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Com crise e alta de violência, é preciso aumentar responsabilidade das Forças Armadas na segurança, diz Beltrame

Carlos Moraes/Agência O Dia/Estadão Conteúdo
Imagem: Carlos Moraes/Agência O Dia/Estadão Conteúdo

21/06/2017 06h55

O ex-secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro José Mariano Beltrame disse que para responder à recente escalada de violência no Estado é hora de "repensar o papel do Ministério da Defesa" e "pactuar um alcance maior das responsabilidades das Forças Armadas".

"Já que não há dinheiro, vamos usar os recursos que temos para fazer o que for possível", afirma, ressaltando não se tratar de defesa do Exército no policiamento de ruas, mas de "sentar para conversar" e unir forças.

Delegado aposentado da Polícia Federal, Beltrame, de 60 anos, deixou o governo em outubro do ano passado, após dez anos de gestão, quando a calamidade financeira do Estado já era conhecida e as taxas de criminalidade se encontravam em franca ascensão.

Ele diz que o problema, impulsionado pela crise financeira, é nacional, e que nem o Rio nem outros Estados tomados por dívidas - como Rio Grande do Sul e Minas Gerais - sairão da atual situação sem ajuda do governo federal.

O gaúcho Beltrame foi secretário de Segurança Pública do Rio entre 2007 e 2016, durante toda a gestão de Sérgio Cabral (PMDB), hoje preso e alvo de 11 denúncias de corrupção. Ele afirma que nunca teve "noção" das irregularidades e diz ver com muita tristeza o que acontecia.

Em entrevista à BBC Brasil, Beltrame diz ter largado de vez o serviço público e se diz aliviado com a nova rotina no setor privado. É consultor de segurança corporativa da Vale, e viaja frequentemente para acompanhar operações da mineradora em locais como Pará, Maranhão e Moçambique.

Apesar da situação crítica enfrentada pelo Rio, Beltrame defende o seu legado. Afirma que trouxe "esperança" e que as UPPs - as Unidades de Polícia Pacificadora instaladas dentro de favelas, o principal marco de sua gestão - devem ser mantidas.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

BBC Brasil - Há uma piora generalizada dos indicadores de violência no Rio. Após um período de otimismo, para muitos a sensação hoje é de estaca zero. Após uma década na Secretaria de Segurança Pública, como o senhor se sente com a situação que o Rio enfrenta hoje?

José Mariano Beltrame - Eu confesso que me sinto apreensivo. Primeiro como cidadão, e segundo por ter sido secretario por dez anos. Tenho visto muitas críticas, principalmente ao programa de UPPs. Mas essas críticas esquecem de analisar os índices.

Se você analisar os dados produzidos pelas UPPs, você vê que é um projeto exitoso. Foi um momento exitoso da segurança no Rio de Janeiro. Saímos da faixa de 40 homicídios por 100 mil habitantes e chegamos a 20. Foram 21 mil vidas salvas. Isso não é banal.

Hoje, o Estado e o país se enterraram numa crise de legitimidade, institucional, financeira.

Acho que o país não supera esse problema sem mudanças no Código de Processo Penal e no Código Penal. Não que queira encarcerar as pessoas. Mas acho que existe um descolamento entre o que diz a lei e a realidade. O povo não se sente representado pelas decisões judiciais. O Poder Judiciário é um regulador da sociedade, deve dar exemplo às pessoas do que vale ou não a pena fazer.

BBC Brasil - O sr. diz que implementou uma política exitosa. Realmente vimos os índices de violência caírem e se manterem em um patamar mais baixo durante boa parte da sua gestão. Mas isso não se manteve. Por que essa política não foi sustentável?

Beltrame - Uma política pública não pode ficar às custas de uma ou duas instituições. Isso foi dito desde o início do projeto. O projeto pode ter lá suas falhas, mas teve muito mais resultados positivos do que negativos.

O que faltou foi o que sempre preguei: as ações sociais e de ordem pública, para abrir vetores de desenvolvimento.

Querendo ser pedagógico: o desembarque na Normandia acabou com a Segunda Guerra Mundial. Mas não foram os soldados que desembarcaram na Normandia que fizeram uma Europa nova ou executaram o Plano Marshall (plano de recuperação da Europa implementado pelos EUA no pós-guerra). Acho que faltou para nós foi exatamente o Plano Marshall.

Muita gente critica a Polícia Militar, a Polícia Civil. Mas elas foram para a frente. A gente colocou a cara e fez. Quem não fez não recebe crítica.

