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Para desarticular facções, é preciso endurecer isolamento de líderes, diz procurador de São Paulo

19/01/2017 10h03

O envio das Forças Armadas para fazer revistas em presídios e para operações de combate ao tráfico de drogas e armas na fronteira pode ajudar na crise do sistema penitenciário, mas não coibirá a atividade das facções criminosas, segundo o procurador de Justiça Criminal Márcio Sérgio Christino.

De acordo com ele, além dessas medidas, anunciadas nos últimos dias pelo governo federal, seria preciso isolar os líderes de facções criminosas de seus subordinados de forma eficiente e permanente - em um regime de cumprimento de pena diferente do que existe hoje.

Christino investiga uma dessas facções, o PCC (Primeiro Comando da Capital), desde o final da década de 1990, quando integrou o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) - órgão do Ministério Público de São Paulo que, ao lado de delegados de polícia e juízes, combateu o PCC em São Paulo desde os anos em que a facção começava a ficar conhecida.

Ele também é autor do livro Por dentro do crime: corrupção, tráfico, PCC (Editora Escrituras).

Segundo Christino, a atual crise nos presídios, fruto de um conflito iniciado no ano passado entre as facções PCC e Comando Vermelho, tem suas raízes na luta pelo controle das rotas internacionais de tráfico de cocaína para o Brasil. Ele defende que seria preciso mudar a Lei de Execução Penal e criar um regime de cumprimento de sentenças no qual detentos suspeitos de liderar facções fiquem efetivamente isolados.

Hoje esse isolamento acontece só por um período limitado de tempo, por decisão judicial, no polêmico RDD (Regime Disciplinar Diferenciado) - onde o preso fica separado dos demais, dos meios de comunicação e só tem direito a duas horas diárias de banho de sol.

Defensores do RDD dizem que ele dificulta que as lideranças criminosas articulem novos crimes. Já seus críticos afirmam que é inconstitucional, ineficiente e impossibilita a ressocialização dos presos.

Leia abaixo a entrevista de Christino à BBC Brasil:

BBC Brasil - O governo federal anunciou que as Forças Armadas vão fazer revistas nos presídios, vão buscar armas, celulares e túneis. Na sua opinião, essa medida ajuda a controlar a crise no sistema prisional durante a atual "guerra" entre o PCC, o CV e seus respectivos aliados?

Márcio Christino - O papel exato a ser seguido pelas Forças Armadas ainda não foi determinado. A rigor, a soma de esforços é sempre produtiva, mas o necessário antes de qualquer coisa é a retomada do espaço dentro dos presídios. Essa atividade de vistoria e eventual apreensão de objetos ajuda a dar uma garantia a mais. Sem dúvida é um acréscimo, mas não creio que isso se torne um elemento definitivo ou uma medida que vai atingir duramente as facções e impedir que elas realizem suas atividades.

BBC Brasil - O que é essa retomada de espaço dentro dos presídios?

Christino - O controle dentro dos presídios deveria ser total. A ideia de um presídio é a de que as pessoas que estão lá dentro estejam sob um controle rigoroso. Quando o preso, através de suas organizações, passa a influenciar esse cotidiano, passa a controlar a organização interna, o Estado perde o controle.

BBC Brasil - O governo federal disse que as Forças Armadas seriam usadas por sua capacidade de dissuasão, credibilidade e capacidade de serem mobilizadas e empregadas. O senhor acha que os Estados não teriam condições de fazer esse trabalho? E existe mesmo essa força de dissuasão?

Christino - O que se tem noticiado é que os soldados e as Forças Armadas não vão entrar em contato direto com os presos. Se eles não vão entrar em contato direto com o preso eu não sei a que tipo de dissuasão se está referindo. O elemento de dissuasão é justamente aquele que inibe a atividade à qual se está opondo.

Se você não vai inibir essa atividade você não tem elemento de dissuasão. O Exército e as Forças Armadas em geral têm uma capacidade extremamente robusta para executar qualquer tipo de ação. Não tenha dúvidas de que eles têm capacidade de impor suas operações em qualquer parte do território nacional, sob qualquer circunstância. Sob esse aspecto a ação das forças armadas é válida.

Agora, dentro do sistema prisional, para executar uma atividade e depois se retirar desse sistema, permitindo que a estrutura que existia lá dentro se mantenha da mesma maneira, bom, não sei se esse seria o modo mais eficiente de usar as Forças Armadas.

BBC Brasil - O governo também fala da separação dos presos por tipo de crime cometido. Isso é eficiente para combater facções como o PCC, por exemplo?

Christino - Existe uma ponderação a ser feita: a divisão de presos já é feita há muito tempo. Mas não adianta fazer a classificação dos presos e ter um lugar só para colocar todos eles e todos na mesma situação. Então você depende da estrutura do sistema penitenciário para fazer essa divisão. Se tiver estrutura e ela for eficiente, é claro, isso ajuda na questão penitenciária.

