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Detector de metal no restaurante e várias notas para comprar refrigerante: repórter relata regresso à Venezuela

Fila para comprar papel higiênico na Venezuela - Jorge Silva/Reuters
Fila para comprar papel higiênico na Venezuela Imagem: Jorge Silva/Reuters

Yolanda Valery

Da BBC Mundo em Caracas

19/06/2016 11h47

Não caminhe do centro para casa. Nem pense em usar o metrô. Não saia depois das 18h30. Traga tudo que precisar, inclusive sabonete para o banho, já que nem os hotéis cinco entrelas o estão dando. Não marque de almoçar com amigos: todo mundo está "duro".

Pareciam conselhos para quem vai, se não para um front de guerra, ao menos para um local bem distante da sua própria realidade. Mas eu estava indo para meu país.

Fazia quatro anos que eu não colocava os pés na Venezuela. Não era a primeira vez que experimentava o choque do regresso após uma longa temporada no exterior.

Deste vez, foi diferente. Nesse tempo, o presidente Hugo Chávez morreu. O preço do petróleo despencou de mais de US$ 100 (R$ 350) para cerca de US$ 40 (R$ 140).

O que primeiro chamou minha atenção foi o quão vazio parecia estar o aeroporto, ainda mais em comparação com o de Bogotá, na Colômbia, onde havia feito escala.

Contei pouco mais de uma dezena de aviões estacionados em frente ao terminal internacional em uma tarde de domingo e, pela primeira vez, não tive de esperar em uma fila para fazer a imigração.

Estava contente, tomada pela sensação de voltar para casa e reencontrar coisas tão familiares. El Ávila, a montanha que rodeia o vale onde fica Caracas, estava bela como sempre.

Os rachos (edifícios precários das vizinhanças mais pobres) estavam mais sujos do que quando foram pintados de amarelo, verde, azul, violeta e vermelho, mas continuavam nos mesmos lugares. Assim como o buraco na estrada que uma vez me custou um pneu furado.

Mas bastou comprar uma garrafa de água para matar a sede em meio ao calor tropical para acordar e ver que a realidade não era a mesma que eu havia deixado para trás.

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Muitas notas

Primeiro, porque comprar quase qualquer coisa na Venezuela - que, em 2015, teve uma inflação oficial de 180% e que, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), poderá chegar a 700% neste ano - exige muito dinheiro.

Estou falando de dinheiro físico: cédulas, muitas cédulas, e um visitante precisa conseguir fazer câmbio de dólares por meio do complicado sistema de controle venezuelano.

Na lojinha da esquina, um refrigerante custava 15 bolívares em 2012. Agora, custa 350 (R$ 121). Se antes o cartão de crédito e débito era algo conveniente, neste contexto, é indispensável.

A nota de maior valor agora é de 100 bolívares (R$ 35), que começou a circular em 2008, quando o governo substituiu o bolívar pelo bolívar forte. Assim, para comprar um refrigerante, é preciso ter na carteira ao menos quadro destas notas.

Loteria do crime

Ter de levar comigo muitas notas em um país com a segunda maior taxa de homicídios do mundo (58 a cada 100 mil habitantes, em 2015, segundo a Promotoria Geral da República) é uma perspectiva nada divertida.

Por isso, colocava em bolsos secretos bolívares obtidos em um local protegido, a casa de câmbio de um hotel. Perguntei a mim mesma se é assim que se sentem os criminosos que recebem dinheiro passado pela janela de um carro e se afastam a passos rápidos, mas casualmente, para não levantar suspeitas.

O outro desafio é sair com uma boa quantia rezando para não ser sorteada pela loteria do crime. Nascida em Caracas, uma cidade insegura desde que me conheço por gente, aprendi a manter uma certa paranoia e não usar minha aliança de casamento, não levar nada no bolso nem nas costas, não usar o celular em público e a olhar para trás para ver estou sendo seguida.

Mas, agora, só de ouvir uma motocicleta se aproximando, uma pessoa já fica alerta. "Dei um pulo de susto um dia desses. Mas, na verdade, o motoqueiro andava tranquilamente com sua mulher e filho e parou mais adiante para dizer em tom de brincadeira: 'Vou te assaltar de verdade'", me conta uma conhecida.

Também me impressionou o detector de metal instalado na porta do meu restaurante favorito. E decidi não usar o metrô depois de me contarem que agora são comuns os roubos com o uso de facas, porque são silenciosas e eficazes.

Nem quis ler as notícias policiais ou passar pela rua na qual saía à noite quando era estudante, praticamente deserta depois do entardecer.

Mas andei pelas ruas, contrariando o conselho que me deram. Não pude evitar a sensação de que estava testando minha sorte.

Estantes de bugigangas

"Outro dia, fui parada em uma blitz pela polícia para checarem se eu tinha produtos com preços controlados no carro. Fiquei com muito medo, porque não sabia se era um sequestro", me disse outra amiga.

Os produtos com preços controlados - alimentos e medicamentos - são outra parte da história. Com esse controle em prática há uma década - uma forma de combater a "guerra econômica", segundo o governo -, os consumidores já haviam se acostumado a aceitar qualquer produto que estivesse disponível.

Em um dia, havia leite importado do Uruguai. No outro, do Brasil. Às vezes, integral. Noutras, desnatado. As pessoas compravam o que houvesse. Em certas ocasiões, não havia nada, mas se tinha a certeza de que seria possível achar um produto similar.

