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'Mataram meu filho enquanto ele brincava': a vida em uma cidade síria sitiada

Chegada de comboio com ajuda à cidade síria de Madaya - ICRC/AP
Chegada de comboio com ajuda à cidade síria de Madaya Imagem: ICRC/AP

24/12/2016 08h21

Mohamed al-Maleh, 12, brincava no telhado de um prédio na cidade de Madaya, próxima à fronteira com o Líbano, quando, segundo seu pai, um "sniper" (atirador de elite) atirou nele.

O menino caiu com um ferimento grave na cabeça.

Moussa al-Maleh correu para socorrê-lo. "Ele era um menino feliz, mas não estava tendo a vida de uma criança normal", diz o pai, lembrando a rotina de vida de Mohamed sob o cerco do governo.

"Nos dias de bombardeio, ele se escondia no porão conosco. Podia ficar dias sem comer, sem nenhum tipo de lazer. Mohamed vivia 1% do que as crianças normais vivem", conta Moussa.

A clínica para onde Mohamed foi enviado era, na prática, um quarto localizado no porão de uma casa.

Dirigida por Mohammed Darwish, um estudante de odontologia de 26 anos, e outras duas pessoas, o local era a única instalação médica em Madaya.

"Tentamos fazer o melhor que podemos, mas não tratamos os pacientes completamente. Não somos especialistas", afirma Darwish.

"Mas temos que continuar (o trabalho). Não temos escolha. É um presente de Deus tratar essas pessoas", destaca.

Para salvar o garoto, eles teriam de transferi-lo para outro lugar.

"Foi difícil, um choque, algo como 'O que fazemos agora?'", lembra Darwish.

"Ele precisava de uma cirurgia, de um hospital, estava sangrando. Nós paramos e cuidamos dele", acrescenta.

'Como animais'

Mas Madaya, com seus 40 mil habitantes e a 25 km a noroeste de Damasco, está sitiada desde junho de 2015.

A cidade permanece cercada pelo Exército sírio e por combatentes aliados do grupo libanês Hezbollah, que são apoiados pelo Irã.

A movimentação dentro e fora da cidade é rigorosamente controlada, e os pedidos para a retirada do menino foram ignorados. Dezoito horas depois, ele morreu.

"Fomos deixados aqui como animais", diz o pai.

Dias antes, Darwish conta que Mohamed Almoeel estava fora de sua casa quando levou um tiro no abdômen, também por um atirador.

Moradores afirmaram que os "snipers" estavam a postos, disparando naqueles que se arriscavam a sair. Mesmo as pessoas que participavam de funerais de parentes corriam o risco de ser alvejadas.

A equipe da clínica tentou, novamente, tirar o paciente, mas, de acordo com Darwish, os combatentes aliados ao governo não permitiam que eles saíssem.

A única opção que sobrou foi operá-lo lá.

"Não tínhamos nenhum especialista, nenhum anestésico. Tínhamos de fazer aquilo, mas não sabíamos como. Então pedimos ajuda aos médicos por Whatsapp", diz ele.

Grupos de Whatsapp e Skype foram criados por especialistas e ONGs dentro e fora da Síria, num esforço para ajudar os médicos em clínicas improvisadas como a de Madaya.

O cirurgião que ajudava Mohammed Darwish pelo Whatsapp estava em Idlib, uma cidade rebelde no norte da Síria e uma das poucas fortalezas remanescentes da oposição. É para lá que estão sendo levados milhares de civis e combatentes retirados do leste de Aleppo.

Mas a própria Idlib está agora sob imensa pressão, dizem grupos de resgate, incapazes de tratar pessoas que sofrem de doenças crônicas e ferimentos de guerra, incluindo membros amputados e ferimentos na cabeça.

Darwish e seus colegas levaram oito horas para operar Almoeel.

"Os médicos nos guiaram. Durante a operação, tiramos fotos de seu abdômen, saímos da sala de cirurgia e perguntamos aos médicos o que fazer", conta ele.

"A bala provocou muitos danos dentro de seu corpo. Fizemos tudo o que podíamos. Mas ele precisava de um especialista. Não conseguimos estancar o sangramento, então fechamos o abdômen e o observamos", acrescenta.

Almoeel morreu ao amanhecer.

Os doentes continuavam chegando, mas, em muitos casos, Darwish e sua equipe nada podiam fazer.

'Morrendo de fome'

O cerco a Madaya bloqueou o acesso da cidade à medicina, combustível e comida.