Agora, isso vai afetar a facção? Isso vai fazer a facção ficar mais fraca? É duvidoso. Você talvez consiga evitar atos mais graves, como esses que ocorreram ultimamente. Mas com certeza isso não vai ser um golpe que as facções sintam de maneira tão poderosa. Dentro do regime fechado você continuará tendo rebeliões e influência das facções. Convém lembrar que a ação dessas facções se dá tanto dentro dos presídios quanto fora. Então essa medida é uma medida aconselhável, ela é necessária, ela é boa para o sistema prisional. Mas sozinha ela não tem o efeito de inibir o crescimento da facção.

BBC Brasil - Mas ela não ajudaria a limitar o número de presos para servirem de "soldados" para a facção?

Christino - Aí você vai partir do conceito de que a facção só usa homicidas. A estrutura principal das facções é de tráfico e a pena de tráfico é relativamente pequena. E esses presos ficariam misturados com aqueles de crimes mais simples, para os quais teoricamente o tráfico se equipara. Então é difícil dizer se isso teria um efeito a curto e médio prazo. Eu não creio que essa seja uma solução para evitar o crescimento das facções.

BBC Brasil - Outra questão que vem sendo tratada pelo governo e pela Justiça é fazer mutirões judiciários para diminuir o número de presos provisórios e construir mais presídios, tudo para diminuir a superlotação carcerária. O senhor acha que isso é eficaz no combate às facções?

Christino - Não, isso é completamente ineficaz. Um exemplo está ocorrendo agora. Nós tivemos essas últimas rebeliões com mais de uma centena de mortos e em nenhum momento nenhuma reivindicação de caráter penitenciário foi feita. Quando você vê esses presídios à distância, principalmente no Rio Grande do Norte, você vê bandeiras com as siglas das respectivas facções. Mas em nenhuma delas você lê: "queremos nossos direitos", ou "queremos boas condições".

Podemos também observar como agem os presos de uma facção dessas no Rio Grande do Norte: eles recebem uma ordem, atacam um pavilhão, matam as pessoas que são de uma facção contrária e depois retornam para seus próprios pavilhões sem reivindicar nada.

A superlotação é um fenômeno grave, ela merece ser combatida. Essa é uma esfera onde o Estado precisa agir, não tenho dúvida nenhuma disso. Agora dizer que existe uma relação direta entre a superlotação e a ação das facções, eu duvido muito.

BBC Brasil - Após o PCC surgir na década de 1990, como ele se espalhou pelo Brasil e como ele ficou tão forte em outros Estados?

Christino - O PCC seguiu a rota do tráfico. Como ele se concentrou nessa atividade criminosa, foi se espalhando em paralelo com as rotas do tráfico, principalmente do sul e sudeste em direção ao nordeste.

Ele não encontrava oposição de outros grupos criminosos, dado a natureza e o tamanho da organização que ele tinha. O único oponente seria o CV (Comando Vermelho), com quem ele mantinha boas relações. Então ele simplesmente foi crescendo e ocupando um espaço que estava vazio naquele momento.

BBC Brasil - A atual "guerra" entre o PCC, o CV e seus aliados é então um conflito por rotas de tráfico?

Christino - O sistema de distribuição de drogas vinha da Bolívia para o Paraguai e entrava no Brasil, seguindo então do sul e sudeste em direção ao norte e nordeste - por causa de estradas, por causa da logística. Essa logística passava necessariamente pela divisa entre o Paraguai e o Brasil.

A exploração dessas rotas era feita primeiramente pelo Primeiro Comando da Capital e pelo Comando Vermelho. Ocorre que em junho último, o traficante que dominava uma grande parte dessa fronteira, Jorge Rafaat, foi assassinado e o PCC tomou essas rotas e se tornou o senhor das rotas do tráfico que vêm da Bolívia, passam pelo Paraguai e entram pelo sul e sudeste.

O Comando Vermelho, que também explorava essa rota, se viu em situação de desvantagem, porque teria que comprar (cocaína) do PCC. Ele perdeu a capacidade de suprir suas próprias necessidades através dessa rota e passou a usar a rota do norte: do Peru, vindo pelo rio Solimões, pelo nordeste, até o Rio de Janeiro - que é uma rota mais cara. Essa é a razão do conflito.

BBC Brasil - O presidente Michel Temer anunciou na quarta-feira que as operações conjuntas das Forças Armadas que mobilizavam dezenas de milhares de militares nas fronteiras por períodos limitados de tempo para combater crimes fronteiriços vão passar a acontecer de forma permanente. Uma operação permanente de militares nas fronteiras ajuda a interromper esse fluxo nas rotas de tráfico de drogas que alimentam as facções?