BBC Brasil - Como o sr. avalia a crise financeira do Rio e o governo de Luiz Fernando Pezão (PMDB), que às vezes parece moribundo mas ainda está lá?

Beltrame - É a situação em que o Brasil se encontra, não é? Não é só o Rio de Janeiro. O Rio Grande do Sul está pior. Minas está muito mal. Maranhão nem se fala. Não vejo um horizonte de melhora financeira nos próximos dois anos. A minha visão é que as coisas tendem a piorar ainda.

No Rio, a situação é de total penúria. E não vamos sair dessa crise sem o apoio do governo federal. Como é que você vai cobrar das pessoas se não há recursos?

BBC Brasil - A cada semana vemos um novo episódio assustador de violência no Rio. Crianças mortas no meio da aula, ônibus queimados em grandes vias, confrontos fortes nas comunidades com UPP. Como a situação se deteriorou tão rapidamente?

Beltrame - Fundamentalmente? Dinheiro. Recursos. O Estado não tem dinheiro, e com isso acabou com projetos que quase que duplicavam o efetivo de policiais, como o RAS (Regime Adicional de Serviço, que remunera o trabalho de agentes fora do horário normal de expediente).

Em segundo lugar, não formamos mais policiais. Os concursos públicos estão parados. A instabilidade previdenciária (devido ao projeto de reforma no Congresso) fez com que mais de 2 mil policiais saíssem da corporação, tanto civis quanto militares. O problema é que não há dinheiro para repor os policiais.

Assim como vários setores da sociedade viram que o Estado parou, o crime, obviamente, também viu. E o crime, ao contrário, tem dinheiro para investir. E veio de maneira forte. Ele vem para roubar carga, vem para roubo de rua, para uma serie de outras ações.

Tal é a sensação de impunidade, que os tentáculos dos criminosos vão aumentando. Quando tínhamos um processo de pacificação sólido e contratávamos novos policiais com concursos, fazíamos frente a isso. Hoje não.

BBC Brasil - Vemos relatos frequentes sobre a falta de infraestrutura básica para a polícia trabalhar, como a falta de combustível para viaturas e salários atrasados.

Beltrame - Parece que 50% da frota está parada hoje. Você acha que os criminosos não percebem? Eles estudam o comportamento, as fragilidades da polícia. A base do crime esta no princípio da oportunidade. Então eles avançam.

É urgente que se faça uma ação forte. No sentido de dar um revés e dizer "Existe um limite, o Estado está aqui". Mas do jeito que as coisas vão, não vejo um horizonte para que isso aconteça.

BBC Brasil - O que teria que ser feito de imediato, emergencialmente? Uma das medidas anunciadas foi o envio de homens da Força Nacional de Segurança pelo governo federal, o sr. acha que isso ajuda?

Beltrame - (Risos) Acho que precisamos de uma grande união de esforços. As polícias brasileiras - Militar, Civil, Federal - sabem trabalhar e trabalham muito bem. Mas precisamos dar condições a elas de trabalharem com mais inteligência, e fazer com que as informações sejam integradas.

Assim como acho que está na hora de repensar o papel, o fazer e os objetivos do Ministério da Defesa. Sei que há problemas constitucionais, de controle (que impõem restrições à atuação), mas na situação em que estamos, temos que passar por cima dessas suscetibilidades.

BBC Brasil - O sr. esta falando do Exército?

Beltrame - Do Exército, da Marinha, da Aeronáutica. São pessoas bem preparadas, capacitadas, que têm capilaridade no Brasil inteiro. Eles têm massa. Tem gente.

E falo também da Receita Federal, do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Temos que pensar em como aproveitar a potencialidade de cada instituição.

E não mais dizer "Não, não posso ir ali, porque depois dessa esquina é com a Marinha, depois daquela esquina é com a Polícia Federal". Está na hora de rever isso. Temos uma série de pessoas e de instituições boas, mas precisamos nos unir. Para que se dê um basta nisso.

Precisamos de uma releitura para o século 21 para o Ministério da Defesa para enfrentar a situação em que estamos.

BBC Brasil - Mas é sempre muito polêmico no Brasil falar em policiamento do Exército nas ruas.

Beltrame - Mas aí é que está. Não falo especificamente de policiamento nas ruas. Mas acho que a gente pode sentar e conversar. Não tivemos bons exemplos no Rio de Janeiro com os grandes eventos? Contamos com essas forças juntas. Nós fizemos o processo de UPP juntos. Então por que não podemos sentar e conversar? Não vou dizer que é para o Exército virar polícia ostensiva ou investigativa. Mas no mínimo é possível pactuar um alcance maior das responsabilidades de cada um.

