A imigrante de 90 anos que está fazendo renascer o cultivo de chá no Vale do Ribeira
Aos 90 anos, dona Elizabete Ume Shimada gosta de ver o amanhecer "na roça". Por isso, acorda antes do sol raiar e já vai para a plantação de chás, onde prepara as mudas e ainda colhe manualmente as folhas para uma produção de pequena escala, mas que vem promovendo a retomada do plantio em Registro, no interior de São Paulo - cidade que já foi conhecida como a "capital do chá" no Brasil.
Em 2014, depois de quatro anos de intervalo sem ter para quem vender o chá preto produzido há duas gerações na sua família, dona Shimada - ao lado dos seis filhos, com 13 netos e seis bisnetos - recuperou a plantação de chá então tomada por pragas, investiu em uma produção independente e lançou, em 2015, o Obaatian - O Chá da Vovó.
A produção de apenas 20 quilos mensais é pequena, mas promissora, e já ajudou a incentivar outros produtores da região do Vale do Ribeira, onde fica Registro.
Desde que voltou a plantar o chá, que ocupa um quarto dos dez hectares do Sítio Shimada, ela viu ressurgir o interesse pelo produto na região, além de ter desfilado, neste ano, como destaque de um bloco de Carnaval cujo samba enredo era justamente a relação da cidade - que tem uma folha de chá desenhada na bandeira - com o produto trazido pelos japoneses.
Carismática, dona Elizabete recebeu a BBC Brasil na casa de um dos seus filhos no bairro da Aclimação, em São Paulo. Apesar de não se lembrar de onde veio a semente que iniciou a plantação da família há 85 anos, tem um sonho grande: quer que o chá da Elizabete chegue à "xará" inglesa.
"Eu queria muito que a rainha Elizabeth tomasse o chá da Elizabete, de Registro", disse ela.
Se o sonho é chegar à Inglaterra, pelo menos no Japão o chá do Sítio Shimada já aterrissou. A história do chá da "Obaatian" ("vovó", em japonês) chamou a atenção de empresários do país, que a convidaram, em 2015, para contar como foi o processo de recuperação da plantação em um evento internacional sobre o produto, o Japanese Black Tea Festival.
"Muita gente chorou, sabe? Ficaram emocionados com a história do meu chá", conta ela, orgulhosa.
Tristeza
Dona Shimada também já chorou por causa do chá. A recuperação da plantação do Sítio Shimada veio depois de um período de baixa nas vendas e de pouco interesse pelo produto - uma situação bem diferente das décadas de 1980 e 1990, conhecida como a época de ouro do chá no Vale do Ribeira. Nesse período, a região tinha pelo menos 40 fábricas e mais de 1,5 mil produtores.
Hoje, no entanto, resta apenas uma grande fábrica - a Amaya, que, até 2011, comprava toda a colheita do Sítio Shimada. Poucos produtores conseguiram prosseguir com as plantações e muitos diversificaram, substituindo o chá por pupunha e banana.
A redução na produção dos chazais é atribuída à concorrência com o mercado internacional - como 90% era exportado para países como Inglaterra e Canadá, a cotação do dólar afetava diretamente o preço do produto. Além disso, países africanos começaram a oferecer valores mais competitivos, o que intensificou a queda na produção brasileira.
O Sítio Shimada sobreviveu graças ao pioneirismo de dona Elizabete. Em 1991, quando o interesse pelo chá começou a diminuir, a lichia ainda era uma frutinha pouco conhecida dos brasileiros.
Mesmo assim, ela comprou 600 pés, que demoraram seis anos para dar frutos - mas, quando finalmente brotaram, em 1997, a família conseguiu manter a produção nas terras, sempre dividindo espaço com o chá preto.
Mas, em 2011, a fábrica Amaya parou de comprar o chá dos Shimada. Foram três anos de interrupção - e tristeza - na produção no sítio familiar.