Christino - Ajuda sim, mas vou fazer uma observação: você tem entre o México e os Estados Unidos uma fronteira relativamente pequena. Os Estados Unidos são o país mais rico do mundo e têm a tecnologia mais moderna. Eles usam todos os recursos para controlar essa fronteira e não conseguem com um grau de eficiência de 100%.

É óbvio que se eles não tivessem esse controle a droga passaria de uma forma dez vezes maior. Então o controle é necessário, mas ele não é suficiente para evitar que a droga passe na fronteira entre México e Estados Unidos. Imagine no Brasil, onde há uma fronteira seca enorme. Essa atividade vai ajudar? Sem dúvida que vai ajudar, e ela é necessária.

Agora, isso não inibe a necessidade do combate aqui e nem podemos pensar que o simples bloqueio, a tentativa de bloqueio de uma fronteira da natureza do Brasil, vai ser suficiente a ponto de sufocar as facções. Vai prejudicá-las? Sim. Mas eu não acredito que elas sejam sufocadas e inibidas unicamente com esse tipo de ação.

BBC Brasil - O senhor esteve entre as primeiras autoridades a investigar e combater o PCC em São Paulo, mas agora chegamos a um momento em que autoridades em praticamente todos os Estados do Brasil estão lidando com esse problema. Apesar de continuarem ocorrendo operações contra a facção, o senhor acha que algo deixou de ser feito ou deveria ter sido feito de forma diferente para evitar a situação a que se chegou agora?

Christino - É óbvio que se o Estado como um todo fosse 100% eficiente, essa situação não deveria existir. Porém, várias operações de muito sucesso foram feitas contra o Primeiro Comando da Capital aqui em São Paulo. A operação Ethos (que desbaratou em 2016 uma estrutura de advogados que trabalhavam para a facção e resultou no envio das lideranças do PCC para um período de isolamento em presídio federal), a prisão do traficante conhecido como Capuava (Welinton Xavier dos Santos, preso em 2015 com 1,6 tonelada de cocaína pura), que centralizava em São Paulo a recepção da cocaína que vinha do Paraguai - uma prisão importantíssima que inibiu e desestruturou a rede de tráfico por um tempo significativo, até que eles conseguissem novamente operacionalizar uma nova distribuição.

Uma outra operação desestabilizou todo o núcleo de distribuição de drogas no centro da cidade, que atingiu o prédio do Cine Marrocos (em 2016), também foi uma ação brilhantemente executada. Então você tem ações que foram muito eficientes em São Paulo principalmente.

Agora, talvez você possa levar essas ações para a esfera federal e replicá-las em todos os Estados. Agir de uma maneira coordenada entre os vários núcleos de inteligência (uma das propostas do Plano Nacional de Segurança) é uma decisão acertada, e talvez venha a trazer um resultado mais eficiente, um resultado que a longo prazo tenha um efeito melhor.

Eu quero dizer também que outra forma de combater essas facções é reformar a Lei de Execução Penal (que rege direitos, deveres e a forma como os presos cumprem suas sentenças). Seria preciso criar um regime de isolamento realmente eficiente para as lideranças das facções. Não o RDD (Regime Disciplinar Diferenciado, no qual criminosos presos, que integram facções ou cometem crimes dentro da prisão, são enviados para penitenciárias federais de segurança máxima, onde ficam isolados de outros presos e meios de comunicação por um período limitado de tempo).

Hoje o RDD não é um regime de cumprimento de pena, ele é uma penalidade temporária imposta a parte dos detentos. Ele deveria ser transformado em um regime específico de cumprimento de pena.

BBC Brasil - Críticos do RDD argumentam que ele é uma medida inconstitucional que não contribuiria para a ressocialização dos presos. O que o senhor acha dessas críticas?

Christino - O RDD não fere a Constituição, e ele é proporcional à periculosidade dos presos. Não é uma medida que visa o mero isolamento do detento, o objetivo é evitar que ele se articule para praticar mais crimes.

Nesses casos onde o agente (preso) atua mesmo na restrição normal, ele precisa de um isolamento maior para que a sociedade se proteja.

BBC Brasil - A falta de contato dos subordinados com os líderes poderia desarticular as facções?

Christino - Sim, porque quando você isola os lideres eles perdem capacidade de articulação.

BBC Brasil - E a ideia genérica de que quando você anula um líder surge outro no mesmo momento para ocupar seu lugar? Isso é real?

Christino - Isso não é real porque por mais que você tenha uma substituição de liderança, você não tem a mesma força nesses novos líderes. Eu vou dar um exemplo: no futebol, se você tirar um jogador como o Pelé você poder até colocar um outro, mas o cara não vai jogar igual. Da mesma forma, na facção você tem líderes que não são passíveis de serem substituídos imediatamente, porque eles exercem essa liderança de uma maneira muito marcante.

Então você não tem uma substituição automática, muito pelo contrário, em muitas vezes você tem o conflito entre vários que pretendem essa liderança. Então não é assim, não se dá dessa maneira.