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Ato de ambulante que morreu no metrô foi 'trangressão' a modo covarde de existir, diz psicanalista

Ingrid Fagundez

Da BBC Brasil em São Paulo

30/12/2016 16h41

Um crime que chocou o país: o vendedor ambulante Luiz Carlos Ruas morreu na noite de Natal, depois de ser espancado por dois homens no chão de uma estação de metrô em São Paulo - diante de dezenas de testemunhas.

Para o psicanalista, professor e escritor Chtistian Dunker, Ruas morreu porque não se calou. Ao contrário das pessoas que viram seu espancamento, Índio, como era conhecido, falou com seus agressores, tentando impedir que os jovens batessem em duas travestis do lado de fora da estação. Ao intervir, Índio tornou-se o novo alvo da violência.

Dias após o assassinato, Alípio Rogério Belo dos Santos e Ricardo Martins do Nascimento estão presos e devem ser denunciados por homicídio triplamente qualificado - eles dizem que reagiram após um deles ser agredido por Ruas com uma garrafada, versão que, segundo disse à imprensa o delegado Osvaldo Nico, "não convence".

psicanlista - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
O psicanalista, professor e escritor Chtistian Dunker
Imagem: Arquivo pessoal

Em entrevista à BBC, Dunker, que ganhou o Prêmio Jabuti por sua obra sobre psicologia, psicanálise e comportamento, classifica o ato do ambulante como uma "transgressão ao nosso modo muito covarde de existir". Apegadas apenas à letra da lei, diz o psicanalista, as pessoas não fazem nada além do que se espera delas, ficando em silêncio em situações de injustiça.

"Diante do violento, a gente não fala. Isso é uma característica de todos os sistemas de aceleração da violência: nas corporações, na polícia, dentro das comunidades. Em todos esses lugares, o que vai acontecer é uma cultura do silêncio. E quando alguém rompe a lei do silêncio tem que pagar, como no caso do Índio."

Leia a seguir os principais trechos da conversa.

BBC Brasil - Por que a morte do Índio chocou tanto os brasileiros?

Christian Dunker - O gesto do Índio foi trágico, no sentido mais próprio do termo. Ele fez aquilo que todos nós sabemos que devemos fazer numa situação de violência e não fazemos.

Ele se meteu na briga alheia. Viu duas travestis sendo atacadas e rompeu essa barreira tácita do silêncio, que nos envolve, nos acovarda e faz com que a gente sinta permanentemente uma sensação de impotência diante daquilo que sabemos que está errado. Então, o gesto do Índio falou por todos nós.

Isso é mobilizador e o torna, de fato, um grande herói, porque ele faz o que todos nós devíamos fazer, inclusive aqueles que são profissionalmente responsáveis.

Quando a gente nota que o sistema de segurança do metrô não agiu a tempo, percebemos essa cegueira, e a atitude do pequeno corrupto, que é aquele está permanentemente dizendo 'tem alguém que deve estar encarregado desse problema' e tenta transferir sua responsabilidade pessoal para o sistema. Muito provavelmente, a equipe do metrô pensou dessa forma: 'alguém chamou a polícia'.

BBC Brasil - E o aspecto de gênero nesse caso? Afinal, Índio defendeu duas travestis de um ataque.

Christian Dunker - Foi uma violência homofóbica. A gente não conhece (os jovens) e não pode exercer juízos clínicos, mas vamos considerar uma situação de exibição de virilidade.

Isso costuma ser induzido por grupos, grupos grandes que se organizam para linchar alguém, e também pelos pequenos grupos, formados por dois, três. Neles, um incita ao outro a uma demonstração de virilidade que é, no fundo, exibicionista. 'Preciso ser mais violento, porque mostro que sou muito macho'.

Assim como, no início do processo, no ataque homofóbico, há aquele que olha para uma outra experiência de gênero e se sente agredido, aquilo toca seu senso de masculinidade. Isso regra o processo de virilidade, que se torna muito instável. A gente pensa que o travesti tem dificuldade com sua própria sexualidade, mas no fundo os que atacam essas pessoas é que têm necessidades muito mais salientes, incontidas.

BBC Brasil - Você disse que o ambulante teve uma ação heroica, mas ele pagou por isso. O caso não passa uma mensagem que, na nossa sociedade, quem age para impedir situações de injustiça é punido?

Christian Dunker - Exatamente. Ele, ao que parece, era uma pessoa pacata, querida, que conhecia as pessoas da região, inclusive os que foram primeiro agredidos pelos dois jovens.

O ato dele está regido por uma circunstância que chamamos de contingente. Ele não tinha que intervir, não tinha nenhuma lei, nada que o obrigasse a fazer aquilo. E, ao mesmo tempo, não tinha nenhuma circunstância que o impedisse de agir, como se fosse proibido ou indesejado. É esse espaço no qual a gente pode agir para além da lei, para além do que as pessoas esperam dos nossos papéis sociais funcionais.

Hoje, cada qual se restringe a fazer aquilo que se espera dele. O que Índio representa? Um outro tipo de ato, que tem a ver com uma ligação com as pessoas que passam por aquele lugar.

Índio não chama o responsável, não fala 'alguém tem que cuidar disso, vou ligar para a polícia'. Ele podia ter feito isso, mas vai pessoalmente. No fundo, é como se tivesse fazendo uma transgressão em relação ao nosso modo básico, muito covarde, de existir. Ele ultrapassou isso, e é o ato dos heróis. É aquilo que chamamos do verdadeiro ato ético, que está para além da lei instituída.

