Uma brasileira entre refugiados e ataques de meninas suicidas no Chade
Quando a carioca Karina Teixeira contou que iria para uma missão humanitária no Chade, muitos de seus amigos e parentes lhe perguntaram se ela estava louca. Localizado no centro da África, o país, que já sofria com a pobreza extrema, agora tem de lidar com outro problema: os ataques do grupo extremista muçulmano Boko Haram no país vizinho, a Nigéria.
Com o conflito, o Chade vive uma das maiores crises humanitárias da atualidade. Além da pressão causada pela entrada de nigerianos e moradores de outros países vizinhos obrigados a fugir de casa por conta da violência do Boko Haram, há a ameaça constante de ataques suicidas cometidos por meninas sequestradas pelo grupo. Somente na região do lago Chade (que banha Niger, Camarões, Nigéria e Chade), há mais de 2,7 milhões de deslocados e refugiados.
“Minha mãe dizia que, como eu já trabalhava no Médicos Sem Fronteiras e tinha ido ao Haiti, já estava bom tamanho, não precisava me arriscar mais”, conta Karina, que é especialista em relações internacionais. “Mas, depois que eu ‘sobrevivi’ ao Boko Haram, acho que será mais tranquilo para ela aceitar minhas próximas missões.” De volta ao Rio de Janeiro, ela contou à "BBC Brasil" os desafios da sua missão no centro da África. Leia o depoimento:
“Trabalho no Médicos Sem Fronteiras desde 2013. Já tinha ido a uma missão no Haiti, onde ajudei a gerir um hospital de emergências ortopédicas e traumas. Aprendi muito sobre como trabalhar em equipe, especialmente em situações emergenciais. Foi uma experiência que ajudou a me preparar para a minha próxima missão, no Chade. Embarquei para lá no fim de 2015, para ficar três meses como responsável pela administração e gestão dos funcionários locais.
A atividade principal das operações do Médicos Sem Fronteiras lá é acolher os refugiados e deslocados, com um foco especial em saúde mental. São pessoas que fugiram do Boko Haram e são muito traumatizadas pela violência.
O clima por lá é de total instabilidade e tensão, especialmente pelo medo de ataques suicidas feitos por meninas que foram sequestradas pelo grupo. É preciso ter em mente que o fato de serem meninas torna esses ataques ainda mais imprevisíveis. Ninguém espera que uma menina de 10, 11 anos vá entrar em um mercado e explodir uma bomba.
Minha base era um campo de refugiados em Baga Sola (próximo à fronteira com a Nigéria). Além de nigerianos, também recebíamos muitos deslocados internos, ou seja, moradores da região que foram obrigados a fugir de suas terras, perto do lago.
Muitas vezes, o próprio governo do Chade retira essas pessoas de suas casas para evitar ataques do Boko Haram. Então muitos ficam abandonados, vagando pelo deserto, sem água, sem comida, sem qualquer atividade que os mantenha, como pesca ou agricultura.
Em uma ocasião, descobrimos um grupo isolado no meio deserto. Fizemos uma operação de emergência e chegamos no dia seguinte. Havia muitas crianças desnutridas, morrendo de fome.
É um conflito esquecido. Totalmente esquecido. Ninguém sabe o que é o Chade, onde fica, nada. O mundo precisa saber que há outras crises de refugiados. Recebíamos pessoas muito marcadas pela violência de todo o tipo, inclusive violência sexual. O estupro é uma arma de guerra muito usada no Boko Haram.
Então, nosso trabalho de saúde mental era para ajudar as vítimas a conseguir lidar com esse trauma. E também dar treinamento para os profissionais locais saberem como identificar vítimas e ajudá-las, até para encorajá-las a falar ou até a passar por exames.
Estando lá, você fica imerso na situação, acaba se apegando às pessoas, se emocionando muito. Não tem como ser diferente. Foi o que aconteceu quando eu tive de levar uma menina de 4 anos com fraturas graves no braço para a capital. Eu precisei carregá-la porque estava muito debilitada, vomitando sangue.
Ela ficou bem, mas não conseguia parar de pensar em o que seria dessa menina se não tivesse ajuda humanitária. Ou de todas as outras crianças com algum problema e que não conseguiram ser atendidas a tempo.
Antes de ir, tive receio, sim. Por eu ser mulher, por ser um país muçulmano. Mas não tive nenhum problema em relação a isso. Só tive de lidar com problemas menores, como usar latrina, não ter água encanada e enfrentar um calor de 45 graus. Hoje, o calor do Rio é fichinha para mim!
Além disso, o fato de eu ser brasileira abre portas, como sempre. O futebol abre portas. Como no dia que estava recebendo algumas crianças e os cadernos tinham o Ronaldinho na capa. Não acreditei!
Fora isso, o brasileiro é bem recebido porque costuma ser simpático e respeita as culturas locais. Chorei muito na hora de vir embora. Parecia que havia ficado lá anos. Na minha festa de despedida, os funcionários fizeram um churrasco de ovelha.
Voltei a trabalhar no escritório do Médicos Sem Fronteiras no Rio, mas mal posso esperar pela minha próxima missão. Como diz minha mãe, agora que eu sobrevivi ao Boko Haram..."
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