Como a busca do Catar por influência global transformou seus vizinhos em inimigos?
Há cerca de um mês, Donald Trump pegou o celular, abriu o Twitter e, como costuma fazer com frequência, disparou contra um alvo.
Mas quem estava na mira dos tuítes do presidente americano desta vez?
Não eram os veículos de imprensa que Trump acusa de fabricar notícias, ou Hillary Clinton e o Partido Democrata, mas uma pequena nação do Oriente Médio, o Catar.
"É bom ver minha visita à Arábia Saudita dando frutos", escreveu Trump, após os sauditas e mais seis países anunciarem o rompimento de relações diplomáticas e um bloqueio econômico e diplomático ao país.
Uma decisão justificada por acusações de apoio ao extremismo islâmico.
"Disseram que tomariam medidas duras contra o financiamento do extremismo, e todas as evidências apontavam para o Catar. Talvez seja o início do fim do horror", continuou o mandatário americano.
Arábia Saudita, Bahrein e Emirados Árabes cortaram relações com o Catar em 5 de junho. Também obrigaram os cidadãos catarianos a deixarem seus territórios e vetaram que seus próprios cidadãos visitassem ou residissem no país.
O Egito também interrompeu seus laços diplomáticos com o país, mas não impôs restrições aos 180 mil egípcios que vivem por lá. Logo depois, Iêmen, Ilhas Maldivas e a Líbia fizeram o mesmo.
Além disso, Arábia Saudita, Emirados Árabes, Bahrein e Egito fecharam seu espaço aéreo para aeronaves do Catar e disseram que empresas aéreas internacionais teriam de pedir permissão para usá-lo quando partissem do país ou o tivessem como seu destino.
A única fronteira terrestre, com a Arábia Saudita, está bloqueada, e navios do país ou que prestam serviços a ele estão proibidos de atracar em diversos portos.
O Catar, que sediará a Copa do Mundo de 2022, é acusado pelos vizinhos de abalar a estabilidade e a segurança da região e de apoiar grupos extremistas como o autodeclarado Estado Islâmico e a Al-Qaeda.
O país nega ter ligações com estas duas organizações, ainda que admita ajudar outros grupos, como a Irmandade Muçulmana, adversário ferrenho do governo militar egípcio.
Outro ponto de tensão é a relação do Catar com o Irã, com quem compartilha a maior reserva de gás natural do mundo. Os iranianos, de maioria muçulmana xiita, são os principais rivais regionais da Arábia, país de maioria sunita.
As sete nações impuseram uma série de condições para que as relações sejam reestabelecidas, entre elas que o Catar corte seus laços diplomáticos com o Irã e encerre as atividades da rede de notícias Al Jazeera, cuja independência editorial em relação aos veículos de mídia árabe tem sido uma pedra no sapato de diversas nações da região, incluindo os sauditas.
Golpe sem tiros
O Catar se recusa a cumprir a exigências.
O país é basicamente um deserto de 11,5 mil quilômetros quadrados de território e população de cerca de 2,7 milhões de pessoas - a maioria dela estrangeiros residentes.
É rico em combustíveis fósseis, mas depende das importações para atender às necessidades básicas de seus habitantes. Cerca de 40% das remessas de alimentos, por exemplo. passam pela fronteira com a Arábia Saudita.
Com o embargo, o país está sendo obrigado a receber comida e suprimentos de emergências dos iranianos e da Turquia.
Por boa parte dos séculos 19 e 20, o Catar esteve sob o controle do Reino Unido.
As primeiras sementes da pequena nação foram plantadas no século 18, quando imigrantes se estabeleceram neste trecho do litoral leste do Golfo Pérsico e criaram uma colônia de pesca e produção de pérolas.
O próprio Catar se parece com uma pérola em sua geografia, pela forma como se destaca na costa da Península Árabe. Atrás dele, está a Arábia Saudita. De um lado, o Bahrein. Do outro, os Emirados Árabes.
O país só começou a ser reconhecido como tal em 1867, após os britânicos o declararem uma entidade independente e não um território do Bahrein.
No ano seguinte, Londres escolheu o sheik Mohammed bin Thani como o primeiro emir do Catar. Quase 150 anos depois, a mesma família ainda está no governo.
O país tornou-se independente em 1971 e, sem a proteção britânica, a pequena nação desprovida de poderio militar precisava do apoio de seus vizinhos maiores.
O então emir, o sheik Khalifa bin Hamad Al Thani, fez da Arábia Saudita seu principal aliado.
"Khalifa deixou os sauditas controlarem sua política externa", afirma Allen James Fromherz, professor da Georgia State University, nos Estados Unidos, e autor de Qatar, a Modern History (Catar, uma história moderna, em inglês).
No entanto, seu filho, Hamad bin Khalifa Al Thani, não aceitava essa situação. Ele tinha visões diferentes das de seu pai sobre a relação com os sauditas e o mundo.
"Havia o medo de que o país pudesse ser absorvido pela Arábia Saudita. Hamad queria evitar isso. Ele desejava torná-lo reconhecido internacionalmente, um país que não poderia ser simplesmente anexado", afirma Fromherz.