E sei que há problemas legais e que isso é polêmico. Mas vamos ficar assistindo à apreensão de um fuzil por dia, nove pistolas por dia? Não sei quantos homicídios por dia? Porque a população diz isso ou aquilo?

Será que não podemos pensar na capacidade que temos, ou pelo menos na potencialidade, e fazer um plano? Já que não há dinheiro, vamos usar os recursos que temos para fazer o que for possível. Agora, vai ter que passar por cima de certas questões, não tenha dúvida.

BBC Brasil - O sr. foi secretário da gestão de Sérgio Cabral durante mais de sete anos. Ele agora está na cadeia e enfrenta 11 denúncias por uma rede de corrupção que se espalhava por diversas secretarias, como a de Obras e de Saúde. Como convivia com isso?

Beltrame - Bom, eu tenho que dizer que eu não tinha noção da dimensão que isso assumiu. Ainda acredito que vá ter desdobramentos. Eu vejo com muita tristeza.

É muito difícil chegar a um ponto em que não há ração para os cães do canil. Não tem gasolina para botar nos helicópteros que lutou para comprar, assim como nos carros blindados, sem manutenção. Não tem alfafa para os cavalos da cavalaria.

E no entanto, assiste-se agora a uma situação dessas. Vejo com muita tristeza tudo isso que aconteceu e está acontecendo. Muita tristeza.

BBC Brasil - Isso era de alguma maneira visível? O sr. desconfiava?

Beltrame - Primeiro, foram dez anos em que me entreguei para a Secretaria de Segurança. De domingo a domingo, sem fim de semana, sem férias. Em segundo lugar, eu não tinha vida social com o governador. Eu não tinha como perceber.

Às vezes você até percebe que seu vizinho está mudando de padrão, viajando muito, trocou de carro. Mas eu não tinha convívio social com ele para ter essa desconfiança. Eu marcava uma audiência via secretária, ia lá, despachava, e vinha embora. Não sabia da vida dele, onde ele ia, o que ele usava. Essas coisas que estão sendo reveladas não transpareciam para nós.

BBC Brasil - Seu nome foi aventado em uma das reformulações do governo Temer. O sr. chegou a ser sondado? Cogitaria um cargo na instância federal?

Beltrame - Acho que a minha contribuição ao serviço público brasileiro acabou. É como um livro. Quando você chega à última página, acabou, fechou. Para mim, chega de serviço público. Foram 30 anos.

E acho que o serviço público brasileiro deve passar por uma reformulação muito grande. Ele deve ser bem pago, bem treinado e enxuto. Isso daria velocidade e condições para ter respostas rápidas. Hoje temos exatamente o contrário: servidores desanimados, que ganham mal, que foram esquecidos nos seus cargos, que não foram capacitados.

E o que você faz quando as coisas não funcionam? Bota gente para dentro achando que vai mudar. É um ciclo vicioso.

BBC Brasil - Quando o sr. saiu da secretaria, houve quem dissesse que estava abandonando o barco antes de ele afundar. O sr. sente alguma culpa ou responsabilidade pela situação o Rio vive hoje?

Beltrame - Eu não, absolutamente. Eu me entreguei totalmente, me dediquei diuturnamente a esse trabalho. Agora, é lógico, a gente sempre sai com a sensação de que tem mais coisa para fazer. E tem mesmo.

Mas não pensem em jogar tudo fora para, no ano que vem, prometerem uma coisa nova. Tentem enxergar o que aconteceu, o que é recuperável, o que é mensurável. A sociedade tem que estar muito ligada, presente, ter critério, para não entrar em conversas de salvadores da pátria.

O momento é oportuno para isso. Para as pessoas que chegam dizendo que tem que apagar tudo e fazer tudo de novo. Há quantos anos não estamos nessa? A pessoa que entra tem que desmanchar tudo que o outro fez para deixar sua marca. Temos que ter muito cuidado. Aparece gente de todos os lados dizendo que tem soluções mágicas, e esse discurso tem um fundamento ideológico e partidário.

BBC Brasil - O senhor usou o pretérito para falar nas UPPs. Como o senhor vê hoje o projeto de pacificação? Ainda considera que esteja de pé?