O Brasil está num impasse ético e político, porque a gente só consegue pensar em transformações baseadas na coação da lei. A gente acha que precisa de mais leis, mais polícia, mais punição, o que agora se voltou contra os dois rapazes. Isso por um lado é necessário, mas por outro vai escurecendo a força do ato ético, como foi o ato do Índio.

BBC Brasil - O que a forma como algumas pessoas reagiram ao caso, ameaçando os agressores, fala sobre as motivações do assassinato? Não é o mesmo tipo de violência?

Christian Dunker - Esse empuxo ao linchamento segue a mesma lógica dos dois garotos, a mesma lógica do grupo. Em grupo, me torno mais corajoso, começo a gritar, a enfrentar. Por quê? Porque a gente se vê numa posição de vantagem em relação aos dois (agressores).

A gente começa a nutrir pensamentos do tipo 'tomara que sejam estuprados na prisão', 'tomara que alguém faça com eles o que fizeram com o Índio'. É um tipo de uso violento da lei, é a lei de Talião: você foi violento, então espero sejam violentos com você também.

Isso, no fundo, é trair a memória do Índio, que respondeu numa outra lógica. Esses que estão falando 'vamos linchar' também estão jogando com a lógica do 'alguém tem que fazer isso'. Estão incitando a violência e no fundo acabam colaborando com esse ciclo.

BBC Brasil - Nesse contexto de banalização da violência, como se destaca o modo de agir do Índio, que, segundos as testemunhas, tentou conversar com os jovens e não agredi-los?

Christian Dunker - O verdadeiro ato de combate à violência foi o do Índio que, sozinho, em desvantagem, quis usar a palavra. É o que está faltando é o que a gente, mesmo num episódio como esse, não consegue valorizar. Qual é a "arma" que o Índio tinha? A palavra. Ele foi falar com as pessoas. Ele podia ter algum instrumento de ameaça, mas não o usou.

A gente desaprendeu a potência simbólica, mediadora, da palavra, porque é só lei contra lei, força contra força, e aí a violência vai se banalizando na mesma medida em que vai se silenciando.

Diante do violento, a gente não fala, não negocia mais com a palavra. Isso é uma característica de todos os sistemas de aceleração da violência: nas corporações, na polícia, dentro das comunidades. Em todos esses lugares, o que vai acontecer é uma cultura do silêncio: não se fala. E quando alguém rompe a lei do silêncio tem que pagar, como no caso do Índio.

BBC Brasil - Muita gente ficou surpresa com a falta de ação das pessoas que testemunharam o espancamento, já que o metrô é um espaço movimentado. Essa inércia tem a ver com a pressa das grandes cidades, com uma apatia crescente na sociedade, ou possui motivações instintivas, de proteção?

Christian Dunker - Isso é uma coisa que estudei no meu livro Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma: a demissão do Estado em relação ao espaço público. É um processo histórico que acontece a partir dos anos 1970, na ditadura militar, quando o Estado brasileiro percebe que não tem recursos para civilizar o país inteiro, com o fracasso da Transamazônica, e se vê impotente.

Então ele se demite de administrar uma série de áreas públicas: favelas, condomínios - que ficam em mãos de grupos privados -, prisões.
Eles se tornaram espaços anônimos, nos quais a gente não sente que aquilo é nosso, mas que pertence a um grupo. É um grupo que não sabemos quem é, que zela por aquele espaço sem que a gente os veja.

Isso faz com que um lugar como o metrô, que devia ser um espaço pelo qual todo mundo se sente um pouco responsável, se torne apenas uma zona de passagem. Nesse espaço, a regra é: tenho que ganhar velocidade. Vou usar um iPhone, vou me recolher numa espécie de bolha defensiva, para que nada me perturbe, para que não perca tempo.

Sendo um espaço intervalar, nada do que acontece ali me diz respeito, tanto que quem reagiu não era alguém que estava de passagem, era alguém que habitava aquele espaço, que o tinha como parte de sua comunidade.

O passante perdeu a capacidade de se sensibilizar com o outro, de mudar sua rota para fazer algo que esteja além do que se espera dele.

A apatia, o tédio e uma série de aspectos são congruentes com essa forma de vida. É uma vida que perdeu a possibilidade de fazer a experiência do tempo e a experiência do outro, como aquele que pensa diferente, que tem um sexo diferente, que tem uma classe diferente da minha.

BBC Brasil - Há uma nova geração que está reivindicando a ocupação do espaço público, e uma relação mais próxima com a cidade - e com os outros. Podemos acreditar que essa apatia tende a arrefecer no futuro?

Christian Dunker - Hoje há movimentos de uma nova geração, que tem menos de vinte anos, e é completamente avessa a tudo isso. Ela gosta de bicicleta, não quer comprar uma casa num condomínio, mas viajar, quer ocupar escolas, tem uma aversão completa do ódio como aspecto político e está inventando outras maneiras de lidar com a diferença.

O contraste que você tem entre a homofobia de um menino de 16 anos e de um jovem de 25 anos é muito grande. Porque quem tem hoje 16 anos teve contato com alguma coisa do tipo um coletivo feminista na escola. Isso é extremamente recente e importante.

Você chegou num ponto de maus-tratos da diferença que opções orgânicas estão surgindo. É uma geração que vai por no chinelo a geração pré-condomínio (as pessoas nascidas antes da explosão dos condomínios no Brasil).