"Eles disseram que não iriam mais comprar nosso chá. Cheguei em casa muito triste. Aí passou 2011, 2012, o chá cada vez mais feio. Abracei o pé do chá e chorei, né? O que eu ia fazer? O chá estava praticamente coberto, o cipó cobriu os pés."
Nesse período, dona Shimada costurou, plantou bambu, manteve o plantio da lichia e nunca se acostumou a ver a produção de chá interrompida. "Eu olhava para os pés de chás todos tomados por cipó e ficava triste, mas o que eu poderia fazer, né?".
'Rastejando como jacaré'
Mas, em 2014, um amigo a avisou de duas máquinas de enrolamento de folhas de chá - essenciais para a produção - que estavam à venda em um ferro velho.
"Eu fui lá olhar, e elas estavam podres, muito velhas. Mas criei coragem e comprei. Depois de seis meses, ficaram como novas, como ouro, uma beleza, fiquei muito contente", conta ela.
Nesse período, ela juntou a família e três estudantes voluntários de escolas da região e começou a plantar o chá, como tinha aprendido com o pai.
"A plantação estava feia, precisava tirar o cipó, e a gente limpou se rastejando que nem jacaré. Tinha tanto mato que matei duas cobras venenosas na limpeza. Depois, a gente plantou e começou a catar os brotos, bem catadinho, um a um. A gente caprichou nos brotinhos", contou.
A inauguração da fábrica do Obaatian foi no dia 1º de novembro de 2014 - nessa época, dona Shimada participava da colheita mais ativamente. Atualmente, são cinco funcionários envolvidos em toda produção.
Mais recentemente, uma dor constante na perna não a permite participar da colheita como fazia antes, mas dona Ume continua indo "para a roça" todos os dias.
"Eu sou mulher do mato. Não consigo mais participar tanto da colheita, então, tô fazendo mudas de chá, plantei 17 mil mudas e vou começar a vender, porque tá bonitinha. Eu trato como um neném".
Demanda e desafios
Depois do desafio inicial de recuperar a plantação, a família Shimada tem outra preocupação: atender a demanda cada vez mais crescente pelo produto e manter as características artesanais da produção que garantem a qualidade do chá da Obaatian.
"Estamos acostumados com modelos de negócio de crescimento rápido, e a gente quer ver um crescimento sustentável, queremos crescer mantendo a qualidade e o caráter. Não queremos que seja um modismo, mas que se crie o hábito sólido de tomar chá", diz Yuki Himazaki, neto e "braço direito" de dona Shimada, responsável pelo design, logomarca e embalagem do produto e que atua como administrador, assessor de imprensa e empresário da avó.
Segundo ele, com a estrutura atual, a fábrica é capaz de passar de 20 para 60 quilos mensais de chá. E já há pedidos para isso.
"A gente sente que está aumentando o movimento na cidade, inclusive no turismo agrícola, e, graças ao chá, se intensificou ainda mais. Isso anima os agricultores da região. Mas a gente não esta satisfeito, queremos mais: tem muito chazal abandonado. Gostaríamos de ver tudo recuperado", afirma.
O desejo do neto tem uma clara influência da avó, que se ressente com a falta de interesse pela agricultura.
"Cortar mato é uma tristeza, então, em vez de cortar tem que plantar. Um dos meus netos se formou na escola, e vi muita gente ali estudando, vai tudo pra faculdade. Tenho certeza que não tem ninguém que quer cuidar da terra, ir para roça. Ninguém quer deixar o escritório. Eu falo: vocês têm que estudar, mas não podem esquecer a lavoura, porque a gente vive da lavoura, têm que mexer no barro, senão a gente vai comer o que, né?", afirma.
"As autoridades que estão com gravata, que estudaram e tudo, por que não sabem viver? Estão acabando com o Brasil. Em vez de cuidar da terra, estão cortando", conclui, segurando uma das milhares de mudinhas de chá plantadas por ela.
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