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'Cada corrupto que se dá bem é um moleque da minha quebrada assassinado', diz Criolo

Thiago Guimarães - @thiaguima - Da BBC Brasil em Londres

26/04/2016 12h07

Nos labirintos da lendária casa de shows Koko, em Londres, Criolo aparenta cansaço ao chegar para a entrevista. Aquele domingo chuvoso era o quarto dia seguido de shows em uma rápida turnê pela Inglaterra.

O repórter teme uma conversa morna pela frente, mas a impressão logo se mostraria errada. Em papo com a BBC Brasil - e no palco em seguida -, o rapper e compositor expôs sua visão sobre a crise no país.

"O que acontece hoje é que algumas pessoas extremamente inteligentes têm em suas mãos um regimento e sabem mexer com esse regimento. Sabem cada espaço, cada fresta, e ali vão criando seu império. E são capazes de tudo para proteger seus interesses, até parar o país e fazer com que as pessoas se matem na rua", diz ele, em referência ao presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ).

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Batizado Kleber Cavalcante Nunes, filho de imigrantes nordestinos, Criolo, de 40 anos, é hoje um dos artistas da nova geração mais aclamados pela crítica no Brasil. Desde o álbumNó na Orelha (2011), deixou o gueto do rap paulistano e multiplicou o alcance de sua música.

Nas redes sociais, houve quem apontasse hesitação do rapper para se manifestar sobre o momento político no Brasil. Também foi criticado na seara musical ao se associar a Ivete Sangalo em um projeto patrocinado por uma empresa de cosméticos. No bastidor da casa de shows, sozinho com o repórter, ele parece se dirigir a essas pessoas.

"Não concordo (com o impeachment de Dilma Rousseff). Se fosse pelos motivos certos, sim. A questão não é limpar o país da corrupção. Parece que descobriram que só há corrupção agora. Mas o presidente da Câmara é o primeiro parlamentar citado na Lava Jato", afirma.

E ele se sente cobrado a opinar, no papel de artista? "Acho que não. Ninguém tem que ser cobrado de nada, tem que ser uma coisa natural de cada um. Não é porque uma pessoa não falou em palavra que não faz em ação."

No show em Londres, havia cartazes e coros de "fora Cunha" na plateia, de forte presença brasileira. Com pelo menos meia dúzia de turnês internacionais nos últimos cinco anos, Criolo diz que esse tipo de manifestação marcou esse atual giro pela Europa.

"Não teve um show em que não teve gente se expressando. Todo mundo se expressando politicamente. (...) As pessoas estão completamente indignadas. Como se chegou a esse ponto de um cara ter o regimento nas mãos e saber como usá-lo para lá e para cá, e ser tão visível que são questões de interesse dele e do grupo dele, e não de uma melhoria para o país. Está todo mundo indignado com isso, indignação brutal", afirma.

"Chuva de ódio"

O compositor, que já foi descrito por Caetano Veloso como "possivelmente a figura mais importante na cena pop brasileira", também fala da "chuva de ódio" que vê hoje sobre o Brasil.

"É muito louco isso, porque foi criado um ambiente de ódio, de rancor, tão absurdo que as pessoas passam por cima e parece que não estão vendo uma construção de fortalecimento, que algumas pessoas sugerem, de homofobia, xenofobia, racismo, de achar normal esse abismo social que a gente vive."

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Um conhecido chega e acena, a assessora passa para lembrar que a entrevista tem limite de tempo. Criolo estará no palco em menos de uma hora, e falta falar com mais gente. Mas ele se alonga nas respostas, quase indiferente às interferências.

"É uma chuva de ódio, o caos, fogo. Que taquem fogo nas ruas para a gente dar risada. (...) Aí vai assim: corrupção de mãos dadas com a impunidade, mãos dadas com o poder. A gente fala que a mídia manipula, mas quem manipula a mídia que manipula a gente? Vamos falar de impeachment, mas (qual) o porquê real desse impeachment e de todas as pessoas que estão gritando contra a corrupção? O que andaram fazendo e agora vêm com essa?"

