Por que brancos e negros ainda vivem separados em algumas partes dos EUA
A segregação legal nos Estados Unidos pode ter acabado há mais de 50 anos. Mas, em muitas partes do país, americanos de raças diferentes não são vizinhos, não frequentam as mesmas escolas, não compram nas mesmas lojas e nem sempre têm acesso aos mesmos serviços.
Em 2016 a questão de raça ainda vai ser uma das pautas mais populares no país. Os assassinatos cometidos pela polícia contra mulheres e homens negros desarmados nos últimos anos desencadearam novamente um debate sobre as relações entre as raças no país, e a reverberação deste debate será sentida na próxima eleição presidencial e depois dela.
Ferguson, Baltimore e Chicago são três cidades associadas à tensão racial, mas as três também têm outro denominador comum. Elas, como muitas outras cidades americanas, ainda são muito segregadas.
Testemunhei isto em muitos locais do país --da Louisiana ao Kansas, do Alabama ao Wisconsin, da Georgia ao Nebraska. Em muitos destes lugares, pessoas de raças diferentes simplesmente não se misturam, não devido à escolha, mas devido às circunstâncias.
E se não há interação entre as raças, é mais difícil até começar uma conversa sobre como resolver o problema.
Dados
Dados do censo divulgados recentemente e analisados pelo instituto de pesquisa americano Brookings Institution mostram que a segregação entre brancos e negros está caindo um pouco em cidades grandes, mas continua alta.
Se o número zero é considerado como a medida para a perfeita integração e 100 é a segregação completa, a análise da Brookings mostrou que a maioria das grandes áreas metropolitanas do país tem níveis de segregação variando entre 50 e 70.
De acordo com o relatório da Brookings, "mais da metade dos negros precisaria se mudar para alcançarmos a integração completa".
Segregação racial e segregação econômica estão ligadas: se uma pessoa é negra nos EUA, a probabilidade de ela viver em uma área com concentração de pobreza é maior que a de uma pessoa branca.
Não é uma questão de escolha ou acaso. Políticas habitacionais antigas evitavam de forma ativa que negros vivessem em certas áreas, por exemplo.
Kansas City é uma das cidades mais segregadas do país. Na parte oeste da Troost Avenue há grandes casas, com grandes varandas, propriedades cujos preços variam entre US$ 356 mil a US$ 1 milhão.
Na parte leste da mesma avenida há casas abandonadas, jardins sem manutenção, prédios fechados e com muito lixo em volta.
Casa própria
O governo americano tem uma parte da culpa por esta segregação, devido a práticas instituídas ainda na década de 1930 que evitaram que muitos negros conseguissem comprar casa própria em certas regiões.
Quando o governo começou a dar financiamentos imobiliários para promover o crescimento econômico como parte do plano New Deal, foram impostas duras regras para que cada financiamento fosse liberado.
Áreas onde as minorias viviam eram vistas como investimentos arriscados e famílias negras tinham seus pedidos de financiamento negados de forma rotineira.
O historiador Bill Worley, que mora em Kansas City, explicou que estas políticas continuaram sendo aplicadas na década de 1960 e excluíram negros americanos de uma das grandes marcas de prosperidade do século 20: ter a casa própria.
Em teoria, esta política é ilegal nos EUA desde a década de 1970, mas, na prática, acontece até hoje.
"Bancos continuam a construir e estruturar suas operações de empréstimo de uma forma de evita ou não consegue servir de forma significativa às comunidades de cor, tendo como base a premissa do risco financeiro", disse em setembro de 2015 Vanita Gupta, a mais importante advogada de defesa dos direitos civis no Departamento de Justiça.
Outro fator são os pactos raciais restritivos que estão incluídos nos contratos de habitação. Até 1948 era totalmente legal evitar que uma pessoa negra comprasse ou vivesse em uma casa.
Estes pactos criaram os bairros ricos mais afastados para famílias de renda média e alta. Aconteceu em Kansas City e no país inteiro.
A ida de famílias brancas para estes subúrbios ficou conhecida como "white flight" (ou "fuga branca", em tradução livre).
Com o uso destas práticas e de outra conhecida pela palavra em inglês blockbusting, na qual corretores de imóveis se especializavam em transformar áreas de brancos em áreas de negros, a segregação continuou.
A segregação residencial chegou ao auge na década de 1970. A historiadora econômica Leah Boustan disse que, neste momento, mais famílias negras estavam se mudando para os subúrbios e de volta às cidades do sul que abandonaram depois do fim da escravidão.
"Pode parecer estranho pois temos estereótipos do sul (dos EUA), mas os níveis de segregação residencial são os mais baixos em cidades do sul como Atlanta, Houston e Dallas", afirmou.
Atlanta
Mesmo sendo a cidade menos segregada dos EUA, Atlanta ainda tem desafios a enfrentar.
Nicole e Lewis Anderson moram na cidade e são dois afro-americanos com empregos em grandes corporações, mas contaram à BBC que os corretores de imóveis mostravam a eles apenas propriedades em certas "áreas negras".
"Quando começamos havia alguns brancos na nossa área, mas alguns anos depois eles se mudaram", disse Lewis Anderson.
"Nós, afro-americanos, quando vemos um grupo de pessoas brancas se mudando para a vizinhança, pensamos que é bom, estamos bem com isso. Mas para muitas famílias brancas este não é o caso - eles começam a se preocupar com o valor da propriedade e se mudam."
O caso de Lewis e Nicole não parece ser isolado. Uma pesquisa do governo americano mostrou que minorias, quando procuram imóveis para comprar, têm menos propriedades mostradas a elas do que os brancos.
Uma lei, a Fair Housing Act, foi aprovada há mais de 40 anos para acabar com a discriminação imobiliária, mas não foi aplicada da forma apropriada.
Em 2015, o presidente Barack Obama prometeu tornar esta lei mais rigorosa, com novas regulamentações. Agora novos projetos imobiliários só podem receber dinheiro do governo se demonstrarem uma maior integração com outros bairros e haverá sanções para os que não obedecerem.
Mas isto só se aplica a projetos imobiliários públicos. Construtoras privadas continuam com seus projetos sem este tipo de condição.
"A Fair Housing Act exigia que as comunidades que recebiam dinheiro do governo fizessem o que podiam para, de forma afirmativa, ampliar a habitação justa", disse o secretário de Habitação Julian Castro em entrevista à BBC.
"O problema é que, por muitos anos, esta exigência nunca foi definida ou aplicada de forma adequada."
Castro, que é visto como um possível candidato à vice-presidência pelo Partido Democrata na eleição deste ano, disse que uma das formas pelas quais seu departamento pretende garantir que áreas de pobreza não sejam ignoradas é dar a cidades acesso a dados demográficos para um melhor planejamento habitacional.
Mas o desafio mais importante continua: décadas após o movimento pelos direitos civis, muitos americanos, brancos e negros, simplesmente não se misturam.
E, enquanto os Estados Unidos lutam com problemas raciais, conhecer uns aos outros é um passo adiante na compreensão e resolução destes problemas.
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