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Os altos e baixos do kirchnerismo, que deixa o poder na Argentina

AFP
Imagem: AFP

Marcia Carmo

De Buenos Aires, para a BBC Brasil

23/11/2015 18h47

Os 12 anos de governo do kirchnerismo, que deixa o poder no dia 10 de dezembro, tiveram "altos e baixos" na política, na economia, no social, nos direitos humanos e no estilo de comunicação, dizem políticos, analistas e eleitores argentinos ouvidos pela BBC Brasil.

As críticas e elogios abrangem desde o estilo considerado "divisivo" de governar até a recuperação de uma gravíssima crise econômica --que agora volta a rondar a Argentina.

Se por um lado o kirchnerismo resgatou a agenda de preocupação com os direitos humanos da década 1970, durante uma das mais atrozes ditaduras da América Latina (entre 1976 a 1983), por outro, dividiu e gerou polêmicas entre as próprias entidades do setor.

"Não foi uma política genuína de direitos humanos, foi uma política permanente de divisão dos argentinos", disse a senadora e jornalista Norma Morandini, parlamentar de oposição ao kirchnerismo.

Morandini tem dois irmãos desaparecidos na ditadura --Nestor e Cristina, por coincidência os mesmos nomes dos presidentes líderes do kirchnerismo, o ex-presidente Nestor Kirchner, que governou entre 2003 e 2007 e morreu em 2010, e sua sucessora e viúva, Cristina Kirchner, que passará a faixa presidencial para o opositor Mauricio Macri, eleito no último domingo (22).

No capítulo direitos humanos, as entidades-símbolo de combate à ditadura --Avós da Praça de Maio e Mães da Praça de Maio-- respaldam o kirchnerismo. Suas líderes, Estela de Carlotto e Hebe de Bonafini, costumam estar nos atos políticos de Cristina.

Elas também costumam elogiar o governo da presidente como um todo. Mas outra entidade, a Linha Fundadora da Mães da Praça de Maio, não teria a mesma simpatia pela estratégia de direitos humanos do kirchnerismo.

'Autoritarismo' e 'saída do buraco'

"Não importa a área, o kirchnerismo trabalhou sempre de forma autoritária para dividir os argentinos", disse o filósofo Santiago Kovadloff, que morou no Brasil e é definido como um dos pensadores da atualidade argentina.

Segundo ele, os Kirchner implementaram um estilo de "caudilho" (coronéis da política) e "populista" que levou a esquerda a entender que esse deveria ser o caminho do governo --"com monólogos, sem ouvir os demais e permeado por escândalos de corrupção".

O deputado federal de esquerda Claudio Lozano, da Unidade Popular, criticou o kirchnerismo por ter "dividido as organizações de direitos humanos, os movimentos sociais, os movimentos dos trabalhadores em função do apoio ou não ao governo".

Para políticos que apoiam o kirchnerismo, os últimos 12 anos "tiraram a Argentina do buraco" e "deram boas perspectivas para o país", como afirmou o chefe de Gabinete da Presidência, Aníbal Fernández.

Quando Kirchner assumiu, em 2003, com apenas 22% dos votos, porque seu adversário Carlos Menem desistiu de disputar o segundo turno, a Argentina enfrentava os resquícios da sua pior crise política e econômica, como recordam analistas de diferentes tendências.

"Com o kirchnerismo, a economia argentina viveu uma primeira de recuperação e de crescimento econômico, mas há cerca de quatro anos caiu em recessão e o governo não reconhece os problemas que deve encarar", disse o economista Orlando Ferreres, da consultoria econômica Ferreres e Associados, de Buenos Aires.

'Crescimento chinês'

Na área econômica, a Argentina registrou, como costumava dizer Nestor Kirchner, "taxas chinesas" de expansão, superando os 6% ou 7% ao ano. Mas um conjunto de fatores, que incluiu o controle cambial em 2011, paralisou investimentos e crescimento econômico.

"Numa primeira etapa nós crescemos como nunca, mas com o controle cambial, com as limitações para importar peças necessárias para nossa indústria, nós estancamos. Não só estacamos como passamos a encarar as incertezas econômicas", disse um empresário argentino que pede para não ser identificado.

Empresários falando sob condição de anonimato foi outra característica do kirchnerismo, como reconhecem eles mesmos, por "temer que a AFIP (a Receita Federal local) não nos persiga em represália".

A presidente Cristina Kirchner costuma realizar suas comunicações à nação pelas redes nacionais de rádio e de televisão. E em uma delas criticou, por exemplo, um senhor que tinha apelado à justiça para comprar dólares sob o argumento de que seriam para a poupança dos netos. "Esse avô além de tudo é bastante 'amarrete' (pão duro)", disse a presidente em rede nacional.

O estilo de Cristina, de criticar os que poderiam ser adversos e opositores às suas medidas, teria sido um dos pilares do "cansaço" dos argentinos com o Kirchnerismo, segundo pelo menos três analistas --Rosendo Fraga, do Centro de Estudos Nova Maioria, Fabián Perechodinick, da Poliarquia Consultores, e Analía del Franco, da consultoria política Analogías.

Um dos principais assessores da campanha do candidato do governo derrotado à Presidência, Daniel Scioli, disse que a "falação e o discurso longo e permanente foram o que mais cansaram os eleitores, de acordo com as pesquisas especificas que encomendávamos".

A presidente deixa o cargo com imagem positiva em torno dos 40% --maior que a esperada--, atribuída à fidelidade de setores que admiraram suas iniciativas na área social, como a implementação da lei do casamento igualitário, que foi uma das primeiras no mundo.

Legado e desafio

Voz embargada, na hora de votar na eleição do inédito segundo turno, domingo, a presidente Cristina Kirchner disse aos jornalistas na cidade de Río Gallegos, na Patagônia, reduto político do kirchnerismo, que espera que os argentinos "tenham memória" sobre o que foi feito nestes 12 anos de gestão.

"Espero que lembrem o que Nestor e eu fizemos nestes anos. Que a Argentina está (mudando de governo) com uma baixa taxa de desemprego e após 12 anos de estabilidade. Que lembrem como estavam em suas casas em 2003 e como estão agora", disse.

O analista Raul Aragón, da consultoria política que leva seu nome, disse aos correspondentes estrangeiros que um dos méritos do kirchnerismo foi manter "o forte consumo dos argentinos" e esse seria "um legado positivo e um desafio para o próximo presidente".

O consultor político

Carlos Fara disse que o kirchnerismo tomou iniciativas que foram aprovadas pelos argentinos, como a reestatização da Aerolíneas Argentinas, planos sociais e a maior camada de pessoas beneficiadas com as aposentadorias públicas.

"No entanto, ao mesmo tempo, as formas e os resultados destas medidas também geraram questionamento", disse ele à imprensa local.

Crítico do kirchnerismo, o âncora da emissora TN Nelson Castro disse que Cristina deixa "uma herança muito pesada" mas que com ela "termina uma etapa na Argentina na qual só se governava para os que pensavam como eles e se excluíam os demais".