Segurança
No início dos anos 1990, a necessidade de segurança ficou clara quando o Iraque de Saddam Hussein invadiu o Kuwait.
"Isso mostrou que pesadelos poderiam virar realidade, como aconteceu com o Kuwait", diz David Roberts, do Departamento de Defesa do King's College, em Londres, e especialista no política internacional do Catar.
"Assim como o Kuwait, é um Estado pequeno e rico, mas sem defesas. A analogia era clara."
Nesta época, o sheik Hamad já era responsável por comandar o dia a dia do país, mas era seu pai quem mandava de fato.
Então, em 1995, enquanto o sheik Khalifa estava de férias na Suíça, o filho tomou o poder com um golpe notório pela falta de drama. Nenhum tiro foi disparado.
A mudança de comando deixou os vizinhos do país confusos quanto ao novo líder, de apenas 43 anos.
"Os sauditas temiam que Hamad estabelecesse uma politica independente e acabasse com o controle que tinham sobre as relações internacionais do Catar", diz Fromhertz.
Foi justamente o que aconteceu. Em 1996, o Catar construiu Al Adid, uma enorme base aérea, ao custo de US$ 1 bilhão, o que pareceu um gesto pensado para atrair os Estados Unidos ao oferecer instalações fantásticas.
Funcionou. Em 2003, os americanos transferiram sua principal base no Oriente Médio da Arábia Saudita para Al Adid, agora sede do comando regional e forças especiais dos Estados Unidos na região, com mais de 10 mil tropas.
"Isso deu ainda mais segurança ao país", diz Roberts.
"É improvável que os americanos voltem para a Arábia Saudita. Os catarianos se garantem no fato de essa base ser quase insubstituível."
No entanto, mesmo tornando-se quase indispensável aos Estados Unidos, nada está totalmente garantido com Trump como presidente.
'Coração do Oriente Médio'
Nos últimos dez anos, o Catar tornou-se o "novo coração do Oriente Médio", avalia Mehran Kamrava, diretor do Centro para Estudos Regionais e Internacionais da Universidade de Georgetown.
"O país emergiu como um centro gravitacional do comércio, transporte, política e diplomacia da região", disse.
O centro onde Kamrava dá aulas foi aberto pela universidade americana em 2005 em Doha, capital do Catar.
Fica instalado na chamada Cidade da Educação, um enorme campus de instituições de ensino americanas, francesas e britânicas ,com edifícios reluzindo de novos e gramados impecáveis - tudo isso no meio do deserto.
"O objetivo no curto prazo é educar sucessivas gerações de catarianos e, em um contexto mais amplo, transformar o país em um centro cultural do mundo árabe, em linha com a meta de criar a imagem do país", afirmou Kamrava.
Na visão do sheik Hamad, quanto mais conhecido fosse o Catar, mais seguro ele estaria. E nada contribuiu mais para isso do que a Al Jazeera, a rede de notícias do país, criada em 1996.
"Era uma época em que não havia outras fontes de informação. Foi antes da popularização da internet. Quando surge a emissora, as pessoas passam a precisar só de uma antena para ter acesso às últimas informações do que estava acontecendo no seu país", afirma Kamrava.
"A Al Jazeera mudou o jogo das relações entre o Estado e a sociedade e o equilíbrio de poder no Oriente Médio."
Além da Cidade da Educação, da rede de notícias Al Jazeera e de uma empresa aérea de prestígio, a Catar Airways, o país criou também museus de primeira linha e passou a sediar eventos esportivos.
Foi o primeiro país árabe a sediar os Jogos Asiáticos, em 2006, e conquistou o direito de realizar a Copa do Mundo de 2022.
Mas como o Catar paga por tudo isso?
Petróleo e gás
Hoje, o país exibe com orgulho seus arranha-céus brilhantes, mas, por boa parte do século 20, a situação era muito diferente.
"Muitas pessoas veem o Oriente Médio apenas como luxo e riqueza, mas se esquecem que, nos anos 1950, o Catar e os países do Golfo estavam em uma situação péssima. Aquele foi chamado do ano da fome", diz Fromherz.
Isso começou a mudar com o desenvolvimento das suas indústrias de petróleo e gás, a partir da metade do século passado.
As reservas foram descobertas em 1939, mas sua exploração foi adiada em decorrência da Segunda Guerra Mundial. A partir dos anos 1950, essa atividade financiou a modernização da infraestrutura do país. Mais recentemente, permitiu ao Catar tornar-se um investidor global.
"Com os grandes recursos que obtém com essas atividades, o Catar fez nos últimos anos investimentos muito agressivos no exterior, que incluem o The Shard, o maior arranha-céu da Europa, e participações nas montadoras Porsche e Volkswagen, no banco Barclays e no time de futebol alemão Borussia Dortmund", afirma Kamrava.
A Qatar Airways durante anos patrocinou o poderoso Barcelona.
Hoje, o Catar é considerado a nação mais rica do mundo. Tem a maior renda per capita do mundo, de US$ 127.660, segundo os dados mais recentes do Banco Mundial, bem acima do segundo colocado, Luxemburgo, com US$ 104.003, e quase oito vezes mais do que a média global, de US$ 16.318.
