'Sociedade nos julga e culpa', diz sobrevivente de estupro da Guerra do Kosovo
"Nunca contei para ninguém. Todo 21 de abril, eu me sentia profundamente triste". M.P.* precisou de quase duas décadas para denunciar à polícia o estupro que sofreu por forças paramilitares durante a Guerra do Kosovo (1998-1999). O ímpeto veio em 21 de abril do ano passado, 17 anos após o crime.
"Fiquei tanto tempo calada que o alívio foi muito grande. Não podia mais carregar as marcas da guerra sozinha", disse à BBC Brasil, em Pristina, capital do Kosovo.
A kosovar albanesa vive em uma vila distante no leste do país e inventou uma desculpa para sair de casa e conversar com nossa reportagem sem que o marido e os cinco filhos soubessem. Ela ainda não contou à família seu mais doloroso segredo.
Era 1999, um dia depois do massacre que deixou 20 mortos no vilarejo onde M.P., na época com 30 anos, estava temporariamente com os filhos no leste do Kosovo. Ela alimentava os animais quando dois paramilitares - um sérvio e um russo - ameaçaram silenciá-la para sempre, caso gritasse por socorro.
"Resisti, e começaram a me bater. Eles me espancaram até eu perder a consciência. Não sei por quanto tempo fiquei desacordada", relembra.
"Eles voltaram a me estuprar, mas receberam uma ligação e mandaram eu me vestir. Os dois queriam me levar para um cativeiro, mas implorei para ficar com meus cinco filhos. Eles disseram que fariam filhos comigo."
M.P. não hesitou e fugiu. "O soldado sérvio tentou atirar enquanto eu corria, mas o russo disse para ele parar", conta a mulher, que é uma das 20 mil kosovares albanesas violadas sexualmente durante o conflito na então província da Sérvia.
Ao ouvir o carro dos paramilitares partir, M.P. caminhou para casa. A primeira coisa que fez ao entrar foi abraçar as crianças. "Não posso descrever quão terríveis eles [os paramilitares] eram, me senti muito suja. Tomei banho e depois só queria ficar com meus filhos. Não precisava de nenhuma outra coisa, comer ou beber, só ficar perto deles e tentar esquecer o que aconteceu, mas tudo aquilo ficou na minha memória", diz.
O conflito entre separatistas de origem albanesa e o governo da ex-Iugoslávia, liderado pelo então presidente nacionalista Slobodan Milosevic, da Sérvia, só terminou após 79 dias de bombardeios da Otan, sem a autorização do Conselho de Segurança da ONU. O saldo foi de mais de 10 mil mortos e desaparecidos.
Kosovo, com 90% da população de origem albanesa, declarou independência unilateralmente em 2008 e obteve reconhecimento de 113 países, segundo o Ministério do Exterior do país. No entanto, Sérvia e Brasil não estão na lista.
Assim como os mortos, as mulheres violentadas durante a guerra também ficaram esquecidas. Nenhum esforço foi feito para punir os responsáveis. Sem apoio e vivendo numa sociedade patriarcal e conservadora, as sobreviventes das atrocidades da guerra ainda guardam segredo por medo de perderem os maridos, serem rejeitadas pela família ou demitidas do emprego.
"É um grande tabu", diz Flora Macula, chefe da ONU Mulheres no Kosovo. "Não temos muitas informações sobre as vítimas. Muitas negam o estupro por toda a vida."
Reparações
Quase duas décadas após a guerra, o governo do Kosovo começa a tomar medidas para dar apoio às sobreviventes. Uma comissão especial que envolve ONGs e a ONU foi estabelecida neste ano para identificar as mulheres, reconhecê-las como vítimas e inserí-las num programa de pensão estatal. Estupros em massa em situações de conflito são considerados crimes de guerra desde 2008 pelo Conselho de Segurança da ONU.
