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O país desenvolvido onde ter dupla nacionalidade virou dor de cabeça para os políticos

Larissa Waters anunciou sua renúncia chorando ao descobrir que ainda era cidadã canadense  - Dan Peled/ AAP via Reuters
Larissa Waters anunciou sua renúncia chorando ao descobrir que ainda era cidadã canadense Imagem: Dan Peled/ AAP via Reuters

Trevor Marshallsea

Da BBC em Sydney

07/08/2017 08h33

Nas últimas duas semanas, três senadores australianos tiveram de renunciar por um motivo inusitado: ao descobrir que tinham, além da australiana, outras cidadanias.

Os casos causaram grande consternação na Austrália - e uma corrida entre parlamentares, muitos deles nascidos em outros países, para verificar se tinham ou não dupla nacionalidade.

Tudo isso por causa de um esquecido artigo da Constituição, de 116 anos de idade, que proíbe qualquer pessoa com cidadania de outro país de se candidatar ao Parlamento.

A questão expôs a Austrália como nação de imigrantes. Muitos dos cidadãos australianos são filhos ou netos de estrangeiros, e muitos sequer nasceram na Austrália, como é o caso de 25 dos 226 parlamentares.

A chamada "crise da dupla cidadania" despertou críticas à classe política como um todo, pelo que foi visto como falta de atenção a um detalhe "básico" como esse. A classe política já estava sob fogo cerrado por causa de escândalos recentes ligados a falta de transparência na declaração de bens e de despesas oficiais de viagens.

Sucessão de acontecimentos

A situação abalou principalmente os Verdes, partido de bandeira ecológica que atualmente é a terceira maior bancada do Parlamento, após as duas agremiações que tradicionalmente dominam a política australiana, o Partido Liberal-Nacional, governista, e o Trabalhista, de oposição.

O primeiro caso de dupla cidadania surgiu em meados de julho, quando o senador verde Scott Ludlam, que se mudou da Nova Zelândia quando tinha três anos, de repente renunciou ao seu mandato no Parlamento.

Ele tinha sido alertado por um advogado que tinha descoberto sua dupla cidadania, já que Ludlam não havia renunciado formalmente à sua nacionalidade neozelandesa. O advogado, que trabalhava para um adversário político, ameaçara levar o caso à Alta Corte do país.

Imediatamente, muitos parlamentares resolveram averiguar suas situações. Pouco depois, veio a renúncia da senadora Larissa Waters, vice-líder dos Verdes. Waters, que ganhou manchetes no mundo inteiro pode ter sido a primeira pessoa a amamentar no Parlamento do país, descobriu que ainda era cidadã canadense - e que, consequentemente, isso a impediria de atuar no Parlamento australiano.

Ela nasceu no Canadá, de pais australianos, que a levaram à Austrália quando ainda era um bebê. Da mesma forma que Ludlam, a parlamentar achava que, ao se tornar australiana, ela automaticamente teria cortado seus vínculos com o país em que nascera.

Em meio à saraivada de críticas à "farsa" dos Verdes, veio a renúncia do ministro para Recursos e para o Território do Norte, o senador governista Matt Canavan, após um telefonema de sua mãe.

Assim como o filho, Maria Canavan nasceu na Austrália, mas, em 2006, ela tinha pedido para ela e para seus três filhos a cidadania italiana, já que seus pais tinham nascido na Itália. Matt Canavan, que tinha 25 anos na época, disse que sua mãe nunca havia mencionado esse fato.

Apesar de ter renunciado ao ministério, ele manteve seu posto no Parlamento. O governo afirmou não ter violado a Constituição ao convidá-lo para o cargo, por não ter conhecimento sobre a cidadania italiana do então ministro. A elegibilidade dele para o Parlamento, no entanto, será definida posteriormente pela Justiça.

Nesse meio tempo, uma deputada trabalhista, Justine Keay, avisou ter revogado sua cidadania do Reino Unido antes da eleição do ano passado - mas sem dizer exatamente quando, o que provocou vários pedidos para que ela prove sua elegibilidade.

Assim como Keay, o senador Malcolm Roberts, do partido de extrema-direita One Nation, também declarou ter renunciado a sua cidadania britânica - apesar de isso não ter sido confirmado por autoridades do Reino Unido.

Regras antigas funcionariam na Austrália moderna?

Ao todo, 23 parlamentares da Austrália que nasceram em 14 países estrangeiros - incluindo o ex-primeiro-ministro Tony Abbott - já comprovaram serem hoje exclusivamente cidadãos australianos. O senador Sam Dastyari até mostrou ter gasto 25 mil dólares australianos em taxas legais para renunciar à sua cidadania iraniana.

A Seção 44 da Constituição diz que qualquer pessoa que "esteja sob qualquer reconhecimento de fidelidade, obediência ou adesão a uma força estrangeira, ou esteja submetido aos direitos ou privilégios de um sujeito ou cidadão de um poder estrangeiro... será incapaz de ser escolhido ou de ocupar uma cadeira como senador ou membro do Parlamento".

A Justiça australiana interpreta que um cidadão com dupla cidadania infringe essa lei e, portanto, não tem direito de concorrer a uma eleição. Embora esse fator tenha pego aparentemente três "vítimas inocentes" de surpresa até agora, nada deve mudar na legislação - já que é muito difícil fazer alterações à Constituição australiana.

No ano passado, o censo mostrou que 26,3% dos australianos nasceram em outros países - cinco anos atrás eram 24,6%. E, considerando-se australianos em situação como a de Canavan e sua mãe, quase metade dos australianos se encaixariam nela - ou seriam estrangeiros (nascidos em outro país) ou teriam pais estrangeiros.

Outros países também têm determinações semelhantes em suas Constituições a respeito da cidadania dos parlamentares, mas o problema vivido pela Austrália atualmente parece não ter precedentes.

O Brasil, por exemplo, exige que candidatos a eleições tenham a nacionalidade brasileira - não há impedimento para quem tenha outra nacionalidade. Estrangeiros naturalizados brasileiros já se candidataram - e foram eleitos nos âmbitos municipais e estaduais.

O artigo foi incluído na Constituição australiana em 1901, quando ela ganhou autonomia do Reino Unido.

"Em 1901, se você não fosse da Comunidade Britânica, você poderia ter sua lealdade questionada", afirmou Paul Kildea, professor sênior na Universidade da Nova Gales do Sul, à BBC.

Segundo Kildea, o artigo poderia ser alterado para refletir mais a Austrália "moderna" - seja para exigir que os candidatos tenham cidadania australiana (sem ter de abrir mão de outra) ou seja para exigir que eles declarem dupla nacionalidade abertamente e deixem seus eleitores decidir.

Além do que, diz Kildea, o fato de um parlamentar não ser determinado país "não significa que ele não possa favorecer esse país - conforme as doações políticas de países estrangeiros a políticos já demonstraram".

O comentarista político da News Corp Australia Malcolm Farr escreveu que os deputados expostos pareciam "incapazes de preencher adequadamente formulários oficiais básicos".

"Tudo depende dos candidatos, e aqueles que não conseguem suprir uma demanda básica de informações detalhadas certamente lançam dúvidas sobre sua capacidade de serem representantes parlamentares", disse ele.