Beltrame - Acho que não posso dizer que está de pé na acepção da palavra, né? As cenas que vi no Complexo do Alemão são cenas que me motivaram a fazer a ocupação (ele se refere à operação que ocupou o conjunto de favelas em 2010). O que se vê em certos lugares do Alemão são cenas que deram motivo à UPP. Aquilo que se viu aí não é UPP.

Mas as pessoas se esquecem que tem lugar onde deu muito certo, como o Vidigal (entre o Leblon e São Conrado). O Dona Marta (em Botafogo) estava bem também, achei que estava bem (o morro era a principal vitrine das UPPs, mas voltou a apresentar confrontos e tráfico de drogas ostensivo).

Eu acho que não é uma derrocada. Temos que pensar em onde avançamos. A sociedade tem que entender que ela fez o pior. O pior foi ocupar as comunidades antes.

BBC Brasil - O sr. quer dizer o mais difícil?

Beltrame - Sim, o mais difícil, a sociedade tem que entender que o mais difícil foi feito. Não podemos perder isso. Mesmo com os problemas que temos hoje, é mais fácil fazer alguma coisa agora do que o que já foi feito há dez anos atrás.

BBC Brasil - O sr. tem esperança que as UPPs continuem?

Beltrame - Eu acho que o Rio de Janeiro não sai desse problema se não olhar para essas áreas que foram até agora tratadas como guetos. O que foi feito para as comunidades antes da UPP? O que teve? Acho que não se pode abrir mão.

Tem problemas, não dá para negar, mas não dá para dizer que acabou. É muito mais fácil você racionalizar, fazer um reestudo em cima do que se tem, do que botar tudo fora. Não dá para desperdiçar tudo. Vamos ver o que dá para recuperar.

BBC Brasil - Temos visto uma nova onda de confrontos nas comunidades do Rio. Há quem diga que as UPPs levaram a um reordenamento de forças nas facções criminosas, enfraquecendo grupos locais e favorecendo a entrada do Primeiro Comando da Capital (PCC). Que mudança no balanço de forças foi ocasionado pelas UPPs?

Beltrame - O PCC se expandiu com um poderio muito grande para o Norte e o Nordeste. Os recursos são de assaltos a banco. Você viu os milhões de dólares que roubaram no Paraguai (referência a assalto a uma transportadora de valores em abril deste ano).

Agora vai dar um segundo passo, que é apossar-se da venda de drogas. É tirar os paraguaios e os bolivianos como fornecedores. E eles, o PCC, virarem os fornecedores.

Eles querem o monopólio da venda de drogas e de armas para o mundo. Não é para cá. A ideia deles é uma ideia grande, empresarial, e é por pensarem assim que eles não vêm para o Rio de Janeiro. Porque o tráfico aqui é totalmente desorganizado, ostensivo, gosta de aparecer, fazer barulho e terror. O PCC pensa. Se organiza. É estratégico.

Então essa história de o PCC estar aqui, eu particularmente não acredito. Porque eles são estrategistas. Talvez ainda seja a nossa sorte que o crime aqui é desorganizado. Se ele fosse organizado, ficaria muito mais difícil.

Mas do jeito que as coisas estão, eu tenho muito medo do que vai ser daqui para a frente no país, especialmente no Rio de Janeiro, se nada for feito. É preciso haver uma resposta da nação brasileira contra o crime.

Precisamos de muita união para dar uma resposta à altura da velocidade com que as coisas estão se degradando.

BBC Brasil - Como o sr. vê o legado que deixou à frente da segurança pública do Rio? O sr. é cobrado nas ruas, recebe críticas?

Beltrame - Graças a Deus, acho que a gente deixou um legado intangível - que é o legado da esperança. Desculpe a minha pretensão, mas acho que foram dez anos em que pelo menos a sociedade carioca teve esperança.

Porque se olharmos para trás, você não vai ver nada feito de maneira objetiva, mensurável. Houve um momento de proliferação econômica e de entusiasmo, e ali a sociedade, o Estado e o município tinham que ter feito também a sua parte.

Graças a Deus saio com a consciência tranquila e tenho recebido só palavras de apoio. Mas não me sinto bem vendo tudo na situação em que está. Tenho um temor muito grande pela situação do Rio de Janeiro.

Mas a verdade, e o mais triste, é onde o país está. Tenho viajado o país inteiro e visto a situação no Maranhão, em Natal, na minha terra, Rio Grande do Sul. As coisas realmente não estão boas. Acho que o problema hoje chegou num nível nacional.