"Nenhuma ajuda financeira vai compensar esse sofrimento, mas é preciso", disse à BBC Brasil a ministra da Justiça do Kosovo, Dhurata Hoxha. "Elas são até hoje marginalizadas, não têm trabalho. Pretendemos trazer justiça para essas mulheres."
Não há nenhum dado oficial sobre o número de kosovares albanesas que foram estupradas durante a guerra. A estimativa de 20 mil vítimas é da Anistia Internacional. Homens também foram submetidos a tortura sexual.
Malcolm Simmons, chefe dos juízes da EULEX, a missão executiva da União Europeia no Kosovo, diz ser extremamente difícil identificar e responsabilizar os autores devido à inconsistência dos relatos das vítimas e o longo período de tempo que se passou desde os crimes. "Crimes de guerra contra mulheres nunca foram levados a sério por promotores e juízes", critica.
Apenas dois inquéritos de violência sexual envolvendo soldados sérvios durante a guerra foram concluídos. Segundo Kerry Moyes, assessora jurídica da Corte Suprema do Kosovo e membro da EULEX, os estupros não são investigados de forma apropriada. "Existe uma negação do problema, é como se nunca tivesse acontecido", diz.
M.P. não tem esperança de que os dois paramilitares sejam condenados. Ela diz que, em pesadelos, sempre os vê com máscaras, em uma tentativa de esquecer a fisionomia dos agressores.
"Todas nós sobreviventes de violência sexual durante a Guerra do Kosovo fomos deixadas de lado. Com a criação da comissão, esperamos ser beneficiadas. Sei que muitas mulheres já devem ter morrido esperando para contar suas histórias e serem reconhecidas. E nunca tiveram a chance", lamenta.
'Nunca mais tive vida'
A dependência financeira dos maridos e o estigma que sofrem na sociedade são os principais motivos que mantêm as sobreviventes caladas.
De acordo com a Fundação da Sociedade Civil do Kosovo (KCSF), apenas 31% das mulheres estão ativas no mercado de trabalho formal, com uma média salarial de 300 euros (R$ 1.013) por mês. Muitas só concluem o ensino básico e são submetidas a casamentos prematuros.
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Igballe Rogova, diretora da ONG Kosovo Women's Network, que reúne organizações feministas kosovares albanesas e sérvias, destaca que a maioria das lideranças do país "pensa que mulheres não são nada".
"Queremos que essas mulheres saibam que não estão sozinhas", disse segurando um cartaz com a mensagem "Parem com a linguagem sexista", durante a Marcha das Mulheres em Pristina. "As jovens do Kosovo são minha esperança para combater o sistema patriarcal. Os líderes pensam como há 20 anos, mas as pessoas querem seguir em frente."
M.P. ainda não conseguiu dar o principal passo para se libertar do fantasma da guerra. "Se eu pudesse contar para o meu marido me sentiria muito amparada, mas não posso, porque sei que ele não vai aceitar", conta. Ela diz que a tortura física e psicológica do estupro continua. Desde aquele 21 de abril, ela não conseguiu mais ter relações sexuais.
"Perdi a intimidade com meu marido. Também não quero contar para os meus filhos. Eles ficarão muito tristes em saber que eu sofri em silêncio por tanto tempo. Além disso, eles ficaram muito traumatizados com a guerra", explica.
"Nunca mais tive vida", desabafa M.P. num suspiro profundo. "Quero apelar que todas as mulheres falem sobre suas experiências, porque elas vão se sentir mais aliviadas, como eu me sinto agora. Nossa sociedade nos julga e nos faz sentir culpadas, mas não somos."
M.P. recebe apoio psicológico regular no Centro de Reabilitação para Vítimas de Tortura do Kosovo (RCTV), onde nos encontramos em Pristina. Não restava muito mais tempo, ela tinha de voltar para casa para que ninguém desconfiasse. "Muito obrigada por me ouvir", disse depois de um abraço ao se despedir.
*O nome foi preservado a pedido da entrevistada.
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