O rapper sugere que há quem se beneficie com a crise, enquanto grande parte da população sofre as consequências. "Tem corrupção no governo e fora, todo mundo sabe disso, todos os partidos políticos têm. Agora, os caras fizeram uma manobra monstra, monstra, e que se exploda a favela. Que morra todo mundo: acho que é isso que passa na cabeça dos caras, talvez com um pouco mais de poesia e vernáculo mais apurado."

Ainda há tempo

No Brasil, Kleber prepara shows de comemoração de dez anos de seu primeiro álbum,Ainda Há Tempo (2006), do período em que ainda era o "Criolo Doido" das rinhas de MCs da zona sul de São Paulo. Faixas do disco que aparecem no repertório do show parecem reforçar a mensagem do cantor sobre o momento atual.

"As pessoas não são más / Elas só estão perdidas / Ainda há tempo", diz a faixa-título, que fecha o show. Na abertura, os versos de "É o Teste": "É o teste, é o teste, é a febre, é a glória / Não se corromper, para nós, já é vitória".

"De onde venho, essa mensagem é urgente todos os dias para quem não enxerga que tem gente vivendo nas bordas", diz à BBC. "As leis estão sendo testadas."

Instigado a opinar sobre o governo Dilma, Criolo prefere não dizer. Afirma que seria "muito raso" dar um veredito sobre a presidente ou sobre o PT, e que esse tipo de discurso inflama o maniqueísmo vigente no Brasil.

"Acho que, independente do que eu achar, não dá para se construir um impedimento de uma pessoa se seus interesses são outros. Se o interesse é acabar com a corrupção, quantos por cento das pessoas que participaram daquela votação deveriam estar na cadeia ou impedidos do exercício parlamentar? Você falar que gosta ou não de Dilma é criar cada vez mais esse processo de polarização e se esquecer de que existe esse passo: quais são os porquês dessa situação?"

E a crise econômica, bateu à porta da quebrada em que ele nasceu e foi criado? "Nunca vi na minha vida tanta gente tendo oportunidade de estudar na universidade."

Futuro

Sobre os impactos do racha político, Criolo opina que "a polarização só foi criada e alimentada porque existe uma elite que é isso aí mesmo, e vão bater o pé porque é isso que querem. Aí todo mundo treta, e cada um dos caras vai encher o seu burrico de ouro, prata e o pior, de almas que são assassinadas. Porque cada corrupto que se dá bem é um moleque da minha quebrada que é assassinado, que se envolve com o que não tem que se envolver (...) Quando morre um, ninguém está lá com a mãe, descendo o caixão para a vala. O Cunha não está lá descendo o caixão para a vala."

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Mas Criolo se diz otimista. "Porque como meu pai diz, tem sempre uma noite entre dois dias. Tenho muita fé nessa geração monstra que está vindo aí, cara. Tenho muita fé. Poder de comunicação, poder de diálogo, de sintetizar um monte de coisas que gostaria de te falar e não sei falar, não sei construir."

"Então essa fé no ser humano, essa fé nas coisas boas, essa fé em quem quer de verdade algo bom, isso não pode morrer, cara, isso tem que ser fortalecido a cada momento", diz ele, que ao longo da conversa fez várias referências à importância da educação e da valorização do professor.

Sobre a classe política, "eles criam um monte de situação, vendam nossos olhos para eles mandarem cada vez mais", afirma Criolo, usando uma expressão que repetiria no palco naquela noite.

A banda aparece e pessoas passam pelo corredor no backstage do teatro centenário que já foi palco para Charles Chaplin, Madonna e Iron Maiden. A assessora passa mais uma vez: o tempo da entrevista - 15 minutos que se estenderam para 23 - acabou.

Ele se levanta, mas continua falando, desabafando porque "tem uma parada acontecendo aí que é muito mais pesada". É uma referência ao clima de ódio e a pessoas brigando entre si por opiniões que não necessariamente são delas: "Sou amigo seu de infância, mas agora vou tretar com você. Porque o que vi na TV disse isso, isso e isso."

O cantor se diz emocionado. "A gente não pode perder a esperança, man". Ao final da entrevista, como que consciente do desabafo que fez, agradece e deixa um recado ao repórter. "Mano, senta a madeira."