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Está na hora de mudar a estrutura da polícia brasileira?

Policiais civis participam de assembleia no Espírito Santo - Gilson Borba/UOL
Policiais civis participam de assembleia no Espírito Santo Imagem: Gilson Borba/UOL

11/02/2017 07h37

A greve de policiais militares que deixou em pânico moradores do Espírito Santo - além de contabilizar mais de 120 mortes, segundo a Associação de Oficiais Militares - reacendeu uma discussão sobre a segurança pública que se arrasta há anos: a estrutura da polícia no Brasil.

Enquanto alguns defendem a desmilitarização, alegando que a herança militar torna a PM mais violenta, menos "humana" e pouco eficaz, outros discordam e defendem que é justamente a estética e a conduta militar que trazem a disciplina que os policiais precisam para proteger o cidadão no dia a dia. Apesar das divergências, há um ponto em comum entre os dois lados: ambos concordam que o sistema atual é ineficiente e precisa ser rediscutido.

"Não tem a solução pronta, mas algumas coisas são evidentes que não tem funcionado", afirmou Samira Bueno, diretora executiva do Fórum Nacional de Segurança Pública, à BBC Brasil.

Solução e investigação de crimes

O que "não está funcionando", segundo a diretora, é justamente a divisão característica da polícia no Brasil, que coloca a civil e a militar para atuarem no mesmo crime - só que em etapas diferentes.

Atualmente, a dinâmica de proteção do cidadão funciona da seguinte forma: quando um crime acontece, a polícia militar é acionada para o local, onde faz a primeira perícia e conduz as vítimas à delegacia de polícia civil, que é onde o boletim de ocorrência é feito. É de lá que a investigação seguirá.

"Se esses profissionais não estão integrados, eles não necessariamente vão passar todas as informações", explicou Bueno.

"As primeiras informações do local do crime são fundamentais para solucioná-lo. E aí quando não há essa integração, você tem uma taxa de esclarecimento de homicídios, por exemplo, que é baixíssima no Brasil: dos 60 mil que acontecem por ano, só 8% são solucionados."

Dessa forma, as duas polícias - que têm formação e orientação completamente diferentes - trabalham no mesmo crime. Segundo especialistas, essa prática gera ineficiência na solução das ações criminosas, tanto por parte da PM, como da polícia civil.

"Nada impede de ter mais de uma polícia, só que todas deveriam ser de ciclo completo. Essa interrupção no ciclo do crime onde uma faz uma parte, e outra faz outra, se mostrou ineficiente. Um vai por a culpa no outro sobre o não esclarecimento de um caso. Quando tem uma polícia só fazendo o ciclo completo, não tem em quem jogar a culpa", disse à BBC o coronel Alvaro Batista Camilo, ex-comandante-geral da Polícia Militar de São Paulo e deputado estadual.

Na lógica da estrutura atual de polícia vigente no Brasil, policiais civis - que têm formação de bacharéis em Direito - e militares - que são formados nas Academias Militares ou no Curso de Formação de Soldados - atuam no mesmo território e têm seus trabalhos complementados um pelo outro.

A polícia militar é a que anda de farda e é chamada "ostensiva e preventiva". Já a civil é a que tem como principal objetivo investigar os crimes e encaminhá-los ao Judiciário. Mas, para se ter eficiência no combate ao crime, as duas precisam uma da outra - e essa dependência nem sempre é fácil, já que, segundo alguns especialistas, as duas muitas vezes se veem como "rivais".

"Os nossos índices de criminalidade mostram como é ineficiente o sistema. As polícias não trabalham juntas, não gostam de trabalhar juntas e não querem trabalhar juntas. Elas competem entre si", observou a diretora do Fórum de Segurança Pública.

"A verdade é que cada um está muito preocupado com a defesa dos próprios corporativismos e acabam esquecendo que eles precisam trabalhar de maneira integrada pela população."

Desmilitarização?