Os moradores não têm para onde ir, pois as estradas estão bloqueadas e as minas terrestres cercam a cidade.

De acordo com o Siege Watch, um grupo que monitora as condições de vida em áreas bloqueadas, moradores permanecem dependentes de comboios humanitários que não chegam.

As Nações Unidas disseram no início deste ano que havia relatos de pessoas morrendo de fome na região.

Funcionários da ONU foram informados de que crianças estavam pegando grama para fazer sopa.

A violência continuou e os grupos humanitários receberam acesso à região entre janeiro e abril. Eles retornaram apenas em setembro e relataram que a desnutrição continuava um problema sério.

Em novembro, pelo menos quatro crianças morreram de doenças associadas à desnutrição, informou o Siege Watch. No final deste mês, a ajuda foi finalmente permitida novamente.

A falta de vitaminas também aumentou o número de abortos espontâneos, disse Mirna Yacoub, vice-representante da Unicef na Síria, à BBC em outubro.

As cesarianas também se tornaram mais comuns devido à saúde frágil das mulheres. Algumas estavam tão fracas que não podiam passar pelo trabalho de parto normal.

Moussa ainda estava de luto pela perda de seu filho quando, sete dias depois, retornou à clínica de Mohammed Darwish. Desta vez com sua esposa, que estava grávida de seu segundo filho.

"Ela tinha muita pressão e estava muito fraca. Então, a preparamos para a cirurgia, quando o bebê saiu. Ele estava morto. Ficamos chocados", diz Darwish.

A notícia devastou a família. "Minha mulher é diabética. Ela perdeu parte da visão", afirma Moussa. "Ela só chora e diz: 'Por que eles querem matar nossos filhos?'. Ela sente como se tivesse perdido uma parte de seu corpo.

Quando visitou a clínica, Yacoub ficou surpresa ao ver que as cesarianas estavam sendo realizadas lá.

O número de cirurgias havia crescido de tal forma que, sem álcool, instrumentos médicos estavam sendo esterilizados com fogo.

Para o ultrassom, por exemplo, um gel de cabelo fazia as vezes de condutor.

"Estamos muito cansados", disse Darwish em uma de muitas entrevistas desde outubro.

"Os pacientes muitas vezes vêm aqui e não sabemos o que fazer. Não há especialistas, nem remédios, nem alternativa. A única coisa que podemos fazer é ouvi-los. Odeio não poder tratá-los", afirmou na ocasião.

Darwish lembra o caso de Ali, que tinha insuficiência renal e não pôde ser submetido à diálise porque não havia equipamento próprio.

Os socorristas disseram que os problemas nos rins tinham aumentado, em consequência da má nutrição e da falta de alimentos.

A Siege Watch informou que dois pacientes com insuficiência renal morreram no mês passado e outras 27 pessoas com problemas semelhantes estavam presas na região.

Havia também pacientes com câncer, infecções urinárias, doenças intestinais, entre outras, diz Darwish.

Um dia, lembra Darwish, Hasan, 13, foi até a clínica reclamando de uma dor no pé, que tinha alguns pontos escuros.

"Não podíamos dar nada a ele; não havia remédios. Eu não tinha ideia do que tinha de errado. Ele precisava ser consultado por um especialista", conta.

"Demos alguns analgésicos a ele. Mas esses não são os remédios mais apropriados. Ele sentia muita dor e estava chorando. Doía tanto que o menino não conseguia andar. Então, chorei com ele", acrescenta.

Diante do agravamento da situação, a clínica foi fechada em novembro.

"Estávamos tentando fazer o melhor que podíamos", diz Darwish. "Mas, sem suprimentos, não tínhamos condições de mantê-la", completa.

Outro problema é o frio. Sem eletricidade ou combustível para ligar os aquecedores, moradores vêm queimando sapatos ou móveis.

A Unicef, o fundo da ONU para a Infância, advertiu que o clima extremo representa uma "grande ameaça" para as crianças da região.

Madaya e a cidade vizinha de Zabadani, também sob controle rebelde, foram incluídas na última etapa da trégua que permitiu a evacuação de Aleppo.

A expectativa, agora, é de que as pessoas com necessidades médicas sejam retiradas de lá.

Moradores sitiados por rebeldes em Foah e Kefraya, na província de Idlib, também serão evacuados.

"Não sabemos o que vai acontecer, não sabemos nada sobre o nosso futuro. Esperamos que o cerco acabe. Só há civis aqui", diz Darwish.

"Mas há esperança", acrescenta.