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Criança, fazendeiros e até surfista: quem são os (possíveis) futuros santos brasileiros

Odetinha (à esq.), Zélia e Jerônimo Magalhães e Guido Schäffer - Divulgação e Surffoto
Odetinha (à esq.), Zélia e Jerônimo Magalhães e Guido Schäffer Imagem: Divulgação e Surffoto

André Bernardo

No Rio

17/05/2017 08h48

Em sua segunda visita ao Brasil, em outubro de 1991, o papa João Paulo 2º celebrou a missa de beatificação de madre Paulina (1865-1942), que 11 anos depois se tornaria a primeira santa brasileira.

Durante aquela homilia, o papa declarou: "O Brasil precisa de santos. De muitos santos!". E explicou o motivo: "A santidade é a prova mais convincente da vitalidade da Igreja".

Não à toa, João Paulo 2º simplificou as regras desses processos e entrou para a história como o papa que mais canonizou: 482 santos em 26 anos de pontificado, mais de quatro vezes o que o restante dos pontífices do século 20, juntos, canonizaram.

O "puxão de orelhas" de São João Paulo 2º --sim, ele também foi canonizado, em 2014-- gerou frutos. Naquele ano, o Brasil não tinha nenhum santo para chamar de seu. Hoje, são três: Santa Paulina, canonizada em 2002 por João Paulo 2º; São Frei Galvão (2007, por Bento 16) e São José de Anchieta (2014, pelo papa Francisco).

E mais: em 1991, o país tinha apenas seis processos de beatificação e canonização tramitando na Congregação para as Causas dos Santos, órgão do Vaticano responsável pelo tema. Hoje, são 90 - um aumento de 1.400%.

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Missa de Corpus Christi na Esplanada dos Ministérios em 2015; Brasil é maior país católico do mundo, com ao menos 123 milhões de fieis, segundo censo de 2010
Imagem: Agência Brasil

Ainda neste ano, o Brasil terá 30 novos santos. Em 15 de outubro, o papa Francisco canonizará aqueles que foram os primeiros mártires brasileiros: os padres André de Soveral e Ambrósio Ferro e 27 leigos, vítimas de dois massacres por intolerância religiosa durante a ocupação holandesa no Nordeste do Brasil, em 1645.

Caminho da santidade

Os santos são venerados pelos católicos como pessoas que, por estarem junto de Deus, teriam o poder de interceder pelos fiéis. Uma vez canonizada, a pessoa é considerada modelo para a Igreja no mundo. Enquanto o culto dos beatos é local, o dos santos pode ser praticado em qualquer lugar.

Dos 90 processos em andamento no Vaticano, quatro são da Arquidiocese do Rio de Janeiro: a menina Odette Vidal de Oliveira (1930-1939), a Odetinha, o jovem Guido Schäffer (1974-2009), o casal Zélia (1857-1919) e Jerônimo Magalhães (1851-1909) e a carmelita Madre Maria José de Jesus (1882-1959). Todos já podem ser chamados de servos de Deus, título dado quando as causas são iniciadas, e que constitui a primeira das quatro fases da canonização.

Ao longo do processo, é preciso reunir documentos e escritos do candidato a santo, registrar depoimentos de fiéis que tenham recebido graças e demonstrar milagres, a fase mais complexa.

No caso de mártires, contudo, não há necessidade de comprovação de milagres. Os padres e leigos do século 17, por exemplo, mortos por calvinistas holandeses, tiveram o aval por terem sido assassinados por "ódio à fé". A palavra final, contudo, é sempre do papa.

Entre os candidatos brasileiros, ao menos 15 já são beatos ou bem-aventurados - ou seja, tiveram ao menos um milagre (ato inexplicável pelas leis naturais) reconhecido pela Igreja. É o caso de irmã Dulce Pontes (1914-1992), beatificada em 2011.

"O caminho que leva à santidade é rigoroso e demorado. Entre outros critérios, avaliamos as virtudes heroicas do candidato e sua fama de santidade. Para ser promovido a santo, é necessário um segundo milagre", diz Dom Roberto Lopes, delegado episcopal para as Causas dos Santos da Arquidiocese do Rio.

"Todo cristão é chamado à santidade. Não apenas padres, bispos e religiosos, mas leigos também", completa.

Santos leigos

Os candidatos a santo do Rio se encaixam nesse perfil. Guido Schäffer, por exemplo, era um jovem como qualquer outro da zona sul do Rio, filho de um médico e uma dona de casa: pegava onda, falava gíria, gostava de rock.

Schäffer, contudo, chamava a atenção pela compaixão com o próximo. Ajudava moradores de rua e chegava a doar as roupas do próprio corpo. "Uma noite Guido chegou em casa sem a jaqueta de couro que havia comprado para ele. Quando perguntei se havia sido assaltado, respondeu que não - tinha doado a jaqueta a um mendigo", lembra a mãe, Maria Nazareth Schäffer.

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Guido Schäffer morreu no mar, quando estava prestes a se tornar padre; fama de promover milagres hoje atrai fiéis
Imagem: Surffoto

Em 2000, aos 26 anos, já formado em Medicina e fazendo residência na Santa Casa de Misericórdia do Rio, Schäffer anunciou aos pais que queria ser padre, após voltar de visita ao santuário de Fátima, em Portugal. Foi seminarista e realizou trabalhos médicos como voluntário. Em 2009, aos 34 anos, morreu afogado ao praticar surf com amigos no Recreio dos Bandeirantes, no Rio.

