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'Trouxeram a cabeça do meu irmão em cima de uma bandeja': o drama das famílias das vítimas do massacre de Manaus

02/02/2017 07h07

J. nasceu em um bairro pobre de Manaus (AM). Tinha mais de 20 irmãos. Quando criança, roubava comida para os mais novos num mercado. Adulto, foi para a prisão. "Depois foi preso e solto várias vezes", conta a família. "Era meio violento."

Em 1º de janeiro, J. foi decapitado e teve as vísceras arrancadas por presos da facção FDN (Família do Norte), que controla o tráfico de drogas na região.

Outros 55 presos do Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj) tiveram o mesmo fim. Mais nove morreram em presídios vizinhos.

Exatamente um mês depois da maior matança registrada em um presídio brasileiro desde o massacre do Carandiru, em 1992, a família de J. recebeu a BBC Brasil em casa. O encontro revela o desamparo dos parentes em luto e uma sensação coletiva de impotência - tanto sobre violência dos presos, quanto a falência do Estado em conter rebeliões.

Todos os parentes temem represálias e pediram anonimato durante as entrevistas.

Bandeja

Um mês depois da tragédia há corpos ainda não reconhecidos no Instituto Médico Legal de Manaus.

A uma das irmãs de J. coube a difícil tarefa de reconhecer o corpo do parente, liberado dois dias depois do massacre. "Trouxeram a cabeça do meu irmão em cima de uma bandeja, com um tiro." Outras partes do cadáver foram encontradas dias depois. "Todo furado. A cabeça do lado do ombro. Todo roxo. Como se tivessem batido de pau, ferro. Muito feio."

"Vi numa reportagem uma autoridade dizer que lá (no presídio) não tinha nenhum santo", lembra o avô, com os olhos úmidos de tristeza e opacos pela catarata em estágio avançado.

"Ah... se tivesse no mundo um único santo. E se todos nós fôssemos iguais."

O idoso de 90 anos, delegado aposentado, fazia referência a uma frase dita pelo governador do Amazonas, José Melo (Pros), no dia seguinte à tragédia - e horas antes da neta encarar o rosto dilacerado na bandeja.

Ele repete a frase do político quatro vezes, num ciclo que parece não ter fim, durante a conversa que durou pouco mais de uma hora, enquanto escuta a garoa fina do início da noite de uma terça-feira abafada.

"Olha, sou linha dura. Sou do tempo da ditadura. Acho que quem deve tem que pagar, tem que ser preso e viver como preso", diz o senhor, com voz firme.

"Mas não como um porco", faz questão de completar.

Pão

Na pequena sala colorida, cercada de fotos antigas de família, a reportagem pergunta o que teria levado J. ao crime.

"Eu era novinha, éramos muitos irmãos e passávamos muita necessidade. Talvez tenha sido isso que o motivou a fazer o que fazia...", diz a jovem ao lado do avô.

"Roubava comida", ela lembra. "Pão."

J. estava preso no Compaj acusado de agressão como reincidente. Nunca completou o ensino fundamental, nem tinha ligação, segundo a família, com facções criminosas. Dentro do presídio, entretanto, a aproximação foi inevitável.

"Há uns seis meses, ele denunciou que um motim iria acontecer para os policiais", conta a irmã. "Sabia que ia morrer e denunciou. Foi considerado 'cagueta'. O motim acabou não acontecendo e os agentes mandaram ele para o 'seguro'."

Seguro é como se chamam as alas isoladas dos presídios em todo o país. Para lá vão os jurados de morte ou membros de facções rivais em desvantagem numérica.

No seguro, onde J. morreu, estavam membros do PCC (Primeiro Comando da Capital), que disputa a rota amazônica do tráfico com a FDN.

A carnificina, segundo o governo do Estado e o Ministério Público, foi a maneira bárbara que a FDN encontrou para demarcar seu território e intimidar os rivais.

Medo

Na terça-feira, 30 dias apos o massacre, o Exército promoveu uma varredura na cadeia pública Raimundo Vidal Pessoa, que abriga sobreviventes da matança no Compaj.

Sem camisa, sentados sob chuva forte, os presos aguardavam no pátio enquanto soldados, munidos de detectores de minas terrestres, encontraram 23 celulares e 42 armas brancas escondidos no reboco das paredes das celas.

"A operação foi um sucesso. Usamos o que há de mais moderno. Agora cabe ao governo do Estado continuar este trabalho", comemorou o ministro da Justiça, Raul Jungmann, que acompanhou parte da varredura.

À imprensa, no imponente Comando Militar da Amazônia, Jungmann anunciou uma parceria com o governo colombiano para identificar rotas de tráfico na região da fronteira. Nenhuma autoridade citou a FDN, responsável pelo massacre na prisão.

Nos dias de visita, quando encontrava a família, J. falava sempre do medo que sentia da Família do Norte.

"Ele falava que estavam ameaçando o pessoal do seguro. Que passavam lá na frente e diziam que iam matar. Eles faziam o gesto de cortar a cabeça", diz a irmã. "E ele não podia fazer nada."

A família conta que avisou os agentes penitenciários. Não houve reação, e, semanas depois, a ameaça se concretizou.

Jornais e revistas reproduziram imagens da matança, que já circulavam por aplicativos de mensagens e chegaram a ser vendidas em DVDs por camelôs. Foi assim que, pelo celular, em choque, familiares reconheceram uma das pernas de J, marcada por uma velha tatuagem, descolada do tronco em um corredor úmido.

No mesmo telefone celular, a irmã mostra uma das últimas fotos de J. em liberdade, sorrindo sentado em uma moto.

O avô se emociona. Diz que a tragédia poderia ter sido evitada se os agentes carcerários tivessem controle sobre os presídios e conseguissem conter a violência dos presos.

O idoso, entretanto, mostra resignação.

"Deus há de perdoar aqueles algozes dele. E para eles dar o descanso. E para as autoridades, vai o meu lembrete: que procurem tratar com mais atenção aqueles menos favorecidos pela sorte."

Retaliação

Duas semanas depois da tragédia no Amazonas, 26 pessoas foram mortas em um novo motim no presídio de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte.

A polícia investiga uma possível retaliação de membros do PCC às mortes registradas nas cadeias de Manaus.

Em resposta à matança, o governo federal anunciou um Plano Nacional de Segurança, com a construção de novos presídios e a criação de mais de 30 mil vagas.

A iniciativa gera controvérsia: meses antes do anúncio, o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, afirmou que o Brasil "prende muito e prende mal", sugerindo que penas alternativas poderiam ajudar a resolver o problema das prisões superlotadas.

Em retaliação ao plano do governo, sete membros do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) pediram demissão coletiva. Em carta, eles acusaram o governo de autoritarismo e falta de diálogo com a sociedade.

A ameaça de novos motins continua. Enquanto isso, a família de J. tenta se reconstruir. "Dei a ele um enterro digno", diz o avô. "Paguei uma funerária e reuni todos os irmãos. O J. foi embora. É uma pena porque não vai ser o último."