Ainda que um sistema formal de educação só exista no país há 60 anos, seu índice de analfabetismo na população com mais de 15 anos é de apenas 2,2%, um dos menores do Oriente Médio, e bem abaixo da média mundial, de 13,7%.
Kamrava afirma, no entanto, que a estratégia do país de tornar-se conhecido pode ter "dado certo até bem demais", porque, ainda que o mundo saiba melhor quem é o Catar, nem sempre isso deixou boas impressões.
Organizações de defesa de direitos humanos denunciaram haver no país "exércitos de trabalhadores imigrantes explorados".
E a eleição do país como sede da Copa do Mundo está envolta por acusações de corrupção e compra de votos.
"O país estava vivendo um momento de glória. Tudo parecia estar indo a seu favor, mas a atenção conquistada também lançou luz sobre seus problemas, e sua imagem ficou manchada", afirma Kamrava.
"Foi um dano considerável."
Um país "amigo de todos"
Ainda houve outro fator crucial na ascensão do Catar na cena global, diz Lina Khatib, chefe do programa para Oriente Médio e Norte da África do centro de estudos Chatham House, no Reino Unido.
"O país conseguiu se destacar com uma combinação de mídia e mediação, atuando como um local neutro para a resolução de conflitos", afirma Khatib, que viveu por 20 anos no Líbano antes de se mudar para Londres.
Como mediador, o país não evitou se envolver em grandes conflitos. "O principal foi entre israelenses de um lado e os palestinos e o Hamas do outro. Logo, o Catar estava recebendo líderes do Hamas e, ao mesmo tempo, Israel passou a ter um posto comercial em Doha, algo inédito em países que não tinham assinado o tratado de paz com os israelenses."
O sheik Hamad também buscou manter relações cordiais com o Irã. Assim, conseguiu atenuar algumas rivalidades locais, como no Líbano, em 2008, onde o Catar resolveu uma disputa política que alguns acreditavam que poderia levar a uma guerra civil.
"Estava no Líbano naquela época, e as pessoas nas ruas distribuíam pôsteres do sheik Hamad e faixas dizendo 'Obrigado, Catar', algo que as pessoas voltariam a dizer de novo e de novo no futuro", diz a especialista.
Ainda hoje, afirma Khatib, o Catar tem a estratégia de "apostar em muitos cavalos e esperar que um cruze a linha final", mas isso gerou problemas.
"Uma grande mudança ocorreu com a Primavera Árabe, em 2011. Até então, o Catar não tinha participado ativamente dos conflitos e agido mais como mediador neutro. Mas, com a Primavera Árabe, o país, que já era ambicioso, pensou que poderia ir além e ter alguns regimes do mundo árabe substituídos por outros simpáticos a ele."
Apesar não ter instigado nenhum levante popular, o país apoiou grupos e pessoas que podiam ser leais a ele.
"Durante os protestos, a Al Jazeera tornou-se quase um agente da situação. Não era apenas um canal cobrindo o que acontecia, mas um patrocinador do que ocorria", afirma Khatib.
O país apoiou muitos grupos ligados à Irmandade Muçulmana, movimento social e religioso controverso, e cujos líderes estão baseados no seu território.
Este grupo teve sucesso político na Tunísia e, brevemente, no Egito, mas é considerado uma organização terrorista por muitos dos vizinhos do Catar.
Essa tensão ganhou proporções críticas com a caótica guerra civil na Síria. "O Catar pensou que, ao financiar grupos radicais, podia se livrar rapidamente do regime do presidente sírio Bashar al-Assad", diz Khatib.
"Como alguns desses grupos tinham ligações com a Irmandade Muçulmana, seria uma forma de plantar novos líderes na Siria que assumiriam após Assad e transformariam o país em mais um sobre o qual o Catar poderia exercer sua influência."
A especialista avalia que a atual acusação contra o país de que ele financia o terrorismo como uma "hipocrisia".
"A Arábia Saudita planejava fazer exatamente o mesmo na Síria e financiava outros grupos. O Catar é apenas um de uma série de personagens, especialmente do Golfo, que está envolvido na Síria e financiando toda sorte de jihadistas."
Assim, enquanto fora do Oriente Médio o país é visto como um amigo de todos, a situação é bem diferente entre seus vizinhos.
"É uma nação que vem tentando trilhar um caminho próprio que envolve tanto a Irmandade Muçulmana quanto o Irã, e essa combinação é inaceitável para a Arábia Saudita e os Emirados Árabes."
Essa mudança na postura global do país ajuda a explicar a atual crise no qual é o grande protagonista.
"Até o fim dos anos 1980, o Catar era uma pequena nação que seguia a liderança da Arábia Saudita. É um grande contraste com o Catar dos últimos 30 anos, que não respeita as regras", afirma Roberts, do King's College.
"De alguma forma, querem colocar o país de volta no seu lugar."
Trilhar um caminho independente foi o que deu um papel de destaque ao Catar no cenário global. O desafio agora é lidar com problemas de igual proporção decorrentes dessa estratégia.
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