"Quando criança, Guido queria ser salva-vidas. Na adolescência, sonhava ser médico. Já adulto, padre. Guido sempre quis salvar vidas", afirma o padre Jorge Luís da Silva, o padre Jorjão, vigário da Igreja Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, e autor do livro Guido - Mensageiro do Espírito Santo (editora Casa da Palavra).

Em 2015, diante de diversos relatos de graças de fiéis atribuídas a ele, a Arquidiocese do Rio abriu o processo de canonização. Caso venha a se tornar santo, poderá se transformar no padroeiro dos surfistas. A Igreja Nossa Senhora da Paz recebeu os restos mortais do médico-seminarista naquele ano e se tornou ponto de romaria de fiéis.

Odetinha

Outro local que foi muito visitado por católicos do Rio foi o túmulo, no cemitério São João Batista, que abrigava o corpo da menina Odette Vidal de Oliveira, filha de comerciantes portugueses que morreu de meningite aos nove anos.

De família rica, dona do maior frigorífico do Rio à época, a menina estudou no tradicional Colégio Sion. Rezava o terço diariamente e ia à missa desde muito pequena.

Católicos dizem que foi um exemplo de simplicidade e humildade. Sentava-se com empregados à mesa e os ensinava a ler e escrever, organizava feijoada aos sábados para pobres da vizinhança e ajudava a servi-los, visitava orfanatos e pedia à mãe que comprasse roupas e brinquedos novos para as crianças.

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Dom Roberto Lopes ao lado de imagem de Odetinha; menina atrai devoção de católicos do Rio e Estados vizinhos
Imagem: Pedro Paulo Figueiredo

Segundo a Arquidiocese do Rio, ela manteve a fé até o fim da vida, quando teria dito, ao receber a última comunhão, "Meu Jesus, meu amor, minha vida, meu tudo".

"Ao mesmo tempo em que era uma criança normal, que gostava de pular carnaval e fazer bagunça no recreio, Odetinha já demonstrava um profundo amor à eucaristia e ao próximo", afirma o padre João Cláudio do Nascimento, que integra a comissão histórica das causas dos santos.

O processo de beatificação e canonização de Odetinha foi aberto em 2013, com a exumação dos restos mortais, hoje depositados na Basílica da Imaculada Conceição, no bairro de Botafogo. Antes da transferência, a sua sepultura era a segunda mais visitada do cemitério São João Batista, atrás apenas do túmulo da cantora e atriz Carmem Miranda (1909-1955).

Possível casal de santos

Candidatos a se tornarem o primeiro casal de santos do Brasil, Zélia e Jerônimo Magalhães formavam uma família rica, dona de fazenda de café na época da escravidão.

Ambos são tidos como exemplos de bondade. Jerônimo teria mandado desativar a senzala assim que comprou a fazenda de café em Carmo (RJ), erguendo moradia para 500 empregados. Doze anos antes da abolição da escravatura, concedeu alforria aos escravos, que recebiam salários e atendimento médico, segundo relatos da Igreja.

Com a morte do marido, em 1909, Zélia vendeu parte do que tinha, deu aos pobres e ingressou no Convento das Servas do Santíssimo Sacramento. As ideias humanitárias do casal eram incomuns para a época e motivaram devoção antiga no Estado. Os nove filhos de Zélia e Jerônimo que atingiram a vida adulta se tornaram sacerdotes ou noviças.

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Pároco João Geraldo Bellocchio diante de fotos do casal Zélia e Jerônimo Magalhães; ideias e atitudes humanistas atípicas para época motivaram pedido de canonização
Imagem: Pedro Paulo Figueiredo

A candidatura à canonização se tornou oficial em 2013, após reunião de documentação por uma descendente do casal. Hoje os restos mortais estão em um memorial na igreja de Nossa Senhora da Conceição, no bairro carioca da Gávea.

"A vida exemplar de Zélia e Jerônimo é um testemunho irrefutável de que é possível, sim, ser santo nos dias de hoje. Não apenas na vida consagrada, como padre, freira ou religioso, mas também na vida cotidiana", diz João Bellocchio, pároco da igreja de Nossa Senhora da Conceição.

Resposta católica

Há quem veja neste aumento expressivo nos processos de canonização uma resposta da Igreja Católica ao avanço de denominações evangélicas no Brasil.

De 2000 a 2010, por exemplo, o total de pessoas que se declaram evangélicas no país passou de 15% para 22% da população, enquanto a fatia de católicos encolheu de 73% para 64%.

"A tese de que a canonização está intimamente ligada à diminuição da população católica e ao aumento do neopentecostalismo procede. A proporção de católicos aumenta em pessoas com mais de 40 anos, enquanto, no caso dos evangélicos, a proporção aumenta entre crianças e jovens", afirma Ricardo Bitum, coordenador da pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo.

Para Bitum, contudo, não há comprovação de eventual relação direta entre o recuo do catolicismo e o avanço das igrejas evangélicas no país, pois "as relações são multicausais".

Já a professora de Teologia Maria Clara Bingemer, da PUC-RJ, não associa a proliferação de santos católicos ao crescimento da fé evangélica no Brasil. Ela lembra que a Igreja sempre canonizou santos - o primeiro deles, aliás, foi Ulrico, bispo de Augsburgo, na atual Baviera alemã, em 993.

"A Igreja quer estimular seus fiéis a verem que homens e mulheres como eles e elas podem crescer de tal maneira no amor a Deus e no serviço ao próximo que devem ser exemplos a serem seguidos", considera.