compatíveis, assim como nossas expectativas.
Chegou a hora da sobremesa e uma atmosfera de tensão tomou conta da sala.
"Escutem", disse eu. "Só para vocês saberem, não temos armas em casa".
Pude ver uma expressão de alívio no rosto da outra mãe. "Nós também não", afirmou.
Aquela foi a primeira vez que precisei tocar nesse assunto em nome da segurança do meu filho, mas não seria a última. Meu filho tem dois anos agora, e, por enquanto, houve poucas ocasiões em que ele foi à casa de um amigo sem a minha presença ou a de meu marido.
Mas sempre fiz questão de perguntar aos outros pais se eles têm ou não armas em casa. Sinto que ponho meu filho em risco se não o fizer - a cada semana nos Estados Unidos há histórias de crianças mortas acidentalmente enquanto brincavam com uma arma que elas não sabiam que estava carregada, ou acharam uma pistola escondida dentro da gaveteira.
Certa vez, eu toquei no assunto com uma mãe de um amiguinho do meu filho. Afinal, ele pernoitaria na casa dela. Foi estranho. Ela disse que não mantinha armas em casa, mas claramente ficou chocada com a pergunta.
Em uma outra ocasião, meu filho foi convidado para uma festa na casa de uns vizinhos. Nós havíamos nos esquecido de confirmar presença e depois de enviar um e-mail de desculpas à família, no qual perguntávamos se nosso filho e sua babá poderiam ser incluídos de última hora na lista, fiquei muito envergonhada de tocar no assunto.
'Sentimento de culpa'
Mas quando me sinto culpada por isso, digo a mim mesma que vivo em um enclave razoavelmente liberal de Washington, uma cidade onde as leis sobre porte de armas são rígidas. Mas confesso que não me sinto totalmente confortável com a pergunta, que deveria ser algo básico e simples.
Para os meus colegas, o meu temor soa estranho. Mas para alguns pais americanos, trata-se de um assunto sério.
"Eu sempre faço duas perguntas aos pais dos amiguinhos dos meus filhos: se eles têm armas carregadas em casa e se eles têm filtros de segurança na internet", diz Kate Lacroix, mãe de uma menina de 11 anos.
"As respostas que recebo são muito interessantes. Mas muitas pessoas dizem nunca terem sido questionadas sobre isso".
Em algumas ocasiões, as respostas são afirmativas. Nesse caso, Kate pergunta se as armas estão carregadas e onde ficam armazenadas. Todas as vezes, conta ela, sua filha diz ficar "morta de vergonha".
Por outro lado, Kate, assim como outros pais mais preocupados, dizem que nunca foram questionados sobre o assunto. Ou seja, embora um grande contingente de provedores não veja problema nisso, a pergunta está longe de ser um costume nacional.
É também difícil saber se as perguntas realmente contribuem para deixar os filhos em segurança ou apenas servem para apaziguar a tensão dos pais. Em outras palavras: estou realmente protegendo meu filho ou estou sendo superprotetora?
Posso apenas me consolar com o fato de que meus amigos que têm armas em casa são tão rigorosos - ou mais rigorosos - do que eu. Um amigo meu, caçador ávido, me disse que faz a pergunta todas as vezes que deixa seus gêmeos na casa de vizinhos.
"Um 'sim' não significa que não vou deixar meus filhos sob a tutela dessas pessoas, mas certamente perguntarei a elas como as armas estão guardadas, sendo a única resposta aceitável se elas estiverem armazenadas em um cofre, pois este é o modo como eu lido com as minhas armas e a única forma que julgo correto em casas com crianças", diz ele.
'Assunto sensível'
Meu amigo Adam Weinstein é editor do The Trace, um site de jornalismo investigativo sem fins lucrativos focado no porte de armas. Ele próprio tem arma em casa e é pai de uma criança pequena.
"Tenho uma desvantagem injusta em relação a outros pais que tentam tocar no assunto: com um amigo, eu cheguei a até recomendar uma trava de segurança adicional", conta ele.
"É um assunto sensível, porque muitas pessoas que têm armas não querem que outras saibam disso, especialmente em sua própria casa. Você tenta tratar o assunto da forma mais vaga e informal possível."
De fato, a pergunta esconde uma série de pré-julgamentos: você tem arma? (o que, por si só, é uma pergunta polêmica nos EUA). Você guarda sua arma em local seguro? Você sabe manuseá-la? Você representa uma ameaça a meu filho?
Não são perguntas fáceis -- especialmente, como alguns amigos me confidenciaram, quando os proprietários dessas armas são membros de sua própria família.
Mas em um país onde uma em cada três pessoas possui armas de fogo -- e há mais armas aqui do que pessoas -- fazer tal pergunta ainda é um tabu.
"Não me interessa. Serei a mãe estranha que vai fazê-la", diz minha amiga Farnoosh Torabi, em alusão ao questionamento sobre a presença de armas de fogo na casa dos pais dos amiguinhos do filho. "Se soa estranho para qualquer outro pai, então suponho que eles não estejam a par do que acontece no mundo".
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