Se não havia arroz normal, que tem seu preço controlado, comprava-se um com sabor de alho, que tem preço livre. Para quem podia pagar, era uma forma de "ir levando a vida em meio à crise". Agora, até mesmo o arroz com sabor de alho é difícil de achar nas lojas, para não dizer impossível.

Entrei no supermercado em que costumava fazer compras e não vi estantes vazias: havia frutas e verduras, mas sobretudo grandes quantidades de determinados produtos: três prateleiras com vários metros de largura com sardinha enlatada, por exemplo.

Mas, para coisas básicas, como leite, farinha, macarrão e óleo, é preciso entrar nas famosas filas, em dias determinados pelo último número do documento de identidade.

Com uma escassez de 82% dos produtos nos estabelecimentos comerciais da capital, segundo o relatório mais recente da consultoria Datanálisis, as pessoas não falam de outro assunto.

Neste saudável esporte jornalístico que é sair às ruas para simplesmente escutar o que as pessoas estão dizendo, o tema estava sempre presente nas conversas: "Fulana conseguiu leite"; "Minha mãe achou farinha"; "Um amigo tem um amigo que pode conseguir óleo"; "O açúcar subiu para não sei quanto"; "Não pago o que pedem por um produto que não vale tanto assim".

Sem cantadas

"Os homens já não cantam mais as mulheres. Eles olham o que elas levam na sacola", comenta um homem que espera em uma das longas filas em um dia útil em Caracas.

Essas filas, que não são garantia de que se conseguirá comprar alguma coisa, são lugares de encontros e desencontros. Nelas, são compartilhados problemas e indignação. Por isso, são fortemente vigiadas pela Polícia Nacional Bolivariana ou pela Guarda Nacional.

"Se eles não estão, fechamos a rua, como aconteceu ontem", me diz um homem em uma fila em uma loja nos arredores de Caracas.

Um dos policiais pede para eu me afastar da grade que fecha a passagem para o supermercado. "Por quê?", pergunto apesar de ele levar um fuzil no ombro. "É a ordem", ele responde.

Na tentativa de contar quantas pessoas estão na fila, caminho até o fim dela. Calculo que são mais de mil. "O que espera conseguir?", pergunto para a última pessoa da fila, uma mulher de uns 35 anos e aspecto humilde. "O que tiver", diz ela, quase chorando.

Revendedores

A mulher era uma forte candidata a terminar comprando dos bachaqueros, como são chamados aqueles que revendem produtos a preços controlados e que não existiam há quatro anos.

Ao sair pela primeira vez, me deparei com esse fenômeno em plena luz do dia. Em uma rua em que tradicionalmente se vendiam DVDs piratas, agora, eles podem ser vistos junto a pilhas de água engarrafada, o "produto do momento".

Mas, em outros cantos, como o mercado Petare, considerado um grande centro dos bachaqueros no leste da cidade, não vi mais do que duas dezenas de vendedores informais. A escassez parece estar afetando até mesmo esse lucrativo negócio.

Ali, pude ver também preços delirantes. Três abacaxis por 300 bolívares (R$ 105). Chiclete por 1.800 (R$ 629): não acho que existam muitos lugares onde seja possível comprar 18 abacaxis pelo mesmo valor de um pacote de goma de mascar.

E, enquanto o quilo do arroz branco, que tem seu preço regulado, custa 104,23 bolívares, o do arroz com sabor de alho sai por 1.800.

Panela de pressão

Os bachaqueros também viraram notícia por razões sinistras. Diversos relatos na imprensa dão conta contra de grandes encontros entre aqueles que organizam esse comércio informal e as pessoas que acordam muito cedo para ficar nas filas de alimentos, com desdobramentos graves.

O desvio de um caminhão de produtos de um estabelecimento comercial da capital na semana passada gerou um conflito entre as pessoas que estavam na fila e a polícia. Um incidente similar ocorreu nesta semana no leste de Caracas.

"Vai cair", cantavam os manifestantes no primeiro incidente, uma alusão ao governo de Nicolás Maduro.

O governo planeja controlar isso redirecionando a distribuição de alimentos por meio de um mecanismo oficial conhecido como Comitê Local de Abastecimento e Produção (CLAP), que vende sacolas de comida para as famílias, de acordo com censos realizados em cada localidade.

Enquanto isso, ainda não está claro se será realizado um plebiscito para revogar o mandato do presidente.

As centenas de milhares de eleitores que assinaram o abaixo assinado em prol dessa medida deverão validar suas assinaturas pessoalmente nos próximos dias. Mas esse é apenas um de uma série de requisitos, antes que ocorra uma votação formal.

Nas ruas, as manifestações em apoio ou contra o plebiscito não reunem muitas pessoas.

Seria possível continuar a escrever sem parar sobre as coisas que vi, escutei e vivi em uma semana na Venezuela, quatro anos depois de partir.

Mas talvez o elemento mais importante seja que os alimentos e medicamentos parecem ter se transformado em um poderoso ingrediente de uma panela de pressão em que já estão a insegurança e as restrições a serviços públicos.

Um ingrediente que ao mesmo tempo move as pessoas e, às vezes, as paralisa. As pessoas parecem estar se mobilizando apenas em prol de sua sobrevivência.

Definitivamente, não é país que deixei. Não me atrevo a imaginar o que posso vir a encontrar na próxima vez que voltar.

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