Pelo código disciplinar que a rege, a polícia militar não tem permissão para fazer greve e pode ser punida por paralisações. Por isso, a estratégia adotada no Espírito Santo foi a de os familiares impedirem os policiais de saírem dos quartéis. Com o agravamento da situação no estado, uma questão que vem e vai conforme as crises da polícia no país voltou à tona: a solução seria desmilitarizar?

As principais críticas dos que são favoráveis à desmilitarização dizem respeito à formação dos soldados, ao Tribunal de Justiça Militar e ao regimento disciplinar rígido aos quais os PMs estão submetidos.

"A formação do policial militar faz com que ele se veja como "diferente". Porque ele faz parte de uma organização toda certinha, enquanto a sociedade é toda desorganizada", afirmou Guaracy Mingardi, pesquisador em segurança pública e ex-secretário de segurança de Guarulhos.

"A formação leva a isso, principalmente do oficial. Ela transforma o sujeito e muda a cabeça dele, e esse é um dos problemas da polícia militar."

A disciplina rígida que rege os militares - e que, para eles, é essencial para a execução do trabalho - também é criticada por Mingardi. "O sistema está rachando. O que vem acontecendo nos últimos anos é que ser militar não impede mais coisas como as greves. Nos últimos anos, têm acontecido muitas. Eles dizem que essa disciplina militar é boa para 'segurar' o soldado, mas não segura mais. Olha o que está acontecendo no Espírito Santo!"

Código disciplinar e tribunal próprio

Uma característica que diferencia a polícia militar é o fato de ela ter um código disciplinar próprio, que inclui punições que alguns especialistas julgam "retrógradas e sem sentido".

"O código disciplinar na maioria das vezes é da época da ditadura e contém punições de situações como 'porque não fez a barba', 'porque não cedeu banco do ônibus para um oficial superior'... Faz sentido isso? É muito baseado no Exército", questionou Samira Bueno.

Por outro lado, coronéis garantem que é exatamente esse código de conduta o responsável por garantir a ordem e a eficiência dos militares.

"As pessoas têm que entender que militarismo não é ditadura. É só a estética militar, sinais de respeito, disciplina e hierarquia forte, baseado na militar", disse coronel Camilo.

"A sociedade dá a condição de matar alguém, então é uma instituição que precisa ser controlada, com muita disciplina e hierarquia, para ele saber a missão que tem."

Além do código disciplinar próprio, os militares também têm um tribunal exclusivo para julgar crimes cometidos por membros da corporação - a chamada Justiça Militar. Apenas crimes de homicídio cometidos por eles vão para a Justiça comum.

Para Mingardi, isso reforça ainda mais a ideia de que os militares "não fazem parte da sociedade" e favorece um abrandamento nas condenações. "Tem que acabar com a Justiça Militar. Não tem que ter um tribunal específico para eles, crimes precisam ser julgados da mesma maneira para todos. Tem que tirar o foco de que eles são diferentes do resto. Condenar oficial é muito difícil."

No entanto, há quem sustente que o tribunal militar é mais rigoroso do que qualquer vara comum da Justiça. "A partir do momento que homicídio passou a ser julgado para Justiça comum, condenou-se bem menos. Isso é um ranço ideológico que existe. A Justiça comum é mais benevolente que a militar", disse coronel Camilo.

Solução?

Apesar de não haver unanimidade sobre qual seria o melhor sistema de policiamento para o país, os especialistas ouvidos pela BBC Brasil acreditam que é imprescindível levar o debate sobre segurança pública ao Congresso - especialmente diante da situação atual.

Qualquer mudança na estrutura da polícia teria que passar pelo Congresso, já que as definições de polícia civil e militar são determinadas pela Constituição.

"Os governadores não vão conseguir fazer essas mudanças, porque elas incomodam. E eles são reféns, então tem que ser no âmbito nacional", afirmou Bueno.

"Lá (no Espírito Santo) deixaram chegar numa situação insustentável. Se não há policial, não há ordem, e sem ordem não há democracia. E o que aconteceu lá pode servir de mau exemplo para outros Estados", afirmou Camilo. "O governo tem que olhar para a segurança pública com o mesmo carinho que olha